segunda-feira, 16 de abril de 2012

A umidade dos livros

 Ruy Carlos Ostermann*

Ele nunca suspeitou de que os livros deixados quietos nas suas estantes envelhecessem. Capas retorcidas, folhas esbranquiçadas, margens encurtadas. As traças sempre foram detectadas com seu traçado incerto nas folhas de dentro, abrindo trilhas, redobrando os buracos. Mas traças são seres vivos, ínfimos, desagradáveis nos livros e nas roupas mais adocicadas, mas previsíveis. As bibliotecas ou simples estantes de livros envelhecem com elas, tornam-se apropriados uns aos outros. Mas os livros, pensava, por que se desmanchavam até mesmo antes das traças?   
Montou uma pequena teoria usando letras e obedecendo a um velho hábito desenvolvido para entender a realidade em torno. Foi pesquisar as janelas e as duas portas: estavam bem fechadas, passava ar e mais nada. Acendeu todas as luzes que estavam dependuradas do alto, duas em cada ambiente. Uma só, mas de canto, estava queimada. Era uma boa iluminação de biblioteca, quase nada fica às escuras, num canto. E, em  cima da mesa de trabalho, havia um lampião grande, imitando folhas secas ao redor e suportando uma grande lente fluorescente centralizada. O que seria então?
Sentou-se na poltrona, afastou-a com os pés da mesa e ficou quieto de braços cruzados pensando nos seus livros que se destruíam. A Divina Comédia, por alguma razão antiga, estava em dois volumes ao alcance da mão. Encadernação bonita, quase luminosa e recente. Nada se via que pudesse desmerecer a inteireza dos dois livros. Reservou-se um pouco mais na poltrona. E então passou lentamente a mão na superfície da mesa como se fosse alisá-la.
Deu um salto e quase gritou:
- Água!
Era a umidade que destruía os livros, não o tempo nem a luz ou o calor. E não soube mais o que fazer naquela biblioteca, além de sua teoria...
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* Jornalista. Escritor. Colunista da ZH
Fonte:  http://www.encontroscomoprofessor.com.br/16/04/2012

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