sexta-feira, 25 de maio de 2012

Ser idiota

Juremir Machado da Silva*

<br /><b>Crédito: </b> João Luis Xavier
Todo mundo acorda um belo dia - ou um triste dia - e, na frente do espelho, conclui: "Como eu sou idiota". Batata. Só não se pode dizer ou escrever isso, pois sempre tem um idiota para aproveitar esse momento de fraqueza e disparar: "Ufa, finalmente caiu a ficha!". Essa afirmação, ou autoafirmação, "como eu sou idiota", vem quase sempre seguida de um "quantas oportunidades deixei passar" ou "quantas vezes o cavalo passou encilhado e eu não vi". O problema é quando o cara começa todos os dias, diante do espelho, a exclamar: "Como eu sou idiota". De tanto repetir, se não era, acredita e passa a ser. A vida é que nos idiotiza. Ou nós é que idiotizamos a vida?

Há pessoas práticas que resolvem o problema com uma atitude drástica: tiram o espelho do banheiro. Conheci um sujeito com uma longa barba branca. Depois de uma garrafa de vinho, confessou que não se barbear era a única maneira de não ouvir insultos todas as manhãs. Um psicanalista pós-moderno garante que admitir, na solidão do banheiro, diante do espelho, a própria idiotice é um sinal de inteligência, ainda que tardia, o que, de certo modo, não deixa de ser o reconhecimento de certa lerdeza de raciocínio. Idiotice mesmo, segundo ele, é a pessoa parar diante do fatídico espelho e sussurrar: "Eu sou um gênio". Por via das dúvidas, faço as duas coisas, o que me deixa confuso. Já acompanhei longos debates entre meu eu idiota e meu eu genial. Tive de arbitrar a questão.

Domingo passado, diante do espelho, tive um desses instantes de reflexão e deixei escapar o inexorável "como eu sou idiota". Percebi um leve sorriso irônico na face do espelho. Reagi brutalmente: "Qual é, idiota, está me gozando?". Tratei de argumentar: sou um idiota porque a vida está passando e nem sempre eu tenho sabido aproveitá-la. Há quanto tempo não como bergamota sentado na grama sob um sol morno de inverno? O espelho pareceu sorrir mais debochadamente, como se dissesse, "mas é só isso o teu problema?". Confesso que fiquei vermelho. Expliquei que esse era apenas um dos sintomas da coisa.

Na verdade, eu estava sob o impacto da morte do Paulinho, meu amigo de 30 anos, colega da faculdade de História, em cuja casa de praia, em Albatroz, passamos verões inesquecíveis e turbulentos. Paulinho era do bem. Deixou a Susana e dois filhos. Morreu num acidente de carro na Tabaí. Era pouco mais velho do que eu. Recordei pequenas coisas. No tempo das vacas esquálidas, fizemos um jantar para comemorar o aniversário dele. Surpresa. A vaquinha deu o leite que podia. Preparamos um belo peixe. Paulinho chegou. Diante do prato elaborado com esmero estudantil, murmurou constrangido: "Não como peixe". Insistimos, negociamos, ponderamos. Nada a fazer. Paulinho detestava peixe. Amava a vida, as pessoas, as suas aulas em cursinhos pré-vestibular, correr e conversar. Paulinho se foi. Furou a fila. Que coisa!

Como somos idiotas. Vamos continuar vivendo como se fôssemos eternos, alheios a nossa natureza de bolha de sabão. A vida é como aquele lance do futebol, está aqui, já não está mais, ou aquele, como dizem os castelhanos, "toco e me voy". Quantas oportunidades vamos perder.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
juremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo on line, 25/05/2012

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