quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Cinzas e a garrafa de Klein

Roberto DaMatta*
Como máquinas de marcar, regular e inventar o tempo, determinando suas eventuais funções - tempo de colher e plantar, de rir e de chorar, de vadiar ou de trabalhar, de obedecer ou de enlouquecer, de discursar ou de cantar -, as festas e os rituais realizam cortes nas rotinas diárias. Fatiar o tempo é, como dizia Thomas Mann, como tentar cortar a água, mas se não podemos concretizar o tempo, podemos ao menos tentar enjaulá-lo ou enredá-lo por meio de convenções que contrariam ou repudiam a realidade do chamado aqui e agora.
Como? Promovendo descontinuidades naquilo que é vivido como uma experiência sem início ou fim. Por meio das baterias, da nudez das mulheres, da confusão entre fundo e forma e pela conjunção da entrada e da saída, tentamos separar de uma continuidade infinita algo discreto: um drama com início, meio e fim. Todo ritual tem um alvo e hoje, querido leitor, você deve estar exausto ou pensando que este carnaval de 2012 que acabou de acabar foi mais uma disciplinada e programada loucura. A menos que nele e por meio dele você tenha vivido alguma coisa extraordinária.

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Quando menino, eu ouvi de um dos meus tios maternos uma história de carnaval que se equipara a uma parábola e que poderia se transformar num conto.
A história era uma das poucas narrativas produzidas pelo meu avô Raul, desembargador aposentado pelo Estado do Amazonas e chamado por esses tios de "velho Raul": um homem sisudo como esses magistrais magistrados do STF. Baiano de pouco falar, que não gostava muito de criança, ele se satisfazia mais em ver os filhos, enteados, noras e netos falando e discutindo do que tomando parte ativa nas intermináveis discussões e saraus narrativos praticados pela nossa família.
O caso do velho Raul contava o seguinte: num antigo carnaval baiano, um jovem conquistador apaixonou-se por uma linda morena e dançou com ela todo o carnaval. Em vez de tomar parte nos mil e um eventos que constituem a teia das festas carnavalescas, o jovem concentrou-se apenas naquela mulher misteriosa cujo enorme decote combinava com uma meia-máscara.
Todas as noites, eles rodopiavam pelos salões, enredados nas serpentinas e, entre taças de champanhe com pingos de confete, olhavam-se com aquela voracidade capaz de enxergar a alma que, afinal de contas, o carnaval tanto deita em risco. Ao fim do terceiro e último dia, vésperas das cinzas que são o símbolo da fragmentação ou do fracionamento de todos nós, a moça atende às propostas mais abusivas e decide acompanhar o rapaz para a casa de um amigo. Naquele tempo, vovô remarcava, não existiam hotéis e tudo tinha de ser feito com o maior cuidado.
Chegaram na casa combinada pelas 3 horas da manhã. Tecnicamente já estavam na Quarta-feira de Cinzas, mas os beijos apaixonados e os abraços atrevidos garantiam a licença carnavalesca levando para a alcova o clima do baile. Despiram-se e na hora da verdade que os corpos nus não podem esconder, o jovem descobriu que a mocinha linda e envergonhada era um homem.
Essa história sempre terminava com um sorriso dos meus tios. Não me passou pela cabeça perguntar a nenhum deles o que ocorreu em seguida. Hoje, eu compreendo o peso da pergunta e ela me diz que certamente nenhum dos ouvintes ousou perguntar o desfecho desse caso de carnaval para o nosso vetusto juiz de juízes.

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Penso que, neste nosso mundo globalizado, o grande sertão inventado pelo carnaval da parábola baiana de vovô Raul não promove mais suspense. Pois se entre homem e mulher existem distinções biológicas palpáveis, nada cobre o espaço entre o masculino e o feminino, exceto um conjunto de disposições ou disponibilidades de distinção (ou extinção) convencionais e arbitrárias, de tal modo que um lado pode muito bem ultrapassar o outro. O resultado desses encontros seria uma figura como um cachorro que sumiu comendo o próprio rabo; ou como uma garrafa de Klein - ou uma inversão transversa seja lá o que isso - viva o carnaval! - queira dizer.

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Descubro que as máscaras do travesti personagem do programa humorístico Zorra Total, Valéria, e de sua coadjuvante, Janete, foram as mais vendidas neste carnaval, ao lado das do palhaço político Tiririca e de Ronaldinho. No Halloween, o nosso americanizado Dia de Finados, a máscara de Michel Temer abafou. Mas nesses dias de folia e inversão do mundo, nada melhor que essas ambiguidades de ambiguidades que remetam ao próprio espírito do Rei da Desordem.
Todo carnaval tem temas. Nos últimos anos vimos os bailes que dividiam um carnaval fechado de um outro, mais aberto, realizado nas ruas, praias e praças, serem substituídos pelos desfiles de Escolas de Samba a ponto de uma "descarnavalização" - de um restabelecimento do fosso hierárquico entre atores e espectadores que, como sugeria Bakhtin, o grande estudioso dessa festa, o carnaval destrói porque ele conduz, como todos nós, brasileiros, sabemos bem, a uma dramática e quase sempre grotesca ou cômica troca de lugar.
Mas a despeito de tudo, eu espero que nesta Quarta-feira de Cinzas, que todo ano pauta minha escrita, você tenha se divertido num dos mil blocos que hoje parecem ser mais um centro de inspiração para "brincar" e "pular" do nosso velho e sempre recorrente carnaval.
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão
Fonte: Estadão on line, 22/02/2012
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