sábado, 24 de março de 2012

De Dostoiévski a hoje: a fenomenologia do mal cotidiano.

                                               Roberto Esposito*

Um livro de Simona Forti ajuda a entender 
as origens e as metamorfoses da violência. 
O epicentro simbólico em torno do qual 
gira o texto está no célebre episódio dos Irmãos Karamázov, em que aparece o Grande Inquisidor
 A necessidade é de desmontar a jaula interpretativa 
dentro da qual o problema foi encerrado 
por séculos de tradição filosófica.

Como pode acontecer que, em um dia como outro qualquer, um homem desça de sua moto, entre em uma escola judaica em Toulouse, persiga e atire a sangue frio contra crianças com seus pais, depois suba novamente na moto e se afaste? O fato de ele ser o mesmo – ao que parece – que, na semana passada, matou alguns militares negros acrescenta ao horror do episódio uma motivação racista que o torna ainda mais odioso, mas não resolve o enigma que se perfila por trás dele.

Por que, em quais vestes, com quais lúgubres movimentos, o mal volta a se assomar em um mundo que parece tê-lo empurrado para as suas margens? E é o mesmo mal que nos persegue desde sempre? Que devastou a Europa nas primeiras décadas do século XX? Ou é um mal diferente, nos modos e nas intenções, senão nos seus resultados homicidas? Quais são e de quais fontes surgem os demônios que ainda se aferram à garganta?

Uma resposta de alto nível a essas perguntas é agora fornecida por Simona Forti em um livro, recém-publicado pela editora Feltrinelli, intitulado justamente I nuovi demoni. Ripensare oggi male e potere [Os novos demônios. Repensar mal e poder hoje]. É preciso dizer desde já que ele vai muito além de uma reconstrução, embora completa, da reflexão do século XVIII-XIX sobre o mal, para se engajar em um verdadeiro corpo a corpo com a tradição filosófica contemporânea.

A questão do mal – na sua relação constitutiva com o poder – se torna o ângulo de perspectiva a partir do qual a autora consegue encerrar em um mesmo giro de horizonte o pensamento que, de Kant, se move, de um lado, para Heidegger e Levinas e, de outro, para Nietzsche e Foucault, até chegar ao atual debate sobre niilismo e biopolítica.

O epicentro simbólico e o eixo de rotação interno do livro podem ser encontrados no mais célebre episódio de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski. "Ei-lo: não estamos Contigo, mas com ele" – sussurra o Grande Inquisidor a Cristo, que voltou para entre os homens e foi preso, enquanto centenas de hereges queimam ad maiorem Dei gloriam.

Nessa cena lendária em que o ancião enuncia a Cristo os motivos pelos quais a Igreja teria escolhido o diabo, a autora identifica o "paradigma Dostoiévski" – aludindo ao olhar abissal com que a autora de I demoni rompe o limiar extremo diante do qual, mesmo captando a enigmática relação entre liberdade e mal, Kant havia se retraído, com medo da sua própria descoberta.

O rosto da medusa sobre o qual o escritor russo lança um feixe de luz, dilacerando de repente o véu com o qual a tradição metafísica o cobrira, é a consciência de que ser humano não faz o mal por ser inconsciente de fazê-lo, ou talvez por ser obrigado pelas circunstâncias, mas sim porque obtém dele o prazer inebriante de submeter outros seres humanos, até destruir a sua carne e o seu espírito.

Nesse sentido – que é aquele, primordial e ainda atual, da dominação e do sangue, da violência e da rendição –, toda uma linha interpretativa falou de niilismo como capacidade de reduzir o ser humano literalmente a nada, a pura matéria, viva ou morta, de uma vontade de poder desmedida.

Mas as palavras do Grande Inquisidor também dizem mais alguma coisa, não totalmente perceptível na fúria devastadora dos heróis negativos de I demoni. Eles dizem que o poder – como é exercido em todos os incunábulos da soberania – não é senão a outra face de uma vontade de obediência, que pede para ser ativada para proteger os seres humanos não só dos riscos externos, mas também de uma liberdade que eles temem exercer. Aqui, no coração da sua análise, Simona Forti abre uma passagem hermenêutica, já inaugurada por Nietzsche e alargado, de forma diversa, por Hannah Arendt e Michel Foucault.

