LUÍS ANTÔNIO GIRON*
Até pouco tempo atrás, eu costumava dizer que tinha a vida eterna para
descansar. Não passava de uma forma de desculpar minha compulsão pelo
movimento, a incurável hiperatividade que muitos confundem com
competência e amor pelo trabalho, mas não passa de um transtorno
(felizmente, devo ser o único jornalista transtornado no mundo). Mas
agora nem isso eu tenho mais a declarar, pois já sei que nem mesmo na
eternidade haverá meios de repouso porque tudo o que eu fui durante a
vida – uma quantidade limitada de informações que devem caber em um pen
drive de 4 Gigabytes, se muito – permanecerá armazenado no imenso banco
de memória digital da civilização conhecido como internet. Não só a
minha improvável contribuição à humanidade, que deveria figurar nos
textos que redigi, como também as maiores bobagens que eu afirmei em
bate-papos e e-mails, as gafes ou acertos na carreira, as imagens que
registrei.
A era digital ensina dura lição: a vida é uma errata do princípio ao
fim (o crítico George Steiner aprendeu-a em 1997, ao intitular seu livro
de memórias de Errata). Uma errata que não corrige nada, pois
os dias vividos não podem ser alterados, salvo por meio de artifícios
como a linha do tempo do Facebook. Ela organiza para você dados que
talvez você não queira ver organizados. Quando o sujeito sair de cena e
não estiver mais aqui para se defender, tudo estará dito, e em seu
lugar, inclusive com correções e reescrituras de sua história.
Em uma entrevista que fiz com o compositor americano John Cage
(1912-1992) três anos antes de sua morte, ele disse uma frase que na
época me soou estranha: “Ninguém mais vai morrer, por causa de
tecnologia.” Parecia um enigma zen budista, mas só agora entendo o que
Cage falou. A tecnologia nos tornou eternos. Nossas imagens vão pairar
para sempre por aí. Ainda não inventaram um modo de manter nossos corpos
e o que eles carregam dentro, a que muitos chamam alma. Talvez os
corpos-almas não sejam tão importantes assim. Importa é se e como estão
registrados pelos meios técnicos. Assim, aquilo que chamávamos
antigamente de mortos não descansam mais em paz na era digital. De
alguma maneira, encontram-se insepultos. Suas emanações assombram o dia a
dia dos ainda viventes.
Vou tentar explicar essa eternidade artificial com exemplos. As redes
sociais trazem os melhores casos. Os mortos antigos pelo menos pediam
inscrições nas lápides de seus túmulos, e em geral eram atendidos. Os
atuais não têm nem mesmo tal direito. A posteridade deles nas redes
sociais se multiplicou em inscrições, como se lápides constituíssem
dízimas periódicas de tributos, que tendem a um só tempo ao infinito e à
desimportância.
"Muitos amigos que se foram continuam
com os perfis no
Facebook, como se estivessem vivos, sorridentes, cheios de
relacionamento - e ainda consumindo produtos oferecidos pelos sites."
Um número incalculável de integrantes de redes sociais já morreu.
Obviamente, o próximo poderá ser você, eu, qualquer um. Examinar a morte
em rede de conhecidos pode ser elucidativo – é como se sentir morto por
antecipação. Muitos amigos que se foram continuam com os perfis no
Facebook, como se estivessem vivos, sorridentes, cheios de
relacionamento - e ainda consumindo produtos oferecidos pelos sites.
Outros espectros aparecem como sugestão de amizade no item "gente que
você deve conhecer".
Não estou falando das celebridades vítimas dos fãs que se apossam de
suas imagens, obra e nomes, mais ou menos como o produtor Dr. Dre faz
agora com o rapper Tupac, assassinado em 1996. Dr. Dre age em nome do
falecido, transformando-o em um holograma manipulável programado por
computador, que deve sair em turnê em breve. São parecidos os casos dos
perfis de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector, presas dos invasores
de suas memórias, verdadeiros vampiros literários. Penso, sim, nos
cidadãos comuns.
Quando a pessoa morre (já fui avisado da morte de amigos por Facebook,
Orkut, Twitter), sua desencarnação digital nas redes sociais observa
seis passos fundamentais. O primeiro é uma agitação nervosa por parte
dos amigos. Todos querem saber como, quando, onde e por que aconteceu.
Aí o perfil do recém-falecido se enche de trocas de informações. O passo
seguinte está nos elogios. Gente curte o perfil do defunto, gente
exalta suas virtudes - sim, basta morrer para virar santo. Depois dos
tributos, acontece aquilo que eu denomino o velório on line: as pessoas
conversam sobre o morto, lamentam-se, riem, contam piadas umas às
outras. O bate-papo promete durar bem mais que os velórios off-line.
Comparecem até carpideiras digitais, que se derramam em lágrimas de
crocodilo. No quarto passo, o da mesa-branca, dão as caras aquelas
pessoas que mandam mensagens diretamente ao morto, como se quisessem
conversar com o espírito que poderia estar on line em algum lugar do
paraíso – evidentemente, ele não responde. O próximo passo é o mais
interessante. Ele pode ser definido como recordação coletiva. Antigos
colegas, amigos, amores e parentes se reúnem no perfil do falecido com o
objetivo de fazer um mutirão e reconstruir a sua vida por meio de
fotos, vídeos, gravações, desenhos e manuscritos. Como em um
quebra-cabeça grupal, aspectos desconhecidos da vida do sujeito emergem e
provocam surpresas. Exemplo: fiquei sabendo que um velho amigo meu
tinha sido campeão de futebol júnior no perfil dele. Fotos e episódios
que eu não conhecia vieram à tona, para meu espanto. Por fim, as pessoas
vão deixando ao deus-dará aquele triste perfil, que fica abandonado
feito um túmulo real ignorado pelos entes queridos, que só exibe flores
secas depositadas por quem já se esqueceu de voltar. Mas a foto do
perfil continua a sorrir.
Entendo que celebrar, lembrar e contar a vida do morto, bem como bater
papo com ele pode servir como consolação para muitas pessoas – além de
ser uma forma de manter a memória viva daquele que foi embora. Mas eu
não penso assim. A sensação de encontrar mortos vivos nas redes sociais
me parece medonha. Tanto que já combinei com uma pessoa próxima que,
caso eu morra sem querer, elimine imediatamente os meus perfis
espalhados por aí. Eis aí uma lição da tecnologia da informação: morrer,
tal qual viver, é uma banalidade. No entanto, essa banalidade se
potencializa ainda mais nas redes sociais. Não parece existir maneira de
restituir aos mortos o seu direito ao jazigo perpétuo. Lembrando Cage,
ninguém mais vai viver ou morrer em paz, por causa da tecnologia.
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* Jornalista e Crítico de cultura.Colunista da Revista Época
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/cultura/luis-antonio-giron/noticia/2012/04/morrer-em-rede.html
Imagem da Internet
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