sexta-feira, 30 de março de 2012

O arquiteto do sustentável

AP / AP 
Foster: "No Rio, áreas de favelas são formadas por prédios baixos e ruas estreitas. Para melhorar a qualidade de vida é preciso valorizar os pontos fortes das comunidades."
Ele tem o título de "lord". Algo elegantemente apropriado para um arquiteto inglês, de 74 anos, que coleciona um razoável número de prêmios, incluindo o prestigiadíssimo Pritzker - considerado o Nobel da arquitetura.
Lord Foster, ou Norman Foster, fez fama pela irreverência, aspiracional e comprovada, nas suas obras. Todas elas, diga-se, preocupadas com a sustentabilidade - isto quando o termo ainda não era uma pregação latente no mercado.
Dono de um estilo refinado - e, porque não dizer, atrevido -, Lord Foster ficou conhecido por usar soluções tecnologicamente inovadoras, como sistemas de construção semelhantes aos adotados na indústria pesada; abusar de superfícies curvas; diversificar matéria-prima, além, claro, de caprichar no desenho urbanístico.
Atualmente, ele está engajado no tema "cidades do futuro" e seu escritório, o Foster and Partners - sediado em Londres e com unidades em mais de 20 países - encabeça a construção de Masdar. Trata-se de uma cidade planejada e sustentável que está sendo erguida no meio das desérticas dunas de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes.
É uma cidade compacta, orçada em investimentos para lá de milionários, amigável para pedestre e independente de carros. Um lugar para apenas 50 mil pessoas, que não tem emissão de carbono, onde todos circularão de transporte público: trens elétricos com paradas planejadas para que ninguém tenha de andar mais de 200 metros até uma parada.
Admirador confesso de Oscar Niemeyer, a quem visitou quando esteve no Rio, no ano passado, Foster falou com o Valor na semana passada.

Valor: Um ano atrás, o senhor esteve no Brasil e conheceu em primeira mão nossas megacidades, seus problemas e suas belezas. O senhor identificou quais são os nossos principais problemas e como devemos lidar com eles?
Lord Foster: O Brasil está experimentando um período de crescimento econômico, a população teve aumento de renda e mais acesso ao crédito. Houve maior consumo de carros e, consequentemente, de congestionamento, poluição e outros problemas associados a estes. Para estimular a diminuição do uso de automóveis, é preciso investir em segurança, em meios de transportes acessíveis e eficientes - tornando essa escolha mais interessante e conveniente à população. Ao mesmo tempo, os projetos urbanos devem ser holísticos e contemplar, como um todo, os sistemas de transporte e de infraestrutura, o abastecimento de energia, os espaços públicos, a densidade urbana e a inserção adequada dos edifícios nas cidades.

"Brasília foi concebida num momento 
em que o carro era o futuro do transporte - 
diferentemente dos tempos atuais"

Valor: E como isso poderia ser feito?
Foster: O fundamental é considerar o papel do setor privado e de modelos de financiamento para viabilizar essas melhorias de infraestrutura, sem esquecer que as estratégias devem se antecipar às necessidades futuras. Ou seja, deve existir um planejamento a longo prazo, mesmo porque contratos de curto prazo com a iniciativa privada podem impedir essa visão mais ampla e integrada do processo de desenvolvimento urbano. É preciso criar uma equação equilibrada. Precisamos adaptar as cidades existentes para acomodar a população crescente e encontrar maneiras de melhorar a qualidade de vida das pessoas, à medida que a densidade urbana cresce. Existe também uma necessidade de novas comunidades sustentáveis.

Valor: Mas cada país tem a sua história...
Foster: O Brasil mostrou uma visão ousada e utópica, associada a planejamento urbano, quando decidiu projetar Brasília na década de 1950. No entanto, a capital federal foi concebida num momento em que o carro ainda era considerado o futuro do transporte - diferentemente dos tempos atuais. Estávamos seguindo os passos de Oscar Niemeyer no plano diretor de Masdar - uma cidade planejada e sustentável que está sendo construída em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Mas o papel do automóvel mudou fundamentalmente ao longo do tempo. Hoje há mais interesse em cidades compactas, que sejam amigáveis para pedestres e menos dependentes do carro.


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Foster lidera o planejamento de Masdar.
 
