sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O grande professor

Matheus Pichonelli*
'A sala de aula é o termômetro que permite descobrir, antes de todo mundo,
as dores e delícias das mudanças'. Ilustração: Nina Moraes

Em alguma hora dessas, há exatos dez anos, um professor de literatura entrava em nossa classe do cursinho, em Araraquara, para deixar em silêncio, durante mais de duas horas, cerca de 70 estudantes que pagavam o que tinham e o que não tinham para aprender todos os meandros do vestibular. Não sei como a coisa funcionava antes, nem como funciona agora, mas naquela época prestar vestibular ou fazer regime para emagrecer tinha praticamente a mesma lógica: pegava-se uma cartilha, que dizia o que era certo e o que era errado, e criava-se uma rotina de regras para atingir um objetivo específico de maneira rápida e eficiente. Integração com a realidade, função social, conexão com o entorno, noção do que serve para o papel e o que serve para a vida, aprendizado pela prática: via de regra, tudo parecia levar tempo demais para caber no resumo dos livros e das fórmulas que seriam abordados numa prova de poucas horas ao fim do ensino médio.
Na escola particular (aquela era uma escola particular) o aluno era um cliente. Se o filho não passasse de ano, a culpa era da escola; se não passasse na prova, a culpa era da escola; se não saísse de lá com o Nobel, a culpa também era da escola. Se o cliente não estivesse satisfeito, ele simplesmente trocaria de escola.
Quem estava na linha de frente de tudo isso, claro, eram os professores, sempre no tiroteio entre as ordens da direção, o luxo dos alunos, o luxo dos pais dos alunos e as ordens de uma lógica perversa. Lógica que hoje me parece clara quando lembro de um professor de história que, cansado de gritar pela atenção dos alunos, apelou para uma metáfora curiosa ao comparar sua aula ao McDonald’s. Para ele, os alunos que não prestavam atenção no que ele dizia eram como clientes da rede de fast food que, com o dinheiro dos pais, compravam hambúrgueres e, chegando em casa, jogavam as iguarias no lixo. Naquele dia, aprendemos mais sobre o mercado do que sobre história – mas o exemplo, ora com lanches do McDonald’s, ora com laranjas, limões ou maçãs, entrou para o anedotário da nossa turma.
'Ao final de casa aula, muitos corriam para a biblioteca (ou para as livrarias): na voz dele, os livros pareciam ganhar vida, e se tornavam mais interessantes que qualquer assunto relacionado à nossa idade. Era um feito'. Foto: Celso Junior/AE
Não sei quantos professores tive na vida, e não tenho dúvida do quanto todos, de alguma forma, estavam dispostos a abrir mão de uma vida de conforto para assumir a linha de frente de seu tempo. Sim: porque a sala de aula é o termômetro que permite descobrir, antes de todo mundo, as dores e delícias das mudanças, que se aglomeram a cada nova turma que se forma, cada uma com suas tendências, linguagens, gostos, valores e vaidades que se reciclam (sobre esse desafio, não conheço filme melhor do que “Entre os Muros da Escola”, de Laurent Cantet).
Muitos assumiram este desafio, mas conheci poucos que conseguiram sair ilesos ao tentar domar as feras – ou fazer com quem elas ficassem em silêncio, encantadas com o que ouviam.
Há exatos dez anos, meu dia da semana favorito era a terça-feira. Não porque era dia de futebol com amigos ou porque veria a namorada ou iria ao cinema. Era meu dia favorito porque era dia de aula de literatura, aula do professor André Luiz Guerra.
No último sábado, dia do professor, comecei a me perguntar o que fazia dele o grande professor que tive nesta vida, mesmo depois de dez anos – e dezenas de professores que viria a conhecer na faculdade.
