segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Benedict Anderson e as fronteiras (e anomalias) do nacionalismo


Se estivesse vivo, o historiador e cientista político britânico George Hugh Nicholas Seton-Watson (1916-1984) – herdeiro de uma vasta tradição liberal de historiografia e ciências sociais e autor do melhor e mais abrangente texto em língua inglesa sobre nacionalismo até 1983 ­– não teria observado, com pesar: “Assim sou levado a concluir que não é possível elaborar nenhuma ‘definição científica’ de nação; mas o fenômeno existiu e continua a existir”. É que um ano antes da morte de Watson, em 1983, o também historiador e cientista político Benedict Anderson publicaria a ‘bíblia’ da área, trazendo não só as definições e análises de nação, nacionalidade e nacionalismo, mas rompendo com as teorias até então consagradas de nomes como Eric Hobsbawm, Ernest Gellner e Elie Kedourie.
Na introdução de Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (Companhia das Letras), Anderson usa a observação de Hugh Seton-Watson para justificar a publicação da obra. Este livro, escreveu, pretende oferecer a título de ensaio, algumas ideias para uma interpretação mais satisfatória da ‘anomalia’ do nacionalismo. A justificativa revelou-se desnecessária. Quase 30 anos depois, o clássico já teria sido traduzido para cerca de 30 idiomas, e as teorias e análises nele contidas tornariam Anderson um dos mais influentes pensadores contemporâneos da área de humanidades.
A formulação de Anderson para o conceito de nação se apoia sobre as expressões, por vezes paradoxais, de comunidade imaginada, limitada e, ao mesmo tempo, soberana. “Imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles (…). Limitada porque mesmo a maior delas (…) possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações (…). Soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina. Amadurecendo numa fase da história humana em que mesmo os adeptos mais fervorosos de qualquer religião universal se defrontavam inevitavelmente com o pluralismo vivo dessas religiões e com o alomorfismo entre as pretensões ontológicas e a extensão territorial de cada credo, as nações sonham em ser livres (…). A garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano”, expõe o intelectual na introdução da obra.
O pensador e professor emérito da Universidade de Cornell (EUA) esteve nos dias 18 e 19 de agosto na Unicamp, em sua primeira visita ao Estado de São Paulo. No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Anderson ministrou a conferência “Why we think that nation is good” e conversou com alunos de pós-graduação que trabalham com pesquisas relacionadas às suas obras.
A visita de Anderson foi organizada pela professora Eliane Moura da Silva, do Programa de Pós-Graduação em História e Ciências Sociais da Unicamp (leia análise a seguir). A docente ressaltou a importância da passagem do intelectual pela Universidade: “Ele é um dos principais pensadores contemporâneos sobre temas relacionados à antropologia, história e linguística. É muito grande a influência no Brasil de suas obras, sobretudo de Comunidades Imaginadas. Os cursos de graduação da Unicamp em história e antropologia utilizam há muitos anos a obra de Anderson em suas referências bibliográficas. Seu pensamento tem uma influência enorme nos estudos latino-americanos”, salientou.
Na entrevista que segue, Anderson fala sobre os temas abordados nas conferências no IFCH, analisa as manifestações nacionalistas no contexto de globalização e discorre sobre os movimentos da Primavera Árabe.

Jornal da Unicamp - Gostaria que o sr. falasse sobre o tema de sua conferência proferida na Unicamp.
Benedict Anderson - O que se espera de todos nós é que, às vezes, reconheçamos que nossa nação não é boa. Em minha experiência, nós sempre perdoamos nossa nação. A famosa expressão ‘certo ou errado, meu país’, significa que mesmo que meu país esteja errado, ele ainda é meu país. É bem diferente da ideia de religião. Não haverá esta expressão: ‘Minha religião, certa ou errada’, pois uma religião errada é impossível...
Falei também sobre algo que não é muito discutido em termos políticos, que é a vergonha. Trata-se de um sentimento muito interessante. Todos provavelmente a experimentaram quando eram mais novos: foram levados por sua mãe para algum lugar, e ela fala de uma maneira que não te deixa confortável e você pensa: ‘Por favor, pare’. Você quer enfiar a cabeça na terra, mesmo que ela seja uma boa mãe...
É esse sentimento, o ‘por favor, mãe, de novo não’, que é a vergonha. Se ela não fosse sua mãe, você só acharia que ela estava falando muito alto, mas porque ela é sua mãe, você sente vergonha. Esse sentimento é muito interessante. Ele liga a ideia da nação à emoção, e podemos encontrá-lo em várias situações.

