sábado, 22 de outubro de 2011

Regina Zilberman - Entrevista

“Vivemos em tempos de guerra”

O soldado americano Dwight Exe escreve uma carta durante uma pausa nos combates da Guerra da Coreia, em 15 de novembro de 1951. Cerca de duas décadas antes, Freud e Walter Benjamin haviam notado o silêncio dos ex-combatentes oriundos das trincheiras da I Guerra Mundial
Regina Zilberman, professora de literatura da UFRGSO que há de comum entre os enredos da Ilíada, de Homero, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, e O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo? Uma disciplina ministrada pela professora Regina Zilberman junto ao Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS fornece uma resposta que pode parecer surpreendente à primeira vista: a guerra.
Pesquisadora da história da literatura em língua portuguesa, Regina notou que os feitos de armas estão mais presentes do que se poderia supor nas letras lusófonas.
A bibliografia da disciplina Literatura, Guerra e Revolução cobre quase três milênios de história da literatura, de Homero e Tucídides a Amós Oz e Edward Said, das tragédias gregas às graphic novels. No mundo pós-11 de Setembro, o insight de Regina parece, mais do que insólito, oportuno.

Nesta entrevista, concedida por e-mail a pedido da professora, ela fala de suas conclusões:Zero Hora – Como surgiu o projeto de abordar em forma de disciplina acadêmica o trinômio literatura, guerra e revolução?
Regina Zilberman – Este projeto surgiu no contexto dos estudos sobre a literatura portuguesa e as literaturas lusoafricanas, no interior das quais duas questões se apresentam com alguma frequência: de um lado, a formação do império colonial e sua dissolução, que aparece desde Luís de Camões, por exemplo, e desemboca em autores portugueses, como Miguel de Sousa Tavares, ou africanos, como Mia Couto e Pepetela, para mencionar os mais conhecidos; de outro, a guerra colonial, tematizada com frequência não apenas na ficção, mas também na poesia, de que é exemplo a recente coletânea organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, intitulada Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial. Originalmente, o plano supunha examinar literatura, guerra, império e revolução, mas a aproximação entre literatura e guerra parece dar conta do recado. De todo modo, os acontecimentos da atualidade estão muito presentes na proposta: apesar do sucesso de muitos movimentos emancipatórios, sobretudo na África, os conflitos bélicos manifestam-se de todo o lado. O 11 de Setembro evidenciou, com todas as letras, que vivemos em tempos de guerra e que esta inclui confrontos entre etnias, nações e povos, sem que vislumbremos, para os próximos anos, a possibilidade de pacificação.
Regina em sala de aula.
ZH – Qual é o seu livro de guerra favorito? Por quê?
Regina – Eis uma resposta difícil. Dentre os livros que examinamos durante o semestre, dois canônicos e estrangeiros são meus favoritos: Guerra e Paz, por ter estabelecido o parâmetro moderno da narrativa de confronto do ser humano com o universo de destruição e pesar motivado pela guerra; e Em Busca do Tempo Perdido, poucas vezes examinado na perspectiva da representação dos efeitos da guerra de 1914 no mundo europeu e introdutor da narrativa em primeira pessoa em um tipo de relato até então entendido como épico. Dois brasileiros situam-se igualmente entre os favoritos: Os Sertões, de Euclides da Cunha, padrão indiscutível de relato bélico em língua portuguesa, e O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, que atualiza o romance histórico, para evidenciar o processo de construção da identidade nacional desde a perspectiva da violência e da barbárie praticadas desde o século 18 até o século 20, quando a narrativa se encerra.