Poderia citar a capacidade retórica que ele tinha, a postura na frente da sala, que inspirava uma certa rebeldia expressa nos cabelos despenteados e um brinco de argola. Poderia citar também o tom de voz, a palavra certa no tom exato, e a capacidade de relacionar os textos que éramos obrigados a ler (as malditas listas do vestibular, e que conhecia em detalhes) com a realidade daquela época. Foi só com ele que aprendemos, aos 18 anos, que o livro Macunaíma, clássico da nossa literatura, havia sido escrito a poucos quilômetros daquela escola, num sítio onde Mário de Andrade (que dá nome à biblioteca da cidade) costumava passar as férias (por algum motivo, o fato não parecia curioso para nossas autoridades, nossos pais, amigos dos pais e os outros professores). E só com ele soubemos que um dos grandes autores da atualidade, o Ignácio de Loyola Brandão, era da nossa cidade – cidade que era tema de seus livros e crônicas e que, como num cadeado, eram ainda desconhecidos por mim e, garanto, pela maioria dos meus amigos.
Ao final de cada aula, muitos corriam para a biblioteca (ou para as livrarias): na voz dele, os livros pareciam ganhar vida, e se tornavam mais interessantes que qualquer assunto relacionado à nossa idade. Era um feito.
'Por algum motivo, André sabia exatamente quais dos seus alunos eram simplesmente incapazes de viver sem escrever'
Como ele conseguia eu não sei. Sei que o professor André era jovem, gostava das mesmas músicas que os alunos e, até pela idade (duvido que tivesse mais de trinta anos), dividia as mesmas angústias de um tempo muito específico, em que, de um dia para o outro, celulares deixavam de ser luxo e se tornavam bens comuns; a televisão perdia relevância; a internet começava a se popularizar e os alunos entravam numa outra fase, menos passiva, mais ativa, até como consequência dos novos espaços de manifestação criadas pelas novas tecnologias.
Mas ainda havia alguma coisa a mais. Por algum motivo, André sabia exatamente quais dos seus alunos eram simplesmente incapazes de viver sem escrever – seja para compartilhar ideias, como toda criança que termina seu desenho e corre para mostrar para os pais, seja para exprimir em palavras os nós de uma idade que se anunciava. Ele sabia. Pegava os textos – não os que seriam usados no vestibular, mas os que a gente escrevia para a gente – e analisava, corrigia, fazia apontamentos. Num mundo em que todos pediam que a gente calasse, ele ensinava a falar e a se impor por meio da escrita. Para isso, fazia as pontes com as referências: não me lembro de ter passado uma terça-feira sem que ele trouxesse um livro novo da sua coleção para algum aluno. Num dia era Dalton Trevisan, no outro, Rubem Braga, ou Loyola, ou Cony ou qualquer outro autor contemporâneo – todos vinham junto do pedido para que fossem devolvidos inteiros, de preferência na semana seguinte. Era um mundo que se abria. Um mundo que não seria cobrado no vestibular, mas que, como na música de Caetano, entraram na nossa vida como “a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do Universo”.
Acho que nem em sonho o professor imaginava que, ao entregar em nossas mãos um livro de sua cara coleção, ele nos certificava de que, diferentemente de boa parte do Planeta, não nos considerava idiotas ou inúteis. Entre os 17 e 18 anos, isso não era pouco.
Hoje, pensando no que poderia escrever sobre o dia do professor, data lembrada a todo momento em minha página de recados na internet durante o fim de semana, imaginei o quanto gostaria de agradecer, pessoalmente, este que foi o maior entre todos os professores que passaram por nossas vidas. Sei que em algum canto o professor André, que morreu num acidente de carro um ano depois de conhecê-lo, ficaria orgulhoso por saber que jamais foi esquecido. Nem ele nem os livros que um dia ajudou a forrar nossas prateleiras.
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* Matheus Pichonelli é formado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site e repórter da revista CartaCapital desde maio de 2011. Escreve sobre política nacional, cinema e sociedade. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo e do portal iG. Em 2005, publicou o livro de contos ‘Diáspora’.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.

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