sábado, 17 de dezembro de 2011

O que ameaça a literatura? Com a palavra, uma autora

PAULA MASTROBERTI*
papa Bento XVI usa um tablet em sua residência, no Vaticano
Tenho acompanhado atentamente o debate publicado há dois sábados neste espaço, sobre os temas literatura e seu ensino. Em Ana Munari, vimos uma preocupação com os novos suportes de leitura e os novos leitores que estão se formando através deles. Em Marcelo Frizon, uma preocupação com a literatura e com o papel do autor.

Pois bem, eu sou autora – não sei se uma boa representante da classe, mas esforçada. Tenho alguns prêmios, tenho lá meu número de leitores, então sou reconhecida como tal. O que me avaliza a dar pitacos a respeito de um assunto que me inclui, como participante criativa do literário.

Em primeiro lugar, temos esse limite entre leitor e autor, ora um, ora outro: um escritor o é principalmente porque gosta de ler. E o que lê um escritor? Ora, de tudo. De tudo inclui até mesmo o que não for literatura: filmes, obras de arte, quadrinhos. Tenho um livro de poesia de Joelson Ramos, inspirado em bulas de remédio; ele vem, por sinal, dentro de uma caixa de tarja vermelha. Manoel de Barros já prefere ler a própria terra. Em suma, escritor é isso: um cara que lida com as palavras porque as ama, mas ele não tira palavras do nada – antes, ele as tira de tudo. E as lê, não importa no que venham embaladas. Elas podem estar embrulhadas em jornal, e ele vai adorar recebê-las. Eu, particularmente, as tenho preferido em tablet. E, no entanto, acabo de comprar um tijolo de 3,7 kg e 816 páginas, chamado – não se trata de ironia – O Livro no Brasil. Leitura de férias, porém nada portátil (não vai dar pra levar par beira da praia).

A segundo limite diz respeito à literatura e seus suportes. Quem conhece a história do livro sabe que o autor foi inventado a partir dele, e os modos e hábitos de leitura também. O códice gerou o copyright (o caso de Cervantes é famoso, pois Dom Quixote ia sendo impresso por aí sem seu consentimento). Por outro lado, a consciência de ser “dono” de uma publicação impressa fez com que o autor forçasse o códice a uma adaptação aos estilos literários e diferentes formas de escritura. O mais clássico exemplo é o dos romance de folhetim, divididos em capítulos para o jornal; repassados para livros, mantiveram a divisão, criando o suspense aproveitado por outros autores daí em diante; temos ainda Mallarmé, cuja poesia mexia com a diagramação e os efeitos tipográficos. O meio, portanto, também é a mensagem, no caso, literária.

"Quanto à literatura, não se preocupem:
essa, como qualquer outra arte,
 não depende de nada que não seja a criatividade,
 qualidade fundamentalmente humana
que permite, no seu exercer, a liberdade
de tomar tudo a si, sem preconceitos
ou fórmulas."
A literatura está mudando. As experiências são muitas, como – curiosamente – os artigos anteriores concordaram em exemplos citados. Elas constituem literatura? Por que não? Agora, se é boa ou má, isso – como tem acontecido desde o épico, cujo primeiro suporte foi a voz e o corpo do rapsodo – depende de outros critérios, que podem ou não valer num dado contexto: tantos já foram vaiados em seu tempo e depois consagrados, tantos consagrados acabaram esquecidos.

Os novos suportes tecnológicos produzem novas personagens envolvidas com o literário tão híbridas quanto os primeiros: essa interação gera uma matéria rica e variada, disponível a todos (talvez mais do que através de livros, mesmo se pensarmos nas diferenças sociais que nos assombram). Por isso, concordo com Munari quanto à necessidade de reavaliarmos os nossos parâmetros de ensino da leitura e da literatura. É preciso mesmo educar para tais transformações, justamente para que possamos usufruir e nos apropriar das novidades de forma mais crítica, mais reflexiva. Nesse sentido, Frizon apresentou em seu artigo dois motivos para temer a mudança: o primeiro deve-se sobretudo ao medo de que percamos a nossa memória comum, o sentido do pertencimento, que atravessa não só a literatura, mas toda a arte. O segundo é o medo de perder leitores. Contudo, nossa memória literária já está sendo transferida para os aplicativos, para os e-books. Ela é de domínio público, e mais fácil de ser acessada. Ela já participa da novidade, revitaliza-se através dela como uma avó na companhia de seus netos. Sobre os leitores: nós os perderemos, sim, se prosseguirmos acreditando que o único leitor é aquele que lê somente livros impressos e um certo tipo de escritura, à exclusão de outros.

Eu vejo o meu livrão de 816 páginas ao lado do meu tablet, o leitor do Skoob ao lado daquele que organiza suas leituras num caderno à lápis, o fanficcer ao lado do seu autor predileto. Machado de Assis, que publicou em jornal até ser editado pela Garnier, já foi encadernado em papel-bíblia, publicado em pocket, está online, versado em filme e em quadrinhos. E será Machado.

Importa é como seremos educados para tudo isso. Se for para refletir e participar ativamente, se educados para uma leitura em escolha livre e sem preconceitos, seremos emancipados a inventores das palavras e dos suportes, e eles serão transfigurados por nós e para nós. Quanto à literatura, não se preocupem: essa, como qualquer outra arte, não depende de nada que não seja a criatividade, qualidade fundamentalmente humana que permite, no seu exercer, a liberdade de tomar tudo a si, sem preconceitos ou fórmulas. Que ela apareça e seja compartilhada por e através de todos, autores-fruidores, em todas as vestimentas que lhe apetecer.
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*ESCRITORA, ARTISTA PLÁSTICA E DOUTORANDA EM LETRAS PELA PUCRS, AUTORA DE “LOUCURA DE HAMLET” (ROCCO, 2010)
Fonte: ZH/CULTURA on line, 17/12/2011

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