terça-feira, 24 de abril de 2012

Amizade, o que é isso mesmo?


Paulo Ghiraldelli Jr*

Um dos sinais mais marcantes de nossa época é a nossa incapacidade de darmos valor para o que, racionalmente, seria aquilo que deveríamos considerar de mais valor. Negligenciamos o que, a julgar pela nossa razão, deveria vir em primeiro lugar e nos apegamos ao que, também pela nossa razão, teríamos de colocar em um plano subalterno. Muitos dizem que assim fazemos porque “o mundo moderno é agitado”. Outros dizem que agimos dessa forma por causa da “ganância de dinheiro e poder”. E há até os que tentam alguma sociologia carcomida, falando coisas como “é o capitalismo” etc. O senso comum se refestela nessas frases. Mas, não creio que explique alguma coisa. Também não nos ajuda a mudar. Não mudamos.
Nietzsche chamou os tempos modernos, tomados de certo modo não como uma época determinada, mas como um sintoma de nossa condição, como os tempos de desenvolvimento do niilismo. Os valores mais supremos teriam perdido valor. Nietzsche falava de grandes coisas. Mas ele jamais disse que sua profecia não valia também para as pequenas coisas.
Nietzsche falava da metafísica, que ela havia deixado de ser importante porque pesquisar o absoluto tinha se tornado uma bobagem. Ele falava de Deus, que dizia ter morrido, já que o absoluto não mais importava. Grandes coisas.
Outros pensadores preferiram tratar de pequenas coisas. Ou de coisas que haviam recebido o nome de pequenas recentemente, exatamente porque haviam caído no redemoinho do niilismo denunciado por Nietzsche e tomado por ele como um fio de sua filosofia da história. Eis uma pequena coisa: a amizade.
Para Aristóteles ela tinha uma importância imensa. Para Sêneca e Cícero, então, nem se fale. Para Montaigne, ela fazia a vida valer a pena ou não valer a pena. Mas, um belo dia, acordamos sem amigos, embora abarrotados de colegas e parentes. Não foi “a vida moderna” ou “o capitalismo” ou “nossa vaidade” ou “a ganância de poder e dinheiro” que fez isso. Não! Foi simplesmente essa nossa decisão de que colegas e familiares eram amigos. Uma decisão que tomamos porque durante anos viemos mudando nosso vocabulário, desconsiderando certos elementos semânticos. Fomos paulatinamente esquecendo que ágape, philia e eros, apesar de diferentes, tinham uma mesma dimensão, todas eram amor. Não prestamos atenção nessa necessidade de ficarmos atentos para o igual e o diferente nesses termos. Desse modo, a philia, o amor de amizade, passou a ser amor, sem especificações funcionais. Esquecemos no que implicava em amar por amizade. Não lidando de maneira acurada com a semântica do amor, descuidamos dos pré-requisitos de cada tipo de amor e, no caso da amizade, acabamos por esquecer o que é que deveria surgir no mundo para se ter a amizade. Perdemos a noção do que é ser amigo. O que se deve fazer para ser amigo? O que um amigo faz para o outro amigo de modo que exista a amizade? Começamos a ver que não sabíamos mais responder tais perguntas.
Os americanos caíram nisso primeiro que nós, de língua exclusivamente latina. Eles passaram a usar love para quase tudo. A minha geração não fazia isso. Não usávamos amor para quase tudo. Mas a geração atual que fala o português, no Brasil, diz “eu amo tudo isso” para um hambúrguer! Os americanos usaram friendship para namoro. Ora, a minha geração não tinha verbos como “ficar” ou “sair” no campo do amor, ou era namoro ou era amizade. Hoje, isso se perdeu. Falamos o “português americanizado”, eu diria, mais ou menos para fazer graça. Ou seja, podemos fazer sexo com amigos e amigas e não pensarmos em termos qualquer vínculo de namoro com eles. Não estou dizendo que isso é ruim ou bom. Não estou fazendo uma avaliação moralista, embora esteja falando de moral. Estou atentando para nossas transformações conversacionais, para nossa alteração semântica, de modo que possamos perceber como tais alterações nos levaram a não conseguir pronunciar a palavra “amizade” com as especificidades semânticas que ela implicava. Então, ao perdermos isso, ficamos sem entender a funcionalidade da amizade. O que é ser amigo? O que faz um amigo? Ninguém sabe.
