quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Caveira de Hamlet e suas reflexões sobre o modelo civilizatório



Já se passaram quase dois anos desde que o blog Repaginando estreou no Mercado Ético. Editado por Homero Luís Santos (foto), professor e consultor de sustentabilidade, e sua filha Maria Fernanda Cardoso Santos, mestra em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, os posts trazem uma reflexão profunda sobre a humanidade e seu modelo civilitório, apontando possíveis caminhos para o viver sustentável.
Devido à riqueza desse trabalho, parecia óbvio que o Repaginando eventualmente se transformaria em um livro. E não deu outra. Nesta terça-feira (17), pai e filha lançam em São Paulo, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, a obra “A caveira de Hamlet – Questionamentos malcomportados sobre a vida, a verdade e o futuro”. Parcialmente baseado no blog publicado pelo Mercado Ético, Homero qualifica o teor do material como “um amplo conjunto de questionamentos, vários e sobre diversas realidades correntes e aspirações humanas permanentes”.

Mas como o Repaginando virou A caveira de Hamlet? Sobre isso, Homero fala na entrevista a seguir:
Mercado Ético - A Caveira de Hamlet é parcialmente baseado no blog Repaginando, feito por você e por sua filha Fernanda para o Mercado Ético. Como o Repaginando virou a Caveira?
Homero Santos - Na verdade, Fernanda e eu havíamos já decidido escrever um livro seis meses antes de iniciar a postagem no Repaginando. Tínhamos desenvolvido a tabela de conteúdos, uma espécie de pauta, e começado e escrever algo até que veio a possibilidade de publicar no blog. Os posts foram, assim, já produzidos com a intenção de, num dado momento, virarem um livro, o que vem de acontecer.

ME - O que muda do blog para o livro? O que há na obra impressa que não encontramos na internet?
HS - Embora tivéssemos uma pauta a desenvolver, os temas começaram gradativamente a ganhar vida própria. Certos tópicos se anteciparam ao previsto na pauta e outros surgiram como que do nada, num processo que poderíamos chamar de orgânico ou intuitivo. Houve um momento em que, passado exatamente um ano de postagens – ao todo, foram 20 posts, uma média de um post a cada três semanas –, achamos que estava na hora de começar a transição do conjunto de posts para o livro.
A essa altura, julho de 2010, tínhamos já postado 17 textos e os três restantes já estavam esboçados. Foi quando nos demos conta de que o que viemos fazendo até então foi trabalhar sobre o modelo civilizatório levantando questões e cenarizando possíveis desdobramentos. Em suma, o teor do material poderia ser qualificado como um amplo conjunto de questionamentos, vários e sobre diversas realidades correntes e aspirações humanas permanentes. Disso, de repente surgiu a conexão: o livro abrigaria na verdade um enorme conjunto de questionamentos, e – perguntamo-nos – que existirá de mais expressivo como questionamento do que aquele que Hamlet faz ao proferir a célebre frase “ser ou não ser”, dirigida à caveira agarrada uma das suas mãos? Pronto, estava batizado o livro em nascimento: “A Caveira de Hamlet”, com um aposto que pretende expressar a tônica ou o humor das proposições formuladas: “Questionamentos Malcomportados sobre a Vida, a Verdade e o Futuro”.
Surgiu então um outro insight: a caveira poderia comportar três aspectos. O primeiro consistiria nela em si, como aquilo que resta quando todo o mais se acaba em nossa vida; o segundo refletiria o que pulsa dentro dela enquanto há vida; e o último compreenderia o que entra por ela para o resto do complexo somático através dos sentidos, criando os apetites. Assim, identificamos respectivamente a Caveira Interior, o Interior da Caveira e o Exterior da Caveira. Notável foi perceber que, na ordem apresentada acima, esses três aspectos da caveira correspondem aos três deuses decaídos que concebemos: Morte, Ciência e Mercado.
Isso nos ensejou desenvolver textos para todos esses aspectos organizando os vários posts em torno deles, sob a forma de uma trilogia, aberta por um prólogo e encerrada por um epílogo. Nesse processo, os posts foram revisados, completados, alguns fundidos entre si – enfim, reeditados.
É importante ponderar que cada texto isoladamente, sob a forma de post, com certeza foi lido por uns, mas não por outros. Há temas que despertaram mais interesse, outros que passaram mais ao largo do foco do internauta que frequenta o Mercado Ético. Apostaria que ninguém leu todos os posts e, se acaso o fez, essa rara figura vai se deparar no livro com material que, por sua reorganização e reedição, compõe uma narrativa diferente daquela que encontrou na leitura feita diretamente no site.

 "A caveira poderia comportar três aspectos. O primeiro consistiria nela em si, como aquilo que resta quando todo o mais se acaba em nossa vida; o segundo refletiria o que pulsa dentro dela enquanto há vida; e o último compreenderia o que entra por ela para o resto do complexo somático através dos sentidos, criando os apetites. Assim, identificamos respectivamente a Caveira Interior, o Interior da Caveira e o Exterior da Caveira. Notável foi perceber que, na ordem apresentada acima, esses três aspectos da caveira correspondem aos três deuses decaídos que concebemos: Morte, Ciência e Mercado."

