terça-feira, 20 de setembro de 2011

Razão e sensibilidade

CLÁUDIO MORENO*

Mary Wollstonecraft

Uma das primeiras feministas do Ocidente foi Mary Wollstonecraft, escritora inglesa do séc. 18. Combativa desde a adolescência, publicou em 1792 a famosa Defesa dos Direitos da Mulher, título que lhe serviria de mote para a vida toda. Segundo ela, a mulher era submissa por dar valor demais à sensibilidade; prisioneira de seus sentimentos, não conseguia exercer plenamente sua racionalidade, a única força capaz de libertar os povos e os indivíduos. “A razão não tem sexo!”, dizia – e só utilizando esse poderoso a mulher poderia lutar por privilégios e direitos iguais, incluindo, é óbvio, o de decidir sobre a própria vida sexual. Considerava o casamento uma instituição ultrapassada e defendia a livre união entre as pessoas; para ela, os membros do casal deviam preservar o direito de se relacionar com outros parceiros.
Em Paris, conheceu o atraente Gilbert Imlay, jovem escritor americano que também acreditava no mágico poder da razão. Um ficou fascinado com o outro, e resolveram viver juntos o sonho de uma união livre, sem o controle sufocante da sociedade. Quando ela deu à luz uma menina, consta que Imlay, compenetrando-se na posição de pai, teve uma recaída conservadora e sugeriu que casassem, mas Mary, firme em seus princípios, não aceitou a proposta.
Contudo, como ninguém controla o amor, bicho perigoso e incontrolável, a dura realidade se encarregou de derrubar com um simples sopro o que parecia ser uma teoria perfeita: um dia, Mary, desconfiada de certas ausências de Imlay, mandou às favas sua retórica libertária, ignorou a luta de classes e submeteu a cozinheira a um interrogatório feroz e policialesco – quando então ficou sabendo que o marido visitava regularmente a cama de uma jovem artista conhecida. Ao que parece, ele estava apenas fazendo o que tinham combinado; ela, porém, com a alma dilacerada, escreveu-lhe uma patética carta de despedida, banhada em lágrimas, em que a defensora da racionalidade aparecia, finalmente, humanizada pelo sofrimento: “Escrevo-te de joelhos, implorando”... “só minha extrema estupidez pôde me manter cega por tanto tempo”... “preferia morrer mil vezes a reviver a noite passada”... “jogaste minha alma no caos”.
Partiu então para a Inglaterra, decidida a morrer nas águas escuras do Tâmisa. Aproveitando a chuva que se abatia sobre Londres, caminhou por um hora pelas ruas, a fim de que o vestido, completamente encharcado, ajudasse a puxá-la para o fundo; depois, em silêncio, mergulhou num dos pontos mais profundos do rio. Alguém que passava por ali, contudo, jogou-se às águas e a salvou. Mais uma vez a sorte zombava de seus desígnios, e Mary entendeu o recado: refez sua vida, amou mais uma vez e teve outra filhinha, a quem deu o seu nome. Morreu pouco depois do parto, sem poder imaginar que ali nascia outra escritora, Mary Shelley, a criadora de Frankenstein.
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* Escritor. Ensaista. Prof. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 20/09/2011

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