quinta-feira, 24 de maio de 2012

O mistério do tempo. À memória de Bernardo Sassett

Guilherme d'Oliveira Martins*
 
Para Gianni Vattimo há três experiências nucleares que estão na base do renascer contemporâneo do interesse religioso: «a experiência da morte de pessoas queridas com quem se tinha pensado percorrer um caminho muito mais longo»; a fisiologia da maturação e do envelhecimento; e os limites temporais da realização humana, que têm como consequência «avivar a esperança» de que a plenitude, que «não parece realizável no tempo histórico e no decurso de uma vida humana média, possa realizar-se num tempo diferente». No fundo, o fenómeno religioso leva-nos à interrogação sobre os limites. E que é a inteligência senão essa capacidade de compreender a fronteira para além da qual a razão fica limitada, não podendo fazer mais do que duvidar, interrogar-se ou ter fé e esperança? Longe da ideia de que os limites apelam à irracionalidade, estamos diante do cruzamento exigente e inexorável da razão e da fé. Não estamos nem no domínio da demonstração, nem no campo da certeza, mas sim perante a exigência de aceitar que a incompreensão existe e apela à transcendência – que o cristianismo consagra na aproximação ao próximo ou «ao outro através do não outro, que é Deus».
Como afirma Hannah Arendt: «A questão da natureza do homem não é menos teológica que a questão de Deus». Daí que a pobreza cristã não seja o esquecimento dos bens terrenos e da propriedade, mas sim a lembrança da liberdade e da dignidade - «não sejais escravos de vós próprios». Afinal, é a consciência de ser mortal que me força a pensar, colocando-me em estado de constante e inquieta interrogação e abertura ao mistério. Como disse Gabriel Marcel: «Amar um ser é dizer-lhe: tu não morrerás». E Montaigne ensinou-nos que o pensamento é a permanente aprendizagem da morte. Contudo, nos dias de hoje, encontramos, a cada passo, a tentação da indiferença ou a recusa da compreensão da morte, como se, esquecendo o tema, fosse possível resolver o mistério. A sociedade em que vivemos dominada pela tecnociência pratica paradoxalmente o excesso terapêutico e ao mesmo tempo defende a eutanásia ativa, que tem como modelo a realização técnica da morte. E Anselmo Borges (em «Corpo e Transcendência», Almedina, 2012) pergunta: «Não será precisamente neste paradoxo que se manifesta de modo claro a crise de uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem finalidade humana?». E, se Camus pergunta se é possível ser-se santo sem Deus, o que está em causa é a procura incessante do bem e da dignidade humana, onde quer que se encontrem, sem preconceitos, indo ao encontro de todas as pessoas, quem quer que sejam e onde quer que se encontrem, crentes e não crentes. Agostinho de Hipona disse um dia: «Se ninguém me perguntar, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me puser a questão e eu tiver de responder, já não sei o que é o tempo. De facto, o passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente quando queremos captá-lo já lá não está». A partir daqui pensamos todos os mistérios que nos abalam. Kant afirmou que o tempo é a «intuição pura». E Pascal, ao falar de toda a eternidade que o antecedeu e de toda a eternidade que se seguirá, afirmou: «Só vejo infinidades por todo o lado, que me encerram como um átomo e uma sombra que dura só um instante sem regresso. Tudo o que sei é que vou morrer em breve; mas o que mais ignoro é esta própria morte que não poderei evitar». E Leslek Kolakowski recorda-nos: «Deus não pode criar uma evidência empírica da sua existência que pareça irrefutável ou mesmo sumamente plausível em termos científicos», pois, para isso, teria de fazer «um milagre lógico em vez do físico». Eis por que motivo fé e razão se completam naturalmente, em domínios diferentes. E o certo é que, desde os gregos, que o tempo é naturalmente ambíguo – entre Cronos que devora os seus próprios filhos, sendo uma divindade mecânica, repetitiva e efémera; e Kairos, filho de Cronos, mas referido à liberdade, à duração e à eternidade. E estamos, deste modo, algures entre o físico e o metafísico, entendendo a relação fecunda que nos leva à dignidade da pessoa humana.
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 Fonte:http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=2619&cont_=ver3

Um comentário:

  1. Excelente. A perspectiva inelutável da morte deveria automaticamente nos guiar a busca do conhecimento e da dignidade. Nem sempre isso acontece.
    Sugestão: http://www.veduca.com.br/play?c=212&a=1
    Um abraço do observador.

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