sexta-feira, 18 de maio de 2012

Atalhos perigosos

                                                  André Lara Resende*

Ilustrações de Nelson Provazi / Ilustrações de Nelson Provazi
Tempos atrás, espantado por reencontrar em Oxford as mesmas rusgas de nosso ambiente acadêmico, perguntei ao então diretor do Centro de Estudos Brasileiros por que a academia dava margem a tantas brigas e rancores. Lesley Bethell respondeu-me com uma pergunta: "Você não conhece a resposta de Henry Kissinger? É porque o que está em jogo é tão desimportante". Aparentemente, apenas uma alfinetada de quem tinha superado a academia e se tornado personagem central da alta diplomacia mundial, mas, na verdade, uma observação mais arguta do que pode parecer.
Desde que sustentei em alguns artigos a tese de que a proximidade dos limites físicos do planeta impõe novas restrições à condução da política econômica, fui surpreendido com a intensidade da repercussão. O que me parecia nada mais do que uma constatação, sinceramente quase óbvia, projetou-me no centro de uma virulenta discussão. Mais do que no centro de um debate propriamente dito, no sentido de uma argumentação racional entre dois lados, deparei-me com dois campos opostos, tão passionalmente engajados quanto desinteressados em ouvir os argumentos contrários.
Do lado dos céticos, dos que não acreditam que existam limites à expansão material dos homens sobre a Terra, a reação é primordialmente de desdém, como se a questão ecológica fosse um problema menor, um falso alarme, sobretudo um modismo. Dá aos que a ela aderem uma aura de progressistas responsáveis, antenados com os tempos, que faz sucesso nas jovens rodas, mas não passa da velha tese de Malthus requentada. Assim como Malthus foi desmoralizado pelo progresso tecnológico, para este grupo, a seu devido tempo, a tecnologia também resolverá a questão dos limites físicos do planeta. Subscrevem a máxima que Fernando Sabino, um apóstolo do otimismo, gostava de repetir: "No fim tudo dá certo. Se ainda não deu é por que ainda não se chegou ao fim".

É humana a necessidade de simplificar para compreender, mas pode-se perder o rumo no caminho para a compreensão 

Do lado dos convictos de que o planeta está realmente ameaçado, a reação é diferente, toma ares de uma seita religiosa. Sou então bombardeado com perguntas que seriam dirigidas a um recém-convertido. O que o levou a ver a luz? Como foi seu encontro com a verdade? Em seguida, as perguntas procuram checar se estou realmente catequisado. A crise financeira foi causada pela ganância dos banqueiros? A defesa dos mercados livres é uma impostura ideológica para favorecer os ricos? Como aumentar o controle do Estado sobre a economia e a sociedade para evitar novas crises e o desastre ecológico final?
De um lado e do outro, ao nos manifestarmos sobre um tema controvertido, somos classificados de acordo com estereótipos. Ainda hoje, ao defender a tese de que não será possível incorporar toda a população mundial aos padrões de consumo material dos países avançados, porque esbarraremos antes nos limites físicos do planeta, somos imediatamente identificados com o estereótipo do ecologista. O ecologista, o verde, é identificado como alguém politicamente correto, crítico do capitalismo consumista, das grandes corporações, dos bancos e do sistema financeiro. É percebido como um crítico da teoria econômica como ensinada nas grandes universidades, cético quanto ao sistema de preços de mercado, crítico do que entende como liberalismo econômico e, portanto, defensor da intervenção do Estado, não apenas para corrigir eventuais distorções, mas para dirigir a economia e a sociedade em direção ao que lhes parece uma visão correta de mundo.
Como escapar dos estereótipos e fazer uma análise crítica da questão? Não é fácil. Os estereótipos, como modelos nítidos e calcificados, nos incitam a tomar partido sem passar pelo trabalhoso processo de análise. Diante de uma questão complexa e perturbadora, a simplificação estereotipada das posições - ou, mais frequentemente, dos tipos de pessoas associados às posições - transforma o que seria um trabalhoso processo de reflexão numa decisão intuitiva. Substitui-se a análise crítica, que exige o acionamento do que o prêmio Nobel em economia Daniel Kahneman, em seu último livro, "Thinking, Fast and Slow", chama de "o sistema dois de pensar", pela tomada de decisão rápida, intuitiva, do "sistema um". Em vez de buscar as informações, analisar as evidências, refletir e tentar formar opinião própria e independente, opta-se pelo atalho dos estereótipos. Primeiro, observa-se quem são os que estão de um lado e de outro do debate. Depois, decide-se com qual deles se tem mais identificação. Toma-se, então, partido.

