sábado, 27 de agosto de 2011

Kevin Kelly: "A tecnologia é uma dádiva de Deus"

 A era digital é um presente divino para salvar a humanidade,
diz o guru do Vale do Silício
Peter Moon

Quando a revista Wired foi lançada, EM 1994, obteve sucesso imediato ao explorar a influência cultural das novas tecnologias que surgiam uma atrás da outra do celeiro do Vale do Silício, na Califórnia. Quem percebeu primeiro a transformação tecnológica na sociedade foram os americanos Louis Rossetto e Kevin Kelly, respectivamente o fundador e o primeiro editor da Wired. Rossetto afastou-se da revista em 1999, e Kelly prosseguiu como repórter especial. Não abandonou sua função em tempo integral, que é pensar as conexões entre a tecnologia e a sociedade. Kelly é um evangelizador, um guru da tecnologia. Em seu livro O que a tecnologia quer (2010), afirma que a complexidade crescente da tecnologia atua em nosso favor, por ser uma obra do Criador.

ÉPOCA – O título de seu novo livro é sobre os desejos da tecnologia. O que ela quer?
Kevin Kelly – Não estou sugerindo que seu telefone ou seu celular tenham algum desejo próprio ou propósito em particular além daqueles para os quais foram projetados, conversar e trocar informações à distância. O que defendo no livro é que o conjunto de tecnologias criadas pelo homem vive um momento de crescente união, graças ao advento dos computadores e da internet. E essa união das tecnologias visa a um objetivo.

ÉPOCA – Qual seria esse objetivo?
Kelly – Os produtos das novas tecnologias tendem a se tornar cada vez mais complexos e especializados com o passar do tempo. Um exemplo é a câmera fotográfica digital. Quando surgiu, ela quase não tinha recursos e gerava imagens de baixíssima resolução. Hoje, mesmo câmeras mais baratas têm uma resolução altíssima e realizam automaticamente todos os ajustes de foco, brilho, luminosidade etc. Essa complexidade e especialização das câmeras torna o ato de fotografar muito mais fácil e rápido. Não é mais preciso fazer um curso de fotografia para conseguir tirar fotos “quase” profissionais. As câmeras digitais são um exemplo. O mesmo padrão de complexidade está presente em celulares, computadores, TVs, carros, aviões e elevadores. Quanto mais complexos ficam essas máquinas e esses equipamentos, mais tarefas são facilitadas ou eliminadas, tornando o trabalho mais produtivo, acelerando o aprendizado e alterando o lazer dos privilegiados que têm acesso às novas tecnologias.

ÉPOCA – Há aí uma contradição? Como a tecnologia pode ficar cada vez mais complexa e ao mesmo tempo oferecer uma experiência simples e fácil para quem usa?
Kelly – A contradição é aparente. A busca de simplicidade é decorrência do aumento da complexidade. Quanto mais funções se insere num celular, tanto maior é a necessidade de o usuário contar com um jeito de usar simples, para não afastá-lo dessas novas tecnologias. Tome o exemplo das redes sociais. As antigas redes de computador dos anos 1980 eram um universo dominado por programadores. Só eles tinham o domínio da tecnologia para poder se divertir trocando mensagens e arquivos. As redes sociais evoluíram. São ecossistemas digitais planetários, muito mais complexos e mais fáceis de usar.

ÉPOCA – Então, o propósito da tecnologia é facilitar nossa vida?
Kelly – Uma coisa é a finalidade da tecnologia, produzir bens e serviços, liberando o homem do trabalho braçal e repetitivo em troca do trabalho intelectual. Outra coisa bem diferente é seu propósito. O propósito maior da tecnologia é a comunhão dos seres humanos.
"O propósito maior da tecnologia
é a comunhão
dos seres humanos"

ÉPOCA – O senhor diz que temos a obrigação moral de aumentar a quantidade de tecnologia disponível no mundo.
Kelly – Somos 7 bilhões de humanos. Há 5 bilhões de celulares no mundo. Mais de 2 bilhões de pessoas têm acesso à internet. A questão não é mais o fosso que separa os plugados dos desplugados. O problema hoje é reduzir a distância entre aqueles que primeiro têm acesso às novas tecnologias e os retardatários.