As idéias de boa vontade, confiança e lealdade a toda prova, que eram os três elementos nucleares pelos quais antigos e renascentistas louvavam a amizade, veio abaixo. Chegamos mesmo até a denegrir isso, apontando essas palavras como algo distante de qualquer virtude ou nobreza. Palavras assim caíram na oposição da palavra “justiça”. Ser leal, então, poderia significar ser o oposto de justo. E deveríamos seguir a justiça cega, não a justiça com olhos. A justiça com olhos seria amizade, lealdade, e não seria justiça. Ao opormos a lealdade à justiça, fazendo a segunda algo bom demais e acima de qualquer suspeita, jogamos a amizade para os piores lugares.
Por isso, deploramos a amizade. Quando vemos a fotos de amigos, ficamos com raiva. Dizemos: “são cúmplices de algum crime”. Vemos quadrilhas onde deveríamos ver amigos. Não entendemos mais o sentido da amizade. Tudo deve ser limpo e, para ser limpo, tem de ser justo, e onde impera a justiça todo laço de amizade deve ser afastado. Criamos com isso uma sociedade formal e formalizada, que se imagina justa, mas que carece de justiça, talvez porque a justiça verdadeira não venha da não-amizade e, sim, da amizade, da ampliação da lealdade para mais pessoas do que nosso grupo de amigos iniciais (uma hipótese que compartilho com Richard Rorty).
Termino com um episódio vivido por Florestan Fernandes.
Tornando-se deputado e, não tendo nunca sido político, Florestan não tinha outros amigos de confiança para trabalhar com ele. Então, contratou seu filho, o jornalista Florestan Fernandes Jr., para ir para o Congresso, trabalhar no seu gabinete. Ele confiava em quem tinha de confiar: no amigo. O amigo dele era o filho dele. Eis então que denunciaram Florestan Fernandes: ele estaria promovendo o nepotismo! Florestan Fernandes Jr. teve de ser despedido e o nosso sociólogo ficou sem nenhum amigo de verdade no seu gabinete. Aquilo atrapalhou bem os serviços de Florestan e chegou a prejudicar a sua atuação como deputado. Ele não sabia trabalhar com política senão com amigos! Sua atividade como parlamentar não era uma atividade meramente burocrática e profissional, era um projeto filosófico de vida. Fazia parte de uma militância como pessoa, colocada a serviço da educação brasileira no âmbito do Congresso. Por isso, era algo pelo qual ele tinha de estar ombreado com um amigo. E seu filho era jornalista, não podia abandonar o emprego em São Paulo sem ter outro em Brasília, no qual realmente estava trabalhando – mais do que qualquer outro ali no Congresso! Florestan Fernandes, afinal, não podia ter ali ao lado dele uma profissional do tipo “secretária de recados”. Fazia-se necessário, ali, antes de tudo, a lealdade. A lealdade ali iria promover a justiça.
Confundimos tudo isso e, hoje, quando esperamos encontrar um amigo, nós, os da velha guarda que ainda imaginam como possível a amizade, encontramos somente a formalidade e o ideal da justiça cega. Vivemos então de tombos em tombos. Imaginamos que alguns vão ser amigos, mas eles já há muito não sabem o que é a amizade e, pior, não a tomam como importante, não mais.
A justiça que se faz contra a amizade, e que realmente quer se tornar cega, acaba mesmo não só cega, mas surda, muda e insensível. Termina por ser justiça injusta.
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*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e co-apresentador do Hora da Coruja na Just TV.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/04/23/amizade-o-que-e-isso-mesmo/

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