segunda-feira, 25 de julho de 2011

''Os romances literários já morreram muitas vezes''

Umberto Eco*

Estamos celebrando o fim do romance
na forma inventada por Richardson e Defoe?
 Pode até ser, mas então o romance acabou
desde os tempos de Joyce, e até Roth é como um patético reacionário que se obstina hoje
a escrever um poema
cavalheiresco em oitavas.
Chegado à minha idade tardia, eu colecionei uma série descomunal de recordações que se referem ao fim do romance. Ignorando os anos em que eu ainda não sabia ler, são cerca de 74 anos que, em toda virada de ferragosto [início das férias na Itália, no dia 15 de agosto], eu vejo um artigo, uma entrevista, uma pesquisa, uma discussão que envolve muitas pessoas dignas, sobre a crise, o desaparecimento, o colapso, o apocalipse do romance (nos anos 1960, circulava a piada: "Pasolini também pensa que o romance está morto, mas não o diz para não desagradar a sua mãe"). Assim, o fim do romance é um pouco como o monstro do Lago Ness ou o clichê "será o verão mais quente dos últimos cem anos".
Aqueles que anunciam o fim do romance pertencem a quatro categorias:
1) aqueles que devem desenfornar uma pesquisa até o dia seguinte e vão procurar uma ideia nos velhos anuais do seu jornal, sabendo que não há nada mais inédito do que o publicado,
2) aqueles que jamais conseguiram escrever um romance e estão cansados de falar só dos romances dos outros,
3) aqueles que escreveram romances, e muito bonitos (veja o caso de Roth) e deixam entender que à frase "não se escrevem mais romances como antigamente" deve seguir "… exceto os meus",
4) aqueles que não conseguem mais escrever romances por razões de idade ou de depressão.
Por enquanto, é preciso entender se estamos falando mal do romance ou da narratividade em geral (Chapeuzinho Vermelho é uma narrativa, e não um romance). É muito verdade que o romance na forma em que conhecemos nasceu enquanto novel no século XVIII e, assim como nasceu, poderia desaparecer, mas eram textos narrativos e desempenhavam a função que desempenham para nós os romances, os poemas de Ariosto ou de Tasso, os contos cavalheirescos medievais (chamados justamente de romance em oposição à novel burguesa), e, se além do romance, pensarmos na novela (que não é a novel, mas sim uma short story), de Boccaccio em diante, havia para todos os gostos, e vejam quanto Shakespeare nos assombrou. E antes existiam o romance romano e grego (pensem só em Luciano e em Apuleio), e, antes de Apuleio, Ovídio escrevia belíssimas histórias (espero que vocês se lembrem com ternura de Filemon e de Bauci), e antes ainda eram belíssimos romances os poemas como a Odisseia, e antes, antes ainda, de noite sob a árvore do vilarejo, os anciãos analfabetos contavam os mitos, e todos se comoviam com o destino de Édipo, odiavam Medeia, tremiam com Prosérpina, horrorizavam-se com Saturno, como tantas Madame Bovary da época.
Em suma, estamos celebrando o fim do romance na forma inventada por Richardson e Defoe? Pode até ser, mas então o romance acabou desde os tempos de Joyce, e até Roth é como um patético reacionário que se obstina hoje a escrever um poema cavalheiresco em oitavas. Ou estamos falando da pulsão narrativa (necessidade de narrar e de ouvir narrações), e então a "função fabuladora" é fundamental no ser humano pelo menos como o instinto sexual, salvo que pode assumir as mais variadas formas, até a do filme ou da telenovela.
É possível que a necessidade de narratividade seja satisfeita por infinitos novos meios eletrônicos, mas me pergunto de onde vêm então aqueles milhões de pessoas que ainda compram romances. Certamente, pode-se responder que todos são romances péssimos e que as pessoas os leem pelos mesmos motivos pelos quais assistem L’Isola dei famosi [reality show com artistas], mas não acredito nisso. Pessoalmente, acho cansativos e ilegíveis muitos romances muito elogiados pela crítica e, como Roth, me divirto mais com uma bela biografia, sei lá, de Garibaldi ou de Gilles de Rais, ou releio romances de 100 ou 150 anos atrás. Mas depois acontece que eu também leio alguns novos com gosto.
Em suma, a vida é tão complicada e recusa de tal forma as divisões entre branco e preto que me vem à mente aquele ditado, não me lembro mais de quem: "Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples. E errada".
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* Escritor, semiólogo e linguista italiano Umberto Eco, em artigo para o jornal La Repubblica, 23-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 25/07/2011
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