Quando modelos enraizados no inconsciente são tomados para decisões sem autocrítica, tem-se um estado de não pensar 

A reflexão é substituída por um processo de empatia com os modelos enraizados na memória de longo prazo. Ocorre que os modelos enraizados na memória de longo prazo, ou no inconsciente, não são passíveis de exame crítico sem um longo e penoso processo de autoexame. Quando utilizados como um atalho para a tomada de posição sobre uma questão nova, é como não pensar. O processo de tomar partido, neste caso, é semelhante ao da opção pelo time de futebol pelo qual se decide torcer. Uma questão emocional. Como no caso do futebol, a polarização contribui para que a questão ocupe um lugar de destaque no debate público, mas a torna impermeável à racionalidade.
O problema nos remete a um debate do início do século XX entre Walter Lippmann e John Dewey. Em 1922, quando tinha apenas 32 anos, mas já era um jornalista experiente, tendo passado pela cobertura da Primeira Guerra e da Revolução Russa, Lippmann publicou "The Public Opinion". A partir de sua experiência pessoal, concluiu que a cobertura dos dois principais acontecimentos do início do século havia sido incorreta e distorcida. Lippmann não se limitou a criticar a objetividade da imprensa, por si só um tema complexo. Propôs-se analisar uma questão mais profunda: se não há objetividade da mídia, como é possível sustentar o modelo conceitual das democracias modernas? A democracia pressupõe eleitores racionais. Eleitores que, a partir dos fatos reportados de forma isenta pelos meios de comunicação, seriam capazes de formar opinião sobre todo tipo de questão e, com base nela, escolher seus representantes.
Antecipando em muitas décadas a crítica à democracia representativa no mundo de massas e mídia, Lippmann sustenta que a questão da informação é fundamental, porque as decisões nos estados modernos não são tomadas pela iteração entre o Congresso e o Executivo, como supõe a teoria, mas sim pela iteração entre a opinião pública e o Executivo. O poder da opinião pública tornou-se superior ao do Legislativo. Por isso, a questão da objetividade da mídia, da forma de criar garantias para que a opinião pública não seja manipulada, transformou-se no "problema central da democracia".
Lippmann não se deu por satisfeito em defender a necessidade de garantias para uma cobertura imparcial, sem censura à imprensa e sem interferências manipulativas. Foi além. Procurou entender os mecanismos psicológicos da formação de opinião. Como as pessoas interpretam a informação? Que tipo de reação emocional a informação desperta e como estas emoções afetam o julgamento político das questões? Segundo ele, o problema não está apenas na qualidade da informação, mas, também e sobretudo, na capacidade do público de compreender. Tanto o ato de reportar, como o de compreender aquilo que é reportado, são fontes de distorções.
Segundo Lippmann, as pessoas só são capazes de absorver a informação nova através de um processo inconsciente de ancoragem em categorias conhecidas. A formação de opinião é sempre passível de ser manipulada pela forma como é divulgada, mas, ainda que não o fosse, há sempre o risco de distorção no próprio processo de compreensão pelo público. Toda informação nova é necessariamente processada com ajuda de categorias conhecidas, num processo inconsciente de absorção, que pode ser ainda mais distorcivo do que o da informação manipulada. Ao contrário da informação incorreta, que pode sempre ser aprimorada e corrigida, o processo de distorção psicológica é indissociável da natureza humana. Como não há como tudo absorver e compreender, somos obrigados a simplificar, categorizar e escolher como compreender e formar opinião. A maneira como categorizamos define não apenas como vemos e compreendemos, mas também o que vemos. "Não vemos para depois definir, mas definimos para então ver" é a inversão surpreendente que me levou, anos atrás, à leitura de "Public Opinion".
Definimos de acordo com os "estereótipos" impostos pela nossa cultura. Os estereótipos são padrões, modelos internalizados e fixados, dos quais não somos sempre conscientes. São referências que tomamos como dadas, a partir das quais toda informação nova é interpretada e classificada. Como a memória operacional é escassa, sua utilização é reservada para questões prementes. Toda informação nova é reinterpretada de acordo com modelos já conhecidos, estereótipos, armazenados na memória de longo prazo. Assim, a busca na memória de longo prazo - quando necessária para trazer de volta a informação à memória operacional - é facilitada pela sua associação a um modelo enraizado e interconectado. Quanto mais conexões tiver um modelo, mais associado a outros submodelos e a narrativas conhecidas, mais fácil será sua recuperação pela memória operacional.

