sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Marcel Gauchet - Entrevista

''O atalho do senso comum destrói a política''.


Marcel Gauchet e a crise das formas de governo ocidentais. "A demagogia e o individualismo desgastam os nossos sistemas. O sonho de um poder forte não se apaga facilmente. Acreditamos estar em um mundo pós-ideológico, mas fizemos do mercado um ídolo".
"O modelo democrático nascido no pós-guerra está hoje em crise. Pensávamos que ele tivesse atingido o equilíbrio e, ao contrário, estamos diante de problemas sempre novos. Se quiser sobreviver, a democracia tem que saber se reinventar".
Há muitos anos, Marcel Gauchet se interroga sobre as formas e os problemas da democracia, uma temática a qual ele dedicou diversos estudos, o último dos quais é L'avènement de la démocratie, um vasto projeto, cujo terceiro livro chegou às livrarias há alguns meses: A l'épreuve des totalitarismes 1914-1974 (Ed. Gallimard).
O estudioso francês – que leciona na École des Hautes Études en Sciences Sociales e codirige a revista Le Débat – lembra que o longo processo por meio do qual a democracia se afirmou na Europa marca a progressiva saída do modelo religioso que, em séculos anteriores, havia estruturado a sociedade.
"Entre os séculos XIX e XX, graças ao advento do poder representativo, da igualdade entre as pessoas e do individualismo, a forma democrática substituiu a organização religiosa da sociedade", explica Gauchet, que é conhecido na Itália pelos livros Il disincanto del mondo (Ed. Einaudi) e La democrazia contro se stessa (Ed. Città Aperta).
"O poder da monarquia e da aristocracia, as enormes desigualdades, o aspecto tradicional da organização temporal da sociedade, a autoridade dos modelos do passado, o primado da coletividade sobre os indivíduos eram todos elementos que caracterizavam a organização religiosa da sociedade e que as democracias progressivamente redimensionaram".

Nesse processo, que papel têm os fenômenos totalitários da primeira metade do século XX?
A democracia em que vivemos ainda hoje nasceu depois da Segunda Guerra Mundial, precisamente como reação à experiência terrível dos totalitarismos, que podem ser lidos como a tentativa de recriar – com os meios da política e dentro de um espaço secular – a forma religiosa anterior da sociedade. O fascismo, o nazismo e o comunismo são religiões seculares, possuem uma forte dimensão religiosa, mesmo apresentando-se como movimentos antirreligiosos.

Uma das características dos totalitarismos é a relação direta entre o chefe e o seu povo...
O poder totalitário sempre se encarna em uma pessoa, reinventando assim o poder sagrado da monarquia. Hitler, Stalin ou Mussolini são a reinvenção de uma figura do passado. Fascismo, nazismo e comunismo são ideologias que, embora seculares, desempenharam o mesmo papel desempenhado pelo discurso religioso nas sociedades do passado, investindo todos os âmbitos da realidade e dando sentido a tudo isso. Mediante o partido totalitário, a ideologia e a figura do chefe, o totalitarismo busca recriar algo que se assemelha a uma comunidade orgânica.
"Por outro lado, precisamente a
onda longa do individualismo e
da desafeição à política desgastou muito a democracia.
Hoje, no entanto, muitos estão começando a
se dar conta que é preciso voltar a
se ocupar com os problemas de todos.
E é por isso que se volta à política.
E isso é um fato positivo."
As democracias nascidas no fim da guerra fizeram de tudo para se opor a essa herança?
Certamente e, ao mesmo tempo, refundaram os velhos regimes liberais. As democracias políticas europeias, mesmo em meio a muitas contradições, conseguiram garantir um progresso decisivo com relação ao passado. Elas se redefiniram em todos os âmbitos, conseguindo estabilizar os regimes democráticos do pós-guerra. Da democracia formal e abstrata do início do século, passou-se, assim, a uma democracia com conteúdos mais concretos, que garantiram a reconstrução política e econômica da Europa do pós-guerra.

Esse modelo, que começou a mostrar os primeiros sinais de rompimento no fim dos anos 1970, está hoje em crise?
Sim, e sobretudo na Itália. As razões são diversas, não menos importante a globalização que contribuiu para tornar ineficazes os mecanismos político-sociais que permitiram a expansão econômica. A importância dos meios de comunicação, a revolução tecnológica e a afirmação de um individualismo sempre mais marcado colocaram novamente em discussão a ordem democrática tradicional, nos levando de volta a uma situação que, embora em termos muito diferentes, lembra a do início do século passado.

Quem governa muitas vezes parece impotente diante dos desvios da globalização. Por isso, há até quem fale de governo das coisas...
É verdade, mas é um fenômeno ambíguo, porque não controlar politicamente a economia é uma escolha política. A ideia de que os mercados são capazes de se autorregular, sem que se possa ou se deva intervir, é uma ideologia política que se impôs nas últimas décadas dominadas pelo neoliberalismo. Não são as coisas que assumiram o poder. Somos nós que o conferimos a elas. Costumamos dizer que vivemos em um mundo pós-ideológico, onde não haveria mais ideologias, mas não é verdade. As ideologias existem – e como! –, mesmo que suas consequências muitas vezes sejam apresentadas como um fato da natureza.

Por que a imagem dos políticos hoje está tão desacreditada?
A política perdeu aquele pouco de autoridade natural herdada do passado que ainda lhe restava, porque os políticos fizeram de tudo para estar à altura do homem médio, buscando o senso comum, a opinião difundida, visando à comunicação e à sedução.

Explorando o atalho do populismo?
Os políticos gostariam de fazer crer que conhecem os problemas das pessoas, propondo soluções simplificadas. O apelo ao povo – que, porém, é uma realidade cada vez menos homogênea – implica geralmente em alguma forma de demagogia. Os modernos meios de comunicação – que, além disso, no passado, fizeram muito bem à democracia – oferecem possibilidades infinitas para os demagogos. Da demagogia da simplicidade à da emoção, que estimula as reações emotivas mais do que o raciocínio.

Na Itália, Berlusconi tenta muitas vezes contrapôr o povo às instituições...
Isso também acontece na França e em muitos outros países europeus. A retórica populista que opõe a elite institucional ao povo encontra em todos os lugares um sucesso indiscutível, porque capta algo que é efetivamente ouvido pela parte mais frágil da população, aquela que tem menos instrumentos para compreender e intervir sobre a realidade. Os populistas apelam ao ressentimento de quem se sente excluído, abandonado e empobrecido. Quem se sente relegado aos planos inferiores da sociedade, sem a possibilidade de modificar a própria vida, precisa acreditar em um poder capaz de intervir concretamente. Quem está realmente sem poder sonha com um poder forte.

A democracia sobreviverá à crise atual?
Só se souber se regenerar, iniciando transformações importantes, como aquelas que ocorreram no pós-guerra. No futuro, os modos de governar se transformarão radicalmente, e as formas da discussão pública se tornarão novamente centrais. Hoje, estamos na fase da estupefação diante da crise. A partir daqui, começa a fase da reinvenção, embora seja difícil imaginar quais serão os resultados concretos. Uma eventual mudança só poderá vir dos cidadãos, que nos últimos anos, no entanto, muitas vezes preferiram se retirar privadamente. Por outro lado, precisamente a onda longa do individualismo e da desafeição à política desgastou muito a democracia. Hoje, no entanto, muitos estão começando a se dar conta que é preciso voltar a se ocupar com os problemas de todos. E é por isso que se volta à política. E isso é um fato positivo.
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A reportagem é do jornal La Repubblica, 24-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 26/08/2011
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