quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Às vezes uma broca é só uma broca

ANTONIO PRATA*
Imagem da Internet
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Diante de uma queixa de meu amor,
usei um golpe baixo: 'Você prefere ver
pelas paredes quadros
ou baratas?'
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Pode parecer bobagem e talvez seja -claro que é, é uma tremenda bobagem-, mas não admito que outra pessoa pendure os quadros em minha casa. Tenho amigos, decerto mais bem resolvidos do que eu, que conseguem delegar a função a um cunhado, ao zelador ou a outro profissional habilitado sem sentirem, com o descumprimento das obrigações conjugais, sequer uma comichão em suas masculinidades. Um deles chega até a sugerir, sempre que a mulher exige algum reparo doméstico: "Chama um homem, meu bem". Eu não sou assim. Sinto-me pusilânime como um corno rodrigueano só de pensar em abrir a porta de meu próprio lar para que outro marmanjo meta a broca em minhas paredes.
Fiz anos e anos de psicanálise, sei bem que minha relação com a furadeira é apenas uma manifestação ridícula de antigos fantasmas: nunca ter aprendido a jogar futebol, ser baixinho, estar mais para Woody Allen (no mau sentido) do que para Humphrey Bogart (no único sentido), mas pouco importa. Uma hora a gente desiste de iluminar as minhocas escondidas embaixo de cada pedra, simplesmente admite que a vida é assim mesmo e toca pra frente, transformando neuroses em convicções -eis aqui uma delas, sólida como uma viga: na minha casa, quem fura sou eu!
Minha insistência no monopólio da furadeira talvez não fosse um problema se a ela não se somasse outra, digamos, idiossincrasia: uma tendência à procrastinação das tarefas domésticas que chega a ser enlouquecedora. "Enlouquecedora" para minha mulher, evidentemente. Afinal, após duas semanas na casa nova, as roupas de cama já estão no roupeiro, os sabonetes nas saboneteiras, o sal no saleiro -só os quadros continuam pelos cantos, esperando, como aviões num aeroporto fechado pelo mau tempo.
As tormentas que alego para meu renitente atraso são o trabalho, que anda puxado, e a necessidade de priorizar tarefas mais urgentes: passar a conta de luz para nosso nome, instalar a máquina de lavar, marcar a dedetização. Diante de uma das legítimas queixas de meu amor, cheguei até a usar de um golpe baixíssimo, desses que devem ser evitados mesmo em momentos de MMA conjugal: "Decida, o que você prefere ver pelas paredes, quadros ou baratas?". Não colou. Este fim de semana receberemos alguns amigos e eu recebi um ultimato, ou faço aquilo a que me proponho ou ela tomará medidas extremas: chamará um "Marido de Aluguel".
Ora, meus caros, vocês podem dizer que sou neurótico, louco de pedra, caso de hospício, mas convenhamos: se não houvesse nos pequenos reparos domésticos toda uma simbologia, se não residisse nos pregos, parafusos, courinhos e trincos uma das últimas reservas de nossa acuada masculinidade, teriam esses trabalhadores o nome que têm? Evidente que não.
Maridos de aluguel, especuladores de curto prazo, saqueadores de pirâmides, hienas: todos eles ganhando a vida às custas da desgraça alheia. Ela que experimente chamar aqui um desses larápios. Será recebido com broca 12 -função martelete-, lança-pregos e maçarico. Na minha casa, quem fura sou eu! (Mesmo que demore um pouquinho).
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* Cronista. Escritor.antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata
Fonte: Folha on line, 31/08/2011

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