ME - Assuntos ligados à mitologia sempre estiveram presentes nos seus textos. “Mercado, ciência e morte”, como você diz, é o tema do primeiro post do Repaginando. Eles, de acordo com um personagem fictício, seriam os três deuses  regentes máximos de nosso panteão. Não há lugar para religião nos dias de hoje? E se não há, isso é uma coisa boa ou ruim?
HS - Vivemos, como nunca antes, num mundo que, além de global, é igualmente plural: há lugar para os mais diversos movimentos e formas de agremiação. Os deuses do panteão da modernidade convivem astuta e harmonicamente com as divindades das religiões estabelecidas, uns reforçando os outros no propósito da cooptação ou mesmo da dominação dos humanos. Estar vinculado a uma religião é estar subordinado a um esquema sacerdotal de poder, que em tudo se assemelha à nossa sujeição aos ditames das corporações que nos levam amiúde à compulsão do consumo daquilo que, em princípio, não queremos ou necessitamos.
Mas há quem goste de pertencer a um rebanho, isso dá segurança e uma certa sensação de identidade. Há, por outro lado, quem prefira ser solitário, mas livre: um leão da montanha. Trata-se, essa, de uma opção individual.
No final, entretanto, o mais importante é não confundir fé e espiritualidade com religião instituída, na qual seres humanos, na condição de sacerdotes, bispos ou gurus, falam em nome de Deus e prometem benesses e punições, em função da conformidade do comportamento dos seus afiliados a seus comandos e vontades individuais.

ME - Se no primeiro post vc fala da trindade mercado, ciência e morte, no último vem solo, ser e sociedade, que seria uma contraposição ao triple bottom line (economia, sociedade e ambiente). Como e por que aquele supera esse?
HS – A nossa posição como autores é que nós, humanos, não existimos para mover a economia, e sim a economia é que deveria se estruturar para atender as nossas verdadeiras necessidades e anseios, de um modo durável no tempo, ou seja, sustentável. A trimúrti invertida – Morte, Ciência e Mercado – é consequência da visão de que devemos manter em primeiro plano a estabilidade econômica, incorporando marginalmente as variáveis ambientais e sociais ao modelo.
Na trindade holística – Solo, Ser e Sociedade – desaparece a economia como categoria distinta: está incluída em Sociedade, à qual aquela deve servir com seus bens e serviços, guardando respeito aos limites e à integridade dos ecossistemas. Sem dúvida, é uma formulação superior à do Triple Bottom Line…

ME - O sentido da vida também foi tema de alguns de seus textos. Afinal, por que e para que estamos vivos?
HS – Em princípio, e desde as primeiras reflexões filosóficas da Grécia antiga, tem-se entendido que o sentido da vida está em sermos felizes e nos realizarmos conforme nossos impulsos biológicos e anímicos. Como o livro lida com questionamentos, não com receitas do tipo “autoajuda”, o “sentido da vida”, embora trazido à discussão várias vezes, é sempre e apenas abordado para indicar as várias vertentes que possam responder ao tema, porém nunca prescrevendo esta ou aquela em particular.

ME – Uma ideia que aguça a curiosidade de pessoas ligadas à sustentabilidade é a do crescimento econômico zero. A matemática é teoricamente simples: se vivemos em um mundo com recursos finitos, não é possível continuar crescendo para sempre. Pelo menos não o seria sem que um preço fosse cobrado por isso. Já o ouvi dizer que não concorda com essa ideia. Por que?
HS – “Crescimento zero” é uma metáfora, que pretende comunicar a ideia de que não há mais espaço ambiental para aumento do volume físico da atividade econômica. Não se trata de ser contra o “crescimento zero”: é que ele é impossível dentro da lógica do sistema econômico vigente, pois somos reféns do crescimento, em razão dos hábitos instituídos e do poder das corporações, e estamos por essa via pondo em risco a própria continuidade do modelo civilizatório. Esse é o caso típico – o “crescimento zero” ou o “decrescimento, como propõe Serge Latouche – de buscar a solução do problema de um sistema dentro da lógica do próprio sistema. Isso não funciona!
Negamo-nos a subir de patamar e contemplar as coisas de um ângulo mais abrangente, onde a economia sai do centro das considerações e prevalece o interesse do bem comum, e não o das corporações e governos, e onde o individual dá lugar ao coletivo, pelo menos no essencial à manutenção da vida com dignidade.

ME - Na sua opinião, qual seria a equação perfeita para equilibrar ganhos econômicos, sustentabilidade ambiental e justiça social?
HS – Temos que inverter a ordem. Primeiro, definir uma nova ética fundamentada no bem comum e nos interesses coletivos. Daí derivaria aquilo que, de fato, desejamos e necessitamos ter e fazer, e aí entraria a economia, que, por sua vez, seria operada a partir das possibilidades comportadas pelos ecossistemas, cuja lógica de funcionamento, aliás, ainda pouco conhecemos.
É só tirar a economia do centro da cena que as coisas tendem a se rearranjar. Que tal pensar na trindade holística: Solo, Ser e Sociedade?

ME - Você acredita que conseguiremos chegar em uma realidade próxima dela? Qual seria o caminho?
HS – Temos que reinventar o modelo civilizatório. Não é algo que se faça incrementalmente, de Rio+20 em Rio+20… Lamentavelmente, é muito mais provável que, sob uma vindoura severa desorganização socioambiental, nos movamos para novos paradigmas, abandonando o modelo vigente, notadamente na sua dimensão econômica, que se mostra incompetente para uma civilização durável. Já que não estamos sendo capazes de fazê-lo pela inteligência, talvez sejamos compelidos a fazê-lo pela dor. Mas é também um caminho…
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Reportagem por  Henrique Andrade Camargo, do Mercado Ético
(Mercado Ético)

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