JU – O sr. poderia exemplificar?
Anderson – Eu acabei de ir a Fortaleza, onde visitei um museu militar pequeno, de apenas duas salas, com fotos dos militares da Guerra do Paraguai. É claro que o museu tem referências sobre os grandes heróis que derrotaram o Paraguai. Mais tarde eu estava conversando com o guia do museu e ele me disse: ‘É tão vergonhoso, é muito vergonhoso; nós quase cometemos um genocídio. Oitenta por cento dos homens do Paraguai foram massacrados, e eu me sinto envergonhado sempre que penso sobre isso’. Ele não se sente culpado, não acha que a culpa é dele. Mas o país que ele ama o faz se sentir envergonhado.
Na Guerra do Vietnã muitos americanos pensaram: ‘Isso é uma vergonha para nosso país, queremos amá-lo e vejam o que nosso governo estúpido está fazendo’. E assim por diante. Eu tento encontrar as diferentes razões que levam as pessoas a acreditar na bondade de seu país. E a vergonha é importantíssima nisso. Há muitas dimensões nisso, mas é aí que temos que começar. É algo que você não encontra em jornais e revistas com frequência.

JU – O livro Comunidades Imaginadas já foi traduzido para cerca de 30 idiomas. Que contribuições o sr. acredita ter dado com os conceitos contidos na obra?
Anderson – O escritor nunca é um bom juiz para esse tipo de coisa. Mas há, agora, obras sobre a história das ideias, sobre nacionalismo, e meu livro é visto como uma transição na maneira como esses livros eram escritos. Até aquele momento, nos anos 80, as pessoas escreviam sobre nacionalismo muito bem no que se referia aos movimentos nacionalistas: como eles começavam, como agiam e quem os apoiava. E esses livros são escritos basicamente de um ponto de vista esquerdista e com um viés materialista. Eu promovi, digamos, uma mudança de interpretação. Este livro está na fronteira: é basicamente materialista, mas é um pouco desconstrutivista.
Eu creio que a razão para que seja um sucesso por tanto tempo – são quase trinta anos, não? – é que ele liga as duas coisas: em primeiro lugar, os que estudam o pensamento sem se preocupar com as bases materiais e os materialistas. O segundo ponto é que a maioria dos livros sobre nacionalismo até aquela época versava sobre a Europa. Este foi o primeiro texto teórico que fez um esforço real para estudar o nacionalismo fora da Europa, nas Américas e também na Ásia. Isso o torna mais atrativo para professores fora da Europa, dá um lugar na ordem das coisas.

JU – Em que medida a globalização tem influência nas manifestações nacionalistas?
Anderson - Eu não tenho certeza que exista influência… É uma questão de como você compreende a globalização. Os EUA, por exemplo, estão fazendo tudo o que podem para bloquear o livre comércio com a China. Eles não querem deixar os chineses investirem lá, eles impõem todo tipo de tarifa sobre comida e outras coisas.
Na Europa, também: Portugal contra Alemanha, França contra os britânicos e assim por diante. Você pode notar em momentos de crise que a autopreservação da nação é muito forte. Não iria me surpreender se o euro caísse eventualmente.
Você pode ver a mesma coisa na Primavera Árabe. É muito visível que a retórica e as imagens são de protestos nacionais. Como numa imagem que eu vi de uma multidão na Síria prestes a ser atacada: três ou quatro blocos de pessoas estão segurando bandeiras da Síria. Você ouve os egípcios dizerem: ‘nós estamos envergonhados’. ‘Nós’ são os egípcios. Não são ‘os muçulmanos’ ou os ‘árabes’ como um todo. E isso muda de lugar para lugar e pode parecer surpreendente para algumas pessoas, pois muitos acreditam que o que existe para os muçulmanos é o Islã, mas esse não é o caso.
Outra coisa que eu penso é que as pessoas esquecem que, apesar da internet oferecer possibilidades, a maioria da comunicação que acontece nela ocorre entre pessoas que falam a mesma língua, e normalmente estão no mesmo país. Apesar de as pessoas poderem se comunicar com o mundo todo, a porcentagem que realmente o faz é, na verdade, muito pequena.
Também com o aumento da espionagem industrial entre grandes empresas, o surgimento dos hackers e tudo o mais, há muitos que acreditam que o sistema de internet aberto que temos hoje será lentamente bloqueado por forças maiores numa tentativa de se protegerem. Esse acesso globalizado não será assim daqui a dez anos. Será algo como um acesso protegido. Parece difícil, mas eu acredito que vai acontecer, e que o nacionalismo é um dos grandes culpados.