No seu centro, está a identificação daquela vontade de vida ao qual a reflexão contemporânea atribuiu o nome de biopolítica. Independentemente do que se quiser entender com isso, o que esse dispositivo teórico coloca novamente em dúvida é aquela relação vertical entre vítima e carnífice que há muito tempo foi atribuída ao regime do mal – mesmo quando este se ampliou infinitamente tanto no número daqueles que o exerciam, quanto no daqueles que foram obrigados a padecê-lo.

Porque, nem mesmo quando essa relação – entre a maldade desenfreada dos perseguidores e a indigência mais inerme das vítimas – conheceu, no genocídio judaico, o ápice e, por assim dizer, o grau zero, nem então tratou-se de uma simples relação a dois. Mesmo nesse caso, entre uns e outros, inseriu-se a presença cinza e incolor de demônios menores que também colaboraram indiretamente com o massacre ou o permitiram com a sua inerte complacência.

Do livro de Hilberg sobre a Destruição dos judeus europeus, ao de Browning, Homens comuns, e de Goldhagen, Os carrascos voluntários de Hitler, tem sido amplamente documentado o papel desses desk killers que, protegidos pela sua tarefa burocrática, constituíram as engrenagens, silenciosas e decisivas, do mecanismo de extermínio. Mas talvez nada mais do que o processo de Adolph Eichmann – documentado nas extraordinárias reportagens de Hannah Arendt, editados com o título, talvez redutivo, mas certamente sintomático de A banalidade do mal – expressa o caráter, aparentemente inócuo, desse “Efeito Luciferino”, como Philip Zimbardo definiu o comportamento sádico induzido pela imitação e pela sujeição a um aberrante princípio de autoridade. E, além disso, o que mais transparece do sorriso estúpido dos soldados norte-americanos que, em Abu Ghraib, se fotografaram ao lado do corpo inerte de inimigos mortos ou torturados?

O que a autora deduz da evocação dos novos demônios – da inércia e do conformismo, da obediência cega e da irresponsabilidade – é a necessidade de desmontar a jaula interpretativa dentro da qual a tradição filosófica encerrou, efetivamente neutralizando-a, a fenomenologia do mal. O mal não é nem um simples vinco do ser, destinado a ser ressarcido e dissolvido nos processos de secularização, nem uma substância metafísica eternamente em luta com o princípio, igualmente absoluto, do Bem.

Ele, tudo menos enrijecido em uma lívida sentença de morte, nasce e se desenvolve como efeito sinistro de uma indiferenciada vontade de sobrevivência – sobrevivência a qualquer custo, mesmo o de se apoiar na infinita pirâmide de mortes que Elias Canetti vislumbrou nas características desfiguradas de um poder original (sobre o qual veja-se o belo ensaio por Giacomo Marramao Contro il potere, Ed. Bompiani 2011).

Mas Simona Forti foi além da desconstrução de uma leitura simplesmente dicotômica do mal. O que se perfila nas páginas finais da sua genealogia, dedicadas a dois autores do dissenso contra o regime soviético como Jan Patocka e Václav Havel, é uma modalidade não apenas crítica, mas também afirmativa de entender a relação entre poder e sujeitos. Se é verdade, como defendeu Foucault, que todo processo de subjetivação tem a ver com alguma forma de assujeitamento, também é verdade que o poder sempre gera, senão atualidade, ao menos a possibilidade de uma resistência.

Para mantê-la desperta, mesmo quando um peso infinito parece estar sobre as nossas vidas, é preciso tentar um desdobramento com relação a nós mesmos. De resistir à tentação do cedimento e do comprometimento com relação ao mal, através da ativação de uma força contrária à qual a tradição ocidental às vezes deu o nome, límpido e intenso, de alma.
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* Filósofo italiano.  Artigo publicado no jornal La Repubblica, 21-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 24/03/2012
Imagem da Internet-: Dostoiévski.

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