domingo, 29 de abril de 2012

Gilberto Freyre e o “mórbido deleite” dos brancos

Paulo Moreira Leite*

O placar de 10 a 0 no Supremo Tribunal Federal  representa uma condenação irrevogável à noção de que vivemos numa democracia racial – e é um convite a reflexão dos brasileiros sobre um dos mitos mais  danosos de nossa cultura.
O mito mais recente envolve a noção de racialismo. Contrariando a opinião de 90% da população brasileira, que reconhece que o Brasil é um país racista, os advogados da democracia racial dizem que as “tensões” entre brancos e negros só vão começar com a aplicação de políticas de ação afirmativas.
A ilusão que querem nos vender é a seguinte: brancos e negros sempre viveram num ambiente de paz e amizade, quem sabe desde 1580, quando os primeiros escravos foram trazidos para os engenhos de açucar, e agora esses intelectuais, esses aparelhados, esses comunistas, esses …, querem criar confusão e estragar tudo.
O esforço para dar legitimidade à “democracia racial” inclui uma tentativa de se atribuir ao pensamento de Gilberto Freyre uma visão fechada e coerente que o mestre de Apicucos nem sempre cultivou.
A importância de Gilberto Freyre,  em seu devido tempo, foi  defender os direitos da população negra – e não considerar que ela já estivesse em posição de igualdade no mundo dos brancos.
Embora capaz de idealizar as relações entre portugueses, negros e indígenas, Gilberto Freyre não levava sua ideologia ao delírio, como se vê no trecho a seguir, onde fala de crueldade e sadismo. Citando uma passagem especialmente cruel de Machado de Assis, o antropólogo reconhece:

“Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadeza e no gosto de judiar (*) com o negro. Aquele mórbido deleite  em ser mau com os inferiores e com o animais é bem nosso: é de todo menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata.” (Página 370).

Confesso que tive de ler isso mais de uma vez para compreender, registrar e avaliar.
Aquele pensador que é apontado como pai da democracia racial afirma que “mesmo depois da oficialmente (reparem no termo restritivo, ‘oficialmente’) abolida a escravidão” os brasileiros de “classe mais elevada” se sentiam aparentados “na malvadeza com o negro. “ Para Gilberto Freyre “todo menino atingido pela influencia do sistema escravocrata” possui o “mórbido deleite de ser mau com os inferiores e com os animais.” Freyre diz ainda que isso “é bem nosso.”
Para ele, há mais que tensão racial. Há raiva, desprezo, vontade de submissão e destruição, morte. Isso quer dizer “mórbido deleite.”
Desculpem, mas é e chocante ler esta passagem e não questionar o esforço de quem se esconde atrás do mestre de Apicucos para dizer que medidas de ação afirmativa é que irão criar uma “tensão racial” inexistente. Como é que pode?
Em que país essas pessoas vivem? Não leram nem Gilberto Freyre? Não andam na rua?
Nós sabemos que pais é este.
A sociedade brasileira possui, a respeito da questão racial, um discurso branco, dominante e unilateral. A voz do negro é uma dissidência raramente ouvida, muito menos considerada. Tivemos vários discursos sobre o negro ao longo da história. Alguns de caráter reacionário, outros progressistas e assim por diante. Ele próprio raramente pode falar com sua voz.
Apenas um monólogo branco pode sustentar que somos um país sem “tensões raciais”. Eles são os donos da palavra.
É o ponto de vista branco, como disse o psicanalista Contardo Calligaris.
É uma situação reveladora do caráter não-democrático do debate em torno de algumas ideias no Brasil. Algumas partes — no caso, as mais interessadas — não tem direito a palavra. Admite-se, apenas, o discurso sobre eles. Não são sujeitos, nem pessoas emancipadas.
São objetos de uma nova forma do “mórbido deleite?”
O 10 a 0 mostra a credibilidade dessa visão.
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* Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em Washington.
Fonte:  http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/2012/04/28/

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