Diante de uma questão complexa, a simplificação estereotipada das posições substitui a reflexão por uma decisão intuitiva

Embora os estereótipos distorçam a percepção, não temos como nos livrar deles. São indispensáveis para a nossa capacidade de apreender e compreender. São referências conhecidas que nos dão a sensação de segurança, num mundo perturbadoramente volúvel e imprevisível. Os estereótipos são elementos da construção de nossa identidade e até mesmo de nossa autoestima. Como não temos como perceber a realidade sem passar por nossos mecanismos psicológicos de interpretação, fatos puros não existem. Vivemos num universo formado pela interrelação da realidade com uma construção psicocultural. Não nos é possível separar objetivamente os dois elementos da formação deste universo.
A democracia representativa tem como premissa eleitores com acesso à informação objetiva, capazes de compreender e formar opinião sobre as mais diversas questões que afetam a vida em comum. Uma premissa que talvez fosse válida para as cidades da Grécia clássica, mas que é altamente questionável para as democracias de massas da modernidade. O mundo contemporâneo, globalmente interconectado, tornou-se excessivamente complexo. Grande parte das questões relevantes está, inevitavelmente, muito distante do cotidiano da grande maioria dos eleitores.
Ainda que se faça abstração da questão da manipulação consciente da mídia, que se assuma que ela procura cumprir seu papel de forma isenta e objetiva, não há como pretender que todos tenham acesso à "verdade dos fatos". O papel da imprensa não é encontrar a verdade, apenas o de chamar a atenção para as questões. Verdade e notícia são coisas distintas. O papel da notícia é o de sinalizar acontecimentos, já a verdade deve ser aproximada pela análise crítica dos fatos. Lippmann usa uma metáfora memorável: a imprensa deve ser como a luz de uma lanterna, sempre em movimento, na busca de coisas a serem destacadas da escuridão. Seu papel é importante, mas limitado, porque a sociedade não pode ser governada por uma sucessão de "incidentes, episódios e erupções".

A questão de criar garantias para que a opinião pública não seja manipulada transformou-se no problema central da democracia