JU – Em que medida a crise econômica mundial exerce influência sobre manifestações nacionalistas?
Anderson - Bem, temos que olhar para os dois maiores ‘jogadores’: China e EUA. O que mais chama atenção é como os chineses dizem que a ‘grande China’ é melhor que todo o resto. Eles estão indo mais rápido, gastando mais dinheiro... Na China, agora, há uma novela muito popular sobre a Dinastia Ching, que foi deposta pela Revolução Chinesa. Agora essas pessoas, que antes eram más, são maravilhosas. E a principal razão para que elas sejam maravilhosas é que elas são as pessoas escolhidas para conquistarem o Tibete e o interior da Ásia como um todo.
Há uma China que se sente mais forte a cada dia, onde tudo é nacional: prestígio é nacional, prosperidade é nacional, a unidade é nacional e assim por diante. E eles não hesitam em bloquear links eletrônicos que minariam essa imagem.
Do outro lado, temos os EUA, onde a política está muito deteriorada há dez anos. Parte disso é, com certeza, o sentimento de que o tempo em que os EUA dominavam o mundo está terminando. A América está imersa neste problema, sua indústria não está mais ganhando facilmente de todas as outras, e americanos não são muito bons em lidar com desapontamentos. Eles são amigáveis aqui e agora, mas veremos muito mais coisas acontecendo na América. Eles não conseguem suportar a ideia de não serem mais o número um em tudo. Mesmo nas coisas pequenas: não gostamos do futebol deles, eles já não são os melhores nesse futebol, eles não têm sucesso no tênis e algumas vezes estão apanhando até no basquete. Vinte anos atrás os atletas americanos dominavam o mundo. Eu vejo que não serão nada agradáveis os desdobramentos nas relações bilaterais entre EUA e China. Países menores resolvem suas diferenças de maneiras mais apropriadas.

JU – Ao responder sobre a globalização, o sr. faz menção à eclosão da Primavera Árabe. Como o senhor analisa os movimentos por mais liberdade nos países islâmicos? O sr. acha que essas manifestações são nacionalistas?
Anderson - Bom, foi uma espera longa quando você pensa que alguém como Khadafi está no poder desde 1969. São mais de 40 anos. Parece-me que os aparelhos eletrônicos de comunicação e a internet ajudaram muito esse movimento: eles permitiram uma coalizão pública por meio da qual muitos grupos se juntaram rapidamente para derrubar esse líder militar. Mas a natureza dos movimentos populares é tal que, assim que o objetivo é alcançado, a coalizão começa a quebrar. Os objetivos de grupos diferentes começam a ser trazidos para o jogo. Creio que é por isso que os egípcios e os tunisianos estão passando por tempos difíceis. Quando a ação é conjunta, torna-se muito mais fácil derrubar um regime. Já construir algo posteriormente, que vá agradar a todos, pode levar muito mais tempo... E a outra coisa que eu notei na minha experiência assistindo a ditadores na minha parte do mundo – o sudeste da Ásia – é que você pode derrubar o regime, mas é muito difícil mudar os hábitos que as pessoas adquiriram sob ele. Por exemplo: pessoas se acostumaram a quebrar leis. Homens de negócio e empregados pagam juízes atrás de portas fechadas. Parar de fazer isso é difícil, pois a corrupção já está profundamente enraizada. Um segundo motivo é que o povo está acostumado à política personificada, no sentido de que os partidos políticos, aqueles que tinham bases genuínas, foram destruídos pelos militares. O que sobra disso é algo antiquado, como se duas famílias representassem as duas únicas possibilidades. Esse é o tipo de política que se tem agora no Yêmen e no Egito. Quando o sistema entra em colapso, coisas como famílias, clãs ou tribos se tornam importantes novamente.