ÉPOCA – É a função social da tecnologia?
Kelly – Muito mais do que isso. O acesso às novas tecnologias deve ser encarado como um direito básico do ser humano. Há 1 bilhão de celulares na África. Expandir o acesso às telecomunicações e à internet para as comunidades dos países subdesenvolvidos é o meio mais rápido e eficiente para que tenham acesso à educação e à cultura. Os dividendos sociais são óbvios. Não são os únicos.

ÉPOCA – O que está sugerindo?
Kelly – Quem tem acesso à educação tem mais chance de progredir na vida. Mulheres com mais acesso à informação têm menos filhos. Famílias menores têm mais chance de elevar seu padrão de vida. A consequente redução da natalidade acabará por reduzir o impacto da humanidade sobre os recursos escassos do planeta. Ao mesmo tempo, a proliferação da educação proporcionada pela disseminação das novas tecnologias vai expandir a conscientização da importância da preservação do meio ambiente. Podemos prosseguir no caminho atual, expandindo uma civilização tecnológica predadora dos recursos do planeta. Nesse caso, acabaremos sozinhos no mundo. Não creio que exista alguém com bom-senso que acredite que a vida na Terra seria melhor se estivéssemos sozinhos, sem animais selvagens, sem contato com a natureza, vivendo num planeta devastado. É claro que é melhor dividir o planeta com as outras espécies. É evidente que nossa vida será mais completa e feliz. Por isso acredito que a tecnologia tem uma função maior, que é levar a humanidade a um novo estágio, no qual poderemos viver em comunhão com os demais seres vivos.

ÉPOCA – O senhor diz que a tecnologia seria um sétimo reino da vida, além dos outros seis reconhecidos pela ciência, entre os quais animais, plantas, fungos e bactérias. Como assim?
Kelly – A tecnologia é produto da mente humana. Esta, por sua vez, é resultado de bilhões de anos de evolução desde o surgimento da vida na Terra. Nesse sentido, a tecnologia também é obra da evolução. A tecnologia atual pode se adaptar para preservar a vida no planeta. Ou pode continuar o passo que tem seguido, o da inadaptação, e contribuir para a destruição da vida. Sou um otimista. A tecnologia deveria ser encarada como o sétimo reino da vida, pois surgiu para garantir a preservação dos demais.

ÉPOCA – O senhor ganhou fama como um guru da tecnologia. Também é um cristão fervoroso. Sua devoção não o estaria fazendo assumir ao pé da letra o papel de evangelizador da tecnologia?
Kelly – Não há confusão. O propósito maior que enxergo no desenvolvimento da complexidade da tecnologia é o mesmo que vejo na evolução da vida na Terra. Não creio que Deus tenha nos dado os dons da vida e da razão para que pudéssemos conceber os meios da nossa própria destruição, carregando o resto do planeta conosco.

ÉPOCA – Se o aumento da complexidade tecnológica é constante, cedo ou tarde as máquinas começarão a pensar?
Kelly – Sim, a possibilidade do advento da inteligência artificial é concreta, embora eu a considere remota. Mas posso estar errado. O aumento da complexidade tecnológica não precisa necessariamente desembocar na inteligência. Quem é mais complexo, um carro ou um cachorro? O cachorro é incomensuravelmente mais complexo do que a mais complexa das máquinas feitas pelo homem. Cães não pensam. Mas não é preciso as máquinas pensarem para que a evolução da tecnologia descortine cenários sombrios para o futuro da humanidade, como aqueles apresentados nos filmes Matrix e O exterminador do futuro. Esses cenários são uma possibilidade. A tecnologia pode ser usada para o bem ou para o mal. Porém, novamente, não acredito que Deus nos teria dado a dádiva da tecnologia apenas como forma de sabotar sua própria criação.

KEVIN KELLY
QUEM É
O americano Kevin Kelly, de 59 anos, é escritor, blogueiro, conservacionista, fotógrafo e guru da tecnologia
O QUE FEZ
Em 1994, fundou em São Francisco, com Louis Rossetto, a revista Wired, da qual foi diretor executivo até 1999. Hoje é repórter especial da Wired e escreve o blog The Technium
O QUE PUBLICOU
Out of control (1994), New rules for the new economy (1999) e What technology wants (2010)
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Fonte: http://revistaepoca.globo.com- 05/08/2011

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