A análise de Lippmann leva à inevitável conclusão de que a moderna democracia de massas está longe do ideal democrático. Democrata convicto, Lippmann procurou encontrar uma solução para as deficiências que havia apontado. Propôs, então, uma democracia de especialistas, com o grande público mantido informado da melhor maneira possível. A ideia de uma democracia intermediada pela tecnocracia foi taxada de antidemocrática e, como era de se esperar, muito mal recebida. Lippmann continuou sua bem-sucedida carreira de jornalista, como respeitado comentarista político, até a aposentadoria, no início dos anos 1960. Segundo ele, a principal missão do comentarista político é "procurar antecipar e complementar a percepção de seus concidadãos quanto aos problemas de adaptação à realidade".
O filósofo americano John Dewey, autor da mais séria crítica à proposta da democracia tecnocrática de Lippmann, disse que seu livro era "provavelmente a mais eficaz crítica jamais escrita à democracia como hoje concebida". Em "The Public and its Problems", originalmente publicado em 1927, Dewey dá todo o crédito a Lippmann, quanto à seriedade e à importância da crítica, mas discorda de sua proposta de uma democracia intermediada por tecnocratas. Para ele, ao contrário do que propõe Lippmann, a solução é voltar ao espírito de comunidade, perdido nas sociedades de massas. Não há verdadeira democracia sem espírito de comunidade, sem que a chamada opinião pública seja formada pela interação direta entre os que constituem a comunidade. Segundo Dewey, o espírito de comunidade, no seu sentido mais rico e profundo, estará sempre ligado ao contato direto, face a face, entre as pessoas. A grande comunidade, formada pela livre fluxo de informação e de ideias através dos modernos meios de comunicação, é concebível, mas nunca terá as qualidades que constituem as pequenas comunidades locais. Não existe substituto para a vitalidade e a profundidade do relacionamento direto e pessoal. Não existe verdadeira opinião pública sem comunidade. Portanto, "a menos que a vida comunitária local seja restabelecida, o público não pode resolver de forma adequada seu problema mais urgente: encontrar-se e identificar-se a si mesmo". Sem público, onde há apenas massas, não pode haver verdadeira opinião pública.
Dewey é, porém, otimista em relação à modernidade, desde que a vida comunitária possa vir a ser restabelecida. O público de um mundo democrático moderno ideal seria formado por comunidades interconectadas, que, embora locais, não estariam isoladas. Limites territoriais e políticos poderiam persistir, mas não deveriam constituir barreiras utilizadas para separar as pessoas de seus semelhantes. As nacionalidades não deveriam servir de estímulos à inveja, ao medo, à desconfiança e à hostilidade. A competição sempre haverá de existir, prossegue Dewey, mas deveria ser canalizada numa disputa, para enriquecer a experiência local. Em vez de mera disputa pelo acúmulo de bens materiais, a competição se transformaria numa disputa para criar alternativas, para expandir as opções artísticas e intelectuais. Dewey conclui: se a era tecnológica for capaz de dar à humanidade uma segurança material bem distribuída, estará aberto o caminho para uma era mais humana. A modernidade inaugurada com a Revolução Industrial deveria ser uma fase instrumental para a criação de uma base material mínima e bem distribuída, sem a qual a intercomunicação, a troca de experiências, necessária para uma vida livre e culturalmente rica, se transforma em mera competição material. Sem que as necessidades materiais básicas estejam universalmente atendidas, a procura frenética por cada vez mais consumo material, como mera fonte de excitação e de exibição, será perpetuada.
Quase um século depois, o debate entre Lippmann e Dewey ainda é de surpreendente atualidade. As deficiências da democracia representativa intermediada pelos meios de comunicação num mundo de massas são mais evidentes do que nunca. Apesar do progresso material, acima das expectativas mais otimistas, o espírito comunitário foi corroído. A fronteira entre informação e publicidade comercial está a cada dia menos definida. A competição materialista não dá sinais de se abrandar, mas, ao contrário, generalizou-se, atinge todas as camadas sociais em toda parte do mundo e ameaça o equilíbrio da vida na Terra. Não existe um público supranacional articulado. Infelizmente, a conclusão é inequívoca: o tempo parece ter dado mais razão ao pessimismo de Lippmann do que ao otimismo de Dewey.
Volto, então, à alfinetada de Kissinger. Não é apenas no ambiente acadêmico que as pessoas se digladiam quando deveriam conduzir um debate racional. É da natureza humana a necessidade de simplificar para compreender, mas, no processo de esquematização necessário para a compreensão, perde-se o rumo. A reflexão é substituída pela opção emocional por um dos lados do debate, muito mais pela empatia pessoal do que pela análise dos argumentos e das evidências. Uma tentação quase irresistível - primeiro, porque nos poupa do penoso trabalho de pensar, mas, sobretudo, porque nos garante uma reconfortante sensação de certeza, que a verdadeira reflexão jamais será capaz de nos dar.
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*André Lara Resende é economista
Fonte: Valor Econômico on line, 18/05/2012

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