quarta-feira, 25 de abril de 2012

A filosofia vai à escola

Paulo Ghiraldelli Jr.,

O jovem professor Bicota havia conseguido ser empregado no Colégio de sua cidade natal. Recém empossado, botou seu avental branco e, de giz em punho, foi para a sala de aula, logo no primeiro dia do ano letivo. Albino Cotia era o nome da fera. Mas, dado que todo mundo por ali falava muito rápido, ele era chamado de “bincotia” e depois “bincota” e, enfim, “bicota”. Era professor de filosofia. Ninguém sabia o que era filosofia – ao menos naquela turma de estudantes, chegados no primeiro ano do ensino médio exatamente quando o Colégio tinha seu primeiro professor de filosofia. Era ele, o professor Bicota, de giz em punho.
Bicota entrou na sala e se apresentou. Os alunos olharam, olharam … era como se estivessem em uma excursão para o zoológico, mas sem sair da sala. Ali estava um professor de filosofia com um nome estranho. Bicota! E, afinal, sabe-se lá o que ele iria falar em uma aula com um nome pouco comum: “filosofia”. Uma menina escreveu na capa do caderno: “aula de bicofia”. Talvez não fosse realmente a melhor aluna, mas não era das piores. A peixeinho da sala, loira, peitos duros de menina-moça e uma mini-saia de deixar Bicota estarrecido com a idéia de Kant ter conseguido morrer virgem, se ofereceu para fazer a chamada. Os cílios dela eram enormes e ao escutar sua voz, Bicota percebeu que poderia ter uma ereção ali mesmo, diante de todos, e mais que rapidamente se refugiou para trás da mesa. Sentou-se. Respirou e deu a caderneta para a garota, cujas mãos foram direto para as mãos dele, e só depois para a caderneta. Bicota sentiu que a ereção não seguiu seu curso, substituída pelo suor frio.
Cínthia fez a chamada. Enquanto isso, Bicota colocou no quadro a palavra “Philo-sophia”. Tudo estava preparado para dizer aos garotos de como lá na Grécia antiga Pitágoras, muito provavelmente, havia sido o primeiro a usar a palavra “philosopho” e, daí, se ter a origem de Philosophia, a amizade ao saber. Mas antes mesma da chamada terminar e nem bem ele tinha posto a palavra no quadro, veio uma pergunta lá do fundo da sala, por meio de uma voz de Pokémon. “Professor, como é que se faz para acertar tudo nessa matéria e passar de ano?”.
Bicota voltou-se para aquela voz. Não era só a voz de Pokémon. Era o próprio. Um menino com cara de desenho japonês, e completamente amarelo. Seria difícil, após às seis da tarde, distinguir o estudante do verdadeiro Pokémon. E isso não era o pior. O que era mesmo ruim é que a pergunta nada tinha de retórica. Não era aquela pergunta do aluno chato que, no primeiro dia, quer mostrar que ele é rebelde e que não está nem aí com a matéria, da qual quer só se livrar. Não! Os olhos do aluno mostravam que ele realmente estava preocupado. A matéria era estranha e, afinal, o que haveria de se pedir e de se responder de modo a não errar?
Bicota começou a falar, mas da sua boca não saiu o que ele imaginou que deveria sair. Ele simplesmente disse: “nessa matéria, filosofia, vocês não vão fazer nada certo, se fizerem algo certo, se acertarem alguma resposta, estarão reprovados. Aqui, vocês deverão errar. Só errar.” E se empolgou: “a filosofia é o espaço do erro”. E mais: “em todas as outras disciplinas, vocês devem acertar, aqui, vocês podem errar, devem errar”. Alguns riram. Mas Bicota se manteve sério e então o riso parou. Por uns bons três minutos a sala ficou em silêncio. Bicota na mesa, e os alunos olhando para ele. O gelo foi quebrado por Cínthia, que entregando a lista de volta, disse ao mestre, fazendo charminho em estilo Sabrina Sato: “ai professor, o senhor, já vi tudo, é muito brincalhão – a gente vai ter de errar!”.
Bicota levantou e como que possuído pelo demônio, pediu para que todos pegassem uma folha de papel, que daria uma prova. Não deu tempo de contestação. Alguns iam reclamar e ele ditou a primeira e única pergunta: “Você deve abandonar um cão na estrada, uma vez que vai se mudar de casa e, para onde vai, não é possível levar animal?” O tom de voz de Bicota, firme, fez os alunos não falarem mais e levarem a sério a prova. Começaram a escrever. Bicota deu-lhes poucos minutos e recolheu tudo rapidamente, e iniciou a leitura de um por um dos textos. Para cada texto lido, Bicota dizia “certo”, “certo”. Quando chegou ao último, bateu com a mão na mesa e disse: “nenhum de vocês conseguiu errar. Vocês são uns covardões. Nenhum de vocês conseguiu ter uma idéia que não fosse aquela que todos consideram como corretas. Vocês são o senso comum do senso comum, as pessoas mais previsíveis do mundo. Vocês são uns alunos muito, muito, muito chatos”.
Bicota passou a cobrar o erro. Suas perguntas não davam margem para erro. Essa era a impressão que se tinha. Mas ele pedia um erro. Ele não pedia maldade. Ele pedia um erro. E assim, sua fama se espalhou pela escola. E a droga toda chegou aos ouvidos de pais e desses voltou para a escola, para cair bem na cabeça do diretor. Eis como a coisa bateu no diretor: “Lá no Colégio há um professor com nome de viado, que quer que os alunos falem o errado, não o certo”.
O diretor tinha um problema para resolver. Bicota ganharia sua cota do problema. Os alunos, por sua vez, estavam todos atarantados, nenhum deles, ainda, havia tido a coragem de escrever algo com sentido, porém errado – errado mesmo.
É claro que Bicota não ficou no colégio. Foi mandado embora. A secretaria da Educação autorizou o diretor a meter o pé nele. Ou era ele ou o diretor. Aliás, este também tomou sua cota de punição, por meio de uma sindicância forçada pelos pais. Os alunos ficaram sem aula de filosofia, ao menos durante um tempo.
Em três meses de aula, Bicota não conseguiu fazer nenhum aluno errar, mas, em compensação, desencadeou no colégio uma sucessão de erros.
Anos mais tarde, ensinando filosofia na universidade, encontrei um aluno que queria saber como passar na minha matéria. E eu disse para ele que a filosofia era “o espaço do erro”. E acrescentei que eu queria vê-lo errar.
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Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e co-apresentador do Programa Hora da Coruja na JUST TV.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/04/24/a-filosofia-vai-a-escola/

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