Valor: Em linha aos novos conceitos urbanísticos, o que mais essa cidade "ideal" contempla?
Foster: Masdar é uma comunidade de alta densidade, acolhedora, livre de carros, neutra em carbono e com zero de resíduo. Privilegia a construção de edifícios com vãos livres e espaços públicos. Essas soluções funcionam como uma espécie de 'cola urbana' que conecta a população e a cidade. Aliás, o que eu gosto do trabalho de Niemeyer é que até mesmo seus edifícios residenciais permitem a circulação de pessoas como se fosse uma área comum e pública. [Um exemplo é o edifício paulistano Copan, idealizado por Oscar Niemeyer, que tem 1.160 apartamentos distribuídos em seis blocos, uma área comercial no térreo com 72 lojas e um cinema, o antigo Cine Copan, que funcionou até 1986].

Valor: O senhor esteve no Rio e disse que a cidade é um dos lugares mais bonitos que já conheceu. Sabemos que a cidade é cheia de problemas, especialmente em relação às condições das pessoas que vivem nas favelas. Quais seriam suas sugestões ou conselhos para melhorar a qualidade de vida e minimizar os problemas de megacidades como esta?
Foster: O Rio de Janeiro é uma cidade maravilhosa, cheia de energia, um lugar de imensa beleza e contrastes - em nenhum outro lugar você pode encontrar o mundo natural de florestas tropicais, praias e montanhas nas proximidades de uma experiência dinâmica urbana. Mas há um contraste dramático entre áreas ricas e pobres e sem solução única para um conjunto complexo de questões sociais. No Rio, áreas de favelas são predominantemente formadas por prédios baixos e ruas estreitas, com pouco acesso. Para melhorar a qualidade de vida nestes lugares, é preciso valorizar os pontos fortes das comunidades locais, enaltecendo, por exemplo, as escolas de samba e suas tradições carnavalescas. Até porque, projetos que não refletem a forma como as pessoas vivem não têm sucesso no longo prazo.

 Uma cidade planejada e sustentável que está sendo erguida no meio das desérticas 
dunas de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes

Valor: O senhor já executou algum projeto em comunidades semelhantes?
Foster: Desenvolvemos um estudo para a favela de Dharavi, em Mumbai, uma das maiores favelas do mundo. A equipe do projeto passou um bom tempo conversando com a comunidade e estudou a natureza física do assentamento. Havia questões urgentes, como a falta de saneamento adequado, habitação de má qualidade e uma real necessidade de proteção contra enchentes. Mas também encontramos uma comunidade forte e engenhosa: os moradores de Dharavi reciclavam 80% dos resíduos de Mumbai. Nossa proposta foi melhorar o acesso, o saneamento básico e distribuição de energia. Com isso, conseguimos proporcionar novas linhas de transportes públicos e abrir vias maiores para os pedestres, criando mais parques e áreas para convivência pública. Esta abordagem pode ter um grande impacto na segurança, se aplicado em áreas de favelas de qualquer cidade. Outra preocupação foi a integração de bairros da favela com a cidade e toda a infraestrutura de serviços públicos, solucionando os problemas de irregularidades [no Brasil, os famosos gatos]. Também desenvolvemos o uso de fontes alternativas de energia.
 
Valor: Qual foi o resultado?
Foster: Aprendemos muito ao ouvir os moradores de Dharavi e analisar as falhas das intervenções do Estado. Nossas propostas enfatizaram a importância da regeneração da comunidade de dentro para fora, em vez de simplesmente passar um rolo compressor sobre as favelas.

Valor: Como o senhor certamente deve saber, o Brasil sediará os jogos da Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, no Rio. O que o senhor sugeriria para que possamos ter menos impacto sobre nossa vida diária e proporcionar um bom ambiente para os turistas e para a população?
Foster: O primeiro passo é olhar para além de 2016 - no longo prazo. Os jogos vão criar um "novo pedaço" de cidade dentro da cidade e que, depois, precisará ser integrada. Daí, a importância de investir em projetos mais amplos, que deem prioridade a um plano sustentável para os transportes e para a infraestrutura. As decisões a serem tomadas agora são vitais e terão reflexos no futuro.

Valor: O senhor criou muitos projetos ao redor do mundo prevendo a melhoria das megacidades e conforto de sua população, como em Londres ou na Alemanha. Há algum projeto que se adapte às nossas condições e necessidades?
Foster: Nós não adaptamos projetos já existentes para atender novos clientes. Pelo contrário, o nosso trabalho é sempre começar do zero, de acordo com a realidade de cada região. Há princípios básicos, como investir em soluções integradas e sustentáveis. Há também importantes lições a serem extraídas do passado, que foram estabelecidas para atender o lugar e o clima, utilizando recursos e técnicas locais. Caso contrário, construir um prédio em Dubai ou em Londres será idêntico, o ar-condicionado resolveria a diferença do clima - extremamente oposto.
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 REPORTAGEM Por Chris Martinez
FONTE: Valor Econômico on line, 30/03/2012

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