sexta-feira, 29 de julho de 2011

O amor é revolucionário

O filósofo francês Luc Ferry defende que o
surgimento do casamento por amor deu início
 a uma revolução ainda em curso.

"Adoro o Brasil e as pessoas que o habitam.
Tudo me agrada:
a beleza das paisagens, a das pessoas e
o multiculturalismo",
diz Luc Ferry

Aos 60 anos, o filósofo francês Luc Ferry é uma celebridade. Autor de vários livros, alguns best-sellers, foi ministro da Educação entre 2002 e 2004, no governo de Jacques Chirac, e autor da controversa lei que proíbe o uso do véu nas escolas. No Brasil, onde esteve várias vezes, volta em setembro como conferencista da sexta edição do projeto Fronteiras do Pensamento. Entre suas teses, que trazem a filosofia ao alcance dos pouco iniciados, Ferry diz que a serenidade é a grande vitória sobre os medos. E que o sábio é aquele que consegue viver no presente, reconciliado consigo, sem habitar as miragens do passado e do futuro. Na entrevista a seguir, Ferry fala de sua palestra no Brasil e da revolução silenciosa do amor, o grande acontecimento da contemporaneidade.

Valor: Como podemos enquadrar o desejo de deixar um mundo melhor para nossos filhos diante da avidez dos mercados, do jogo político e das ameaças ao planeta?
Luc Ferry: A grande questão que vai dominar cada vez mais a política moderna é a das gerações futuras e ela está ligada à revolução da família moderna. Até há pouco tempo, o guia supremo devia, antes de tudo, encarnar valores superiores e exteriores à humanidade: à direita, a nação, muito acima do conjunto dos indivíduos; à esquerda, a revolução, que leva os homens à busca de uma causa maior do que eles. Também era necessário que, em nome desses valores grandiosos, os cidadãos estivessem dispostos a sacrificar suas vidas. Até maio de 1968, esses dois bastiões imaginários conduziam a política moderna. Na minha adolescência, o jornal dos partidários de De Gaulle se chamava "La Nation" e meus amigos eram trotskistas, maoístas, anarquistas e comunistas.

Valor: Como é a revolução do amor, objeto de seu livro mais recente ["La Révolution de L'Amour - Pour une Spiritualité Laïque"]?
Ferry: É a invenção do casamento por amor e da família moderna, que sacode de forma permanente a vida privada. É o amor que confere sentido à vida. O que é menos evidente é que não foi sempre assim. Com a substituição das uniões arranjadas, o poder da paixão pôde aos poucos tomar o lugar dos antigos valores do sacrifício. Quem aceitaria hoje, ao menos entre nós, morrer por Deus, a pátria ou o comunismo? Quase ninguém, felizmente. Mas seríamos capazes de tudo por aqueles que amamos.

Valor: As utopias morreram?
Ferry: Não é certo. Vivemos uma revolução silenciosa. Acontece em surdina, mas suas consequências na vida política são consideráveis, as três principais são: a invenção do divórcio, o olhar inédito sobre a infância e a nova preocupação com as gerações futuras. Que mundo deixaremos para aqueles que mais amamos? Essa questão vai tomar o lugar de todas as outras. Reabrirá o futuro, dará sentido e acabará por pressupor, também, sacrifícios. A novidade é que, ao contrário dos valores antigos, não é transcendente à humanidade, mas encarnada nela, de forma que os esforços que demanda não levam à morte. Sob essa égide, são realinhadas as questões cruciais: a dívida pública, o choque das civilizações, o equilíbrio financeiro e ecológico, a proteção social nesse jogo de "dumping" que chamamos de globalização. Surge a esperança de que poderemos, um dia, ultrapassar a tendência ao imediatismo que devasta a política e a economia.

"O capitalismo está mais arrogante
que nunca e nossos sistemas políticos liberais
não mudaram nem na Europa nem nos EUA.
Só o que mudou foi a moral,
que se flexibilizou para introduzir
 as massas na sociedade
de consumo."
Valor: O senhor é um filósofo pós-1968. Há pensadores que dizem que a única revolução que deu certo no século XX foi essa, a da contracultura. O que aprendeu com ela?
Ferry: Não houve revolução em 68, nem econômica nem política. O capitalismo está mais arrogante que nunca e nossos sistemas políticos liberais não mudaram nem na Europa nem nos EUA. Só o que mudou foi a moral, que se flexibilizou para introduzir as massas na sociedade de consumo. As evoluções da moral foram o feito daqueles que chamávamos de boêmios já na Paris dos anos 1850, contestadores e "sessenta-e-oitescos" antes do rótulo, que inventaram o modernismo, a vanguarda e as inovações audaciosas da cultura contemporânea. Os novos boêmios, de 68, apesar da oposição aos burgueses, da raiva ou do desprezo de que se vangloriaram por tanto tempo, não foram nada além do braço armado do triunfo da sociedade de consumo. E por uma razão fundamental: era preciso que os valores e as autoridades tradicionais fossem desconstruídos para que o capitalismo entrasse na era do hiperconsumo. Se nossos filhos tivessem os valores de nossas bisavós, não comprariam três celulares por ano.

Valor: O fato de ter participado do governo mudou sua visão sobre a política?
Ferry: Aprendi mais coisas sobre o real em dois anos do que em 25. É uma experiência insubstituível e lamento que meus amigos filósofos não possam tê-la dividido, porque muda verdadeiramente o olhar sobre o mundo.

Valor: A proibição do uso do véu nas escolas, que o senhor propôs quando era ministro da Educação, até hoje é questão polêmica e tem argumentos progressistas tanto contra como a favor. O que tem a dizer aos que consideram a lei contrária à diversidade e à liberdade de expressão?
Ferry: A proibição não tinha, paradoxalmente, nada a ver com a questão da liberdade religiosa. A França possui a maior comunidade muçulmana da Europa e a terceira judaica do mundo. Nossas crianças começavam a reproduzir nas escolas os conflitos do Oriente Médio. As de origem árabe se tomavam pelos palestinos e os judeus, pelos israelenses. Nós, adultos, tínhamos de impedir que as crianças brigassem na escola e decidi proibir não os signos religiosos, mas todos os sinais militantes dentro do espaço escolar. Deu certo: não há mais conflitos dessa natureza na França.

Valor: O que pensa da atitude da França de restringir as fronteiras, como aconteceu com os refugiados da Líbia que entravam pela Itália?
Ferry: É desolador. Teria sido mais elegante ser generoso. Dito isso, é bom lembrar que os africanos também precisam da sua juventude e de seus talentos. Por outro lado, como a taxa de desemprego é muito elevada na Europa, não podemos mais acolher corretamente os imigrantes. É