JU – É a quarta vez que vem ao Brasil. Como está sendo esta visita?
Anderson - Fui a Fortaleza pela segunda vez… Eu acho o Nordeste muito interessante. Uma das coisas de que mais gostei em Fortaleza foi ir a um museu dedicado ao cordel; é simplesmente maravilhoso. Uma coisa muito estranha da qual eu gostei muito foi uma história em que uma mulher mata o cavalo do marido por ciúmes e foge com um bode (risos). Eu sempre me divirto aqui, sempre há algo novo para se ver. Colaboraram Everaldo Luís Silva, Mateus Fioresi e Júlia Rany Campos Uzun

Quem é
Benedict O’Gorman Anderson nasceu em 1936, em Kunming, capital da província de Yunnan, na China. Descendente de irlandeses e de ingleses, foi criado, desde criança, na Califórnia, nos Estados Unidos. É irmão do historiador marxista Perry Anderson. Estudou em Cambridge e se especializou em estudos da política e história da Indonésia e do sudeste Asiático. É professor emérito da Universidade de Cornell.
Além de Comunidades Imaginadas, publicou outras cinco obras. Em Java in a Time of Revolution: Occupation and Resistance, ele analisa a revolução na Indonésia de 1945 no âmbito da ocupação japonesa. É um estudo em profundidade sobre a crise e independência na Indonésia.
Também sobre o país, ele escreveu, em 1985, In the Mirror: Literature and Politics in Siam in the American Era e, em 1990,Language and Power: Exploring Political Cultures in Indonesia. Suas obras mais recentes são The Spectre of Comparisons: Nationalism, Southeast Asia, and the World, de 1998, em que refina as teorias sobre nacionalismo em Comunidades Imaginadas, e Under Three Flags: Anarchism and the Anti-colonial Imagination, de 2005.


Um clássico do pensamento

ELIANE MOURA DA SILVA

É muito difícil fazer justiça em poucas palavras às sofisticadas análises de Benedict Anderson sobre o nacionalismo. O livro Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo (1983) é a mais original abordagem sobre o tema. Especialista em Sudeste Asiático, ele viveu e realizou pesquisas na Indonésia, Sião e Filipinas. O primeiro impulso para escrever o livro sobre o tema surgiu durante o período da Terceira Guerra da Indochina (1978-1979) entre a China, Camboja e Vietnã ao observar que, desde a Segunda Grande Guerra, toda revolução bem sucedida se definia em termos nacionais. Dessa forma, pareceu a ele que compreender a história do nacionalismo, tinha na questão cultural e nos artefatos simbólicos, particularmente nas transformações da consciência, o elemento central para pensar, definir a existência das nações. Desenvolvendo seus estudos, teorias e metodologias influenciado por pensadores como Erich Auerbach, Victor Turner e Marc Bloch, entre outros, seu trabalho foi ganhando uma dimensão e erudição que acabaram transformando o livro num grande clássico da história do pensamento do século XX.
Para Anderson, as origens culturais das nações modernas podem ser encontradas em alguns momentos históricos modernos: na mudança na concepção de tempo, no declínio das comunidades religiosas e dos impérios dinásticos, no desenvolvimento da cultura impressa de massas (livros, jornais) em línguas vernáculas. Tendo especificado as causas gerais subjacentes ao desenvolvimento das nações, explorou as mudanças particulares em contextos culturais e históricos. Começou por considerar a América Latina, onde – de forma controversa e interessante – apontando as comunidades crioulas das Américas como o meio onde a consciência nacional emergiu antes de aparecer na maior parte da Europa e de forma diferente da europeia em dois aspectos: conduzida por elites crioulas e não por intelectuais; o idioma não teve um aspecto tão fundamental uma vez que as colônias partilhavam a língua comum das metrópoles imperiais.
Os nacionalismos na Europa foram diferentes em dois pontos: em primeiro lugar, o papel desempenhado pela imprensa em idiomas considerados nacionais e a própria ênfase na língua nacional; em segundo lugar, os problemas políticos que derivaram da existência de vários impérios dinásticos do século XIX que nada tinham com qualquer noção do moderno nacionalismo. Essas similaridades também podem ser encontradas em movimentos nacionalistas e nos conflitos políticos nos vastos territórios da Ásia e da África.
Com referência aos nacionalismos anticoloniais, Anderson vai demonstrar que foram inspirados nos primeiros movimentos europeus e americanos. E tiveram consequência da administração colonial partilhada entre europeus e nativos ao longo de todo o século XIX. Isso permitiu o surgimento de uma intelectualidade local, bilíngue e com acesso aos modelos de nação e de nacionalismo, e que teve papel fundamental para copiar, adaptar e aprimorar as experiências anteriores. Nas condições do século XX, a construção de sistemas culturais nacionais foi muito fácil.
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Reportagem por SÍLVIO ANUNCIAÇÃO
Fonte:  Jornal da UNICAMP - http://www.unicamp.br 29/08 a 04/09/2011

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