ZH – A Ilíada, de Homero, que a senhora propõe como ponto de partida de sua investigação, é talvez o mais famoso relato de guerra jamais escrito. Qual é a explicação para essa perenidade? Qual é a razão de a Ilíada superar, por exemplo, a Bíblia hebraica nesse aspecto?
Regina – Na Bíblia hebraica, temos efetivamente o relato de várias façanhas militares: Josué conquista Jericó e lidera a ocupação de Canaã pelos ex-escravos do Egito; Davi e Salomão são generais bem-sucedidos, e assim por diante. A Bíblia hebraica não é, porém, entendida como um relato épico, nem moldou as epopeias ocidentais subsequentes, o que ocorre com a Ilíada, cujos modos de discurso aparecem em poemas produzidos, por exemplo, nos séculos 16, 17 e 18, em Portugal, conforme exemplificam as obras examinadas por nós em sala de aula, como Sucesso do Segundo Cerco de Diu, de Jerônimo Corte Real (século 16), Malaca Conquistada, de Francisco Sá de Meneses (século 17), e O Uraguai, de Basílio da Gama (século 18), nem todos muito estudados atualmente, como os dois primeiramente citados.
O caso é que a Bíblia hebraica repercutiu na literatura ocidental por meio de pequenas fábulas, heróis paradigmáticos, símbolos e imagens, mas não em termos de processos narrativos, não se convertendo, assim, em modelo, o que aconteceu com a Ilíada, de Homero. Há, além disso, outros fatores que contribuíram para a perenidade da Ilíada, para além de sua qualidade artística: os gregos, sendo depois copiados pelos romanos, e assim sucessivamente, fizeram os poemas épicos circular na escola, leiga e não religiosa, formadora de líderes e cidadãos, o que não ocorreu com a Bíblia, pelo menos até o século 16, entre os luteranos.
Cena da Guerra de Troia, retratada na "Ilíada", em vaso grego.
ZH – Entre os autores abordados em sua disciplina, destacam-se ex-combatentes, de Tucídides a Hemingway, de Tolstói a Amós Oz. Outros, porém, não eram homens de armas, como Proust e Erico Verissimo. Qual é a relação entre experiência pessoal e produção literária no caso da literatura de guerra?
Regina – É claro que não se pode pensar que apenas a experiência pessoal conta para se escrever sobre a guerra. De todo modo, o testemunho pesa bastante: Ésquilo combateu os invasores persas, e depois escreveu a tragédia (Os Persas) que narra a vitória ateniense desde a perspectiva dos perdedores. Ernest Hemingway e Erich Maria Remarque participaram da guerra de 1914, o primeiro atuando junto à Cruz Vermelha, e o segundo, no front de batalhas, e provavelmente essa experiência contribuiu bastante para a veracidade do relato. O romance de Remarque é particularmente efetivo nesse aspecto, pois sua personagem, Paul Baumer, é o que mais próximo esteve dos combates, o que faculta ao leitor o conhecimento efetivo da experiência pessoal diante da inevitabilidade da mutilação e da morte, bem como da violência, do descaso das autoridades, do patriotismo de encomenda. As narrativas de guerra representam, com bastante frequência, as experiências existenciais singulares dos participantes no evento. Fredric Jameson, em ensaio sobre o assunto (War and Representation, 2009), chama a atenção para esse ponto. Sob esse aspecto, ter vivido os acontecimentos pode ajudar a traduzir o horror que os envolve. Mas, de fato, não é condição necessária, embora, mesmo nos exemplos citados (Marcel Proust e Erico Verissimo), os autores tenham sido testemunhas diretas dos fatos narrados. Sob esse aspecto, a literatura de guerra é simultaneamente uma narrativa de testemunho.

ZH – Walter Benjamin escreveu, depois da I Guerra Mundial, que os soldados haviam retornado silenciosos das trincheiras e que os relatos que haviam produzido eram medíocres. A senhora concorda com esse juízo?
Regina – Tanto Freud (em Para Além do Princípio do Prazer), quanto Benjamin (em Experiência e Pobreza e O Narrador) destacam esse curioso processo de silenciamento, decorrente de uma experiência provavelmente traumática. Os dois pensadores referiam-se aos soldados, e não aos escritores. Além disso, eles se manifestaram entre o final da guerra e os primeiros anos da década de 1920. Talvez devessem ter esperado a publicação do último volume de Em Busca do Tempo Perdido e de Nada de Novo no Front, por exemplo. Por sua vez, o livro de Remarque dá razão aos dois pensadores: o protagonista manifesta indiretamente suas dificuldades de falar dos acontecimentos do front para sua família e para outras pessoas que não estão nas frentes de batalha, como se se estabelecesse uma cumplicidade entre soldados, de que os civis não participariam.

"A guerra, como tema, fomenta não apenas
 a literatura, mas também o cinema,
os quadrinhos, games"
 
ZH – Por que as grandes literaturas nacionais do Oriente Médio (Israel, Turquia, Egito, Irã), que viveram décadas de guerra desde o século passado, não produziram obras de relevo sobre esse tema?
Regina – Com efeito, essas literaturas ainda não produziram “o” grande livro relativo aos processos de emancipação e confronto por que vêm passando. Que é possível fazê-lo, sugerem-no as literaturas lusoafricana e portuguesa, que tematizam com grande vigor o processo de corrosão (em Lobo Antunes, por exemplo) e de constituição da identidade (Pepetela, já mencionado, e Ondjaki) associado à guerra colonial, prolongada e penosa. De todo modo, algumas expressões literárias daquelas regiões podem ser destacadas, como Amós Oz, em Israel, Edward Said (em suas memórias, registradas em Fora do Lugar) ou Marjane Satrapi, do Irã.

ZH – A guerra moderna tem poucas semelhanças, se é que tem alguma, com a de Homero e Tucídides. Bombas inteligentes, aeronaves não tripuladas e genocídios deixaram algum lugar para a épica?
Regina – Não é a presença ou não de uma tecnologia que faz a diferença no caso da literatura de guerra. A tecnologia sempre está presente nesse tipo de livro, desde as armas de Pátroclo e o escudo de Aquiles, na Ilíada, até a aviação inteligente nas guerras do século 20. O que mudou, parece-me, é a perspectiva diante da guerra. Ela constituía, na Ilíada, por exemplo, o espaço para um indivíduo mostrar grandeza, excelência (arete) e, ao mesmo tempo, a legitimidade de sua pertença à aristocracia (aristos). Por isso, literatura de guerra e epopeia eram quase sinônimos, o que se agudizou no século 16, quando os poemas épicos passaram a retratar, em muitos casos, o avanço imperialista do Ocidente sobre o Oriente, ou da Europa sobre o Novo Mundo. Tolstói é o primeiro a desmontar esse modelo, já que seus heróis não pertencem ao mundo dos vencedores, ainda que muitos deles – e Pedro Bezukhov principalmente – provenham da aristocracia e da elite russa. Os romances publicados nas primeiras décadas do século 20 – e relembro os citados Em Busca do Tempo Perdido, Adeus às Armas e Nada de Novo no Front, mas poderia mencionar também Viagem ao Fim da Noite, de Louis-Ferdinand Céline – procedem a mudanças fundamentais no gênero: a narrativa passa da terceira para a primeira pessoa e toma teor confidencial, o que é impossível em um relato épico; e as personagens são perdedoras, mesmo quando pertencem aos segmentos vitoriosos.
Ernest Hemingway é primoroso sob esse aspecto: Adeus às Armas é um livro de perda, configurada na morte da mulher amada ao dar à luz o filho natimorto, narrado em primeira pessoa por um sujeito emocionalmente liquidado; depois, em Por Quem os Sinos Dobram, a perda é completa: ainda que narrado em terceira pessoa, o herói sacrifica-se pelo grupo, sabendo que a derrota espera a todos.

ZH – Literatura de guerra é um gênero literário?
Regina – Depois de tudo o que se disse antes, parece que sim. Mas pode-se acrescentar que a guerra, como tema, fomenta não apenas a literatura (narrativas, dramas, poemas, graphic novels etc), mas também o cinema, os quadrinhos, games etc. Os modelos provêm, por sua vez, da literatura, clássica ou moderna, de modo que é efetivamente um gênero literário que serve de inspiração às demais formas artísticas de expressão.
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REPORTAGEM POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJOluiz.araujo@zerohora.com.br
Fonte: ZH on line, 22/10/2011

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