terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Falso progresso

Antonio Delfim Netto*

O ano de 2011 termina com uma formidável incerteza. Sobreviverá a Eurolândia à crise que a envolve? Não se trata apenas de uma grave situação, cuidadosa e insidiosamente construída desde a introdução do euro como a moeda dos 17 países que a ela aderiram. A trágica dúvida é que suas lideranças políticas parecem perplexas diante da complexidade do problema.

Não entendem que os pequenos "remendos" que acompanham cada reunião da Comunidade são insuficientes para dar oxigênio a uma ideia politicamente ousada, mas necessária para a tranquilidade de um continente que tem arbitrado militarmente suas idiossincrasias há 25 séculos, com enorme custo de vidas humanas e destruição do capital, trabalho congelado do passado.

Muitos economistas criticaram a introdução do euro, menos como uma ideia errada e mais como uma precipitação, pela ausência de um forte suporte fiscal que é o "garante" de qualquer federação. Poucos, entretanto, anteciparam que o euro, sem um poder fiscal centralizado e capaz de sustentar políticas redistributivas entre os Estados membros, continha em si a semente de graves problemas. O dinamismo diferenciado de cada um acabou levando a déficits em conta corrente, que só podem ser eliminados ou pela redução da taxa de crescimento dos países devedores, ou pelo seu endividamento externo.

Europa precisa avançar no aprofundamento de um federalismo fiscal

O primeiro remédio é amargo. Logo, todos preferiram o segundo. Puderam utilizá-lo pelas condições do mercado financeiro: 1) um aumento da alavancagem produzida pelas "inovações", cujos riscos eram muito mal avaliados; e 2) pela "simpatia" das taxas de juros dos papéis soberanos dos países à virtuosa taxa da Alemanha. Apenas para dar um exemplo: os papéis soberanos da Grécia, que antes da substituição da sua moeda (dracma) pelo euro pagavam 13% de juros, caíram, rapidamente, para 3%!

Há alguma injustiça quando se julga o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) estabelecido no Tratado de Maastricht, cujos "princípios" deveriam ser observados pelos Estados que pretendiam usar o euro em 1997. O PEC objetivava um equilíbrio fiscal que, em condições normais, não deveria produzir um "déficit estrutural" maior do que 0,5% do PIB (e equilíbrio dentro do ciclo), podendo chegar a 3% em momentos de crise.

Adicionalmente, a relação dívida bruta/PIB não deveria ser superior a 60%. No período preparatório, essas condições foram relativamente bem cumpridas pelos "aspirantes" ao euro. De novo, apenas para dar um exemplo: em 1991, a Grécia tinha um déficit estrutural de 12% e em 1999 ele caiu para pouco menos de 2%. O mesmo aconteceu com a Itália (de 12% em 1991, para 1,5% em 1999).

O que não funcionou foi o controle de Bruxelas, que aceitou uma interpretação maligna: os déficits estruturais não deveriam ser superiores a 3%, não importando em que estágio estivesse o ciclo econômico. Na última reunião da Comunidade Europeia, não houve avanço sobre Maastricht, mas apenas a ratificação do que fora acordado e não cumprido, o que seguramente não é muita coisa.

A tragédia mostra que é preciso avançar no aprofundamento de um federalismo fiscal, que torne irrelevantes os déficits em conta corrente dos países devedores através de mecanismos de transferência, como existem em todas as federações. Com isso os "devedores" não têm que sacrificar seu crescimento ou, alternativamente, aumentar o seu endividamento público e privado. O horror alemão a essa solução é tal que o presidente do Bundesbank (membro do BCE) apressou-se em dizer que "fizemos em Bruxelas um pacto fiscal, não uma união fiscal".

Para entender o que precisa fazer a Eurolândia, nada melhor do que olhar para o progresso fiscal da Federação no Brasil desde a Constituição de 1988, com a reafirmação dos fundos de participação de Estados e municípios; com a execução do Proer e Proes; com a criação da Secretaria do Tesouro Nacional; com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal e a substituição dos papéis estaduais e municipais por títulos federais (sem perdoar as dívidas, mas dando aos entes federados as condições de honrá-las no longo prazo) e estabelecendo rígido controle do endividamento estadual. Ou então, lembrar o que fez Alexander Hamilton com a dívida dos Estados Federados.

Em poucas palavras: para funcionar como uma federação, os participantes da Eurolândia têm de criar um poder central adequadamente eleito que: 1) controle as finanças das unidades federadas; e 2) dê ao seu Banco Central as condições de autonomia operacional para fiscalizar e garantir a liquidez do sistema financeiro e ser o emprestador de última instância. Não é possível que um ou dois países (Alemanha e França) tenham esse poder, pelo déficit democrático que isso representa.

É uma ilusão pensar que houve grande avanço, além do restabelecimento do princípio que no ciclo é preciso o equilíbrio fiscal, e que déficits estruturais acima de 0,5% do PIB serão escrutinados com microscópio. A primeira dificuldade é que o cálculo do déficit "estrutural" - no fundo, o déficit público que aconteceria, se o país estivesse usando toda a sua capacidade produtiva - exige que se conheça o famoso "produto potencial", que não é uma variável observável, mas uma idealização problemática, sempre sujeito a discussão.

A separação algébrica que leva à identidade déficit fiscal = déficit cíclico + déficit estrutural é muito interessante do ponto de vista didático (no quadro-negro, que aceita quase tudo). Na prática, a coisa é outra. As despesas do governo são discricionárias, a carga tributária depende do "ciclo" e do comportamento do governo, de forma que não há nada constante. Isso sugere que as discussões para calculá-lo (entre os sofisticados burocratas de Bruxelas) serão infinitas...
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* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 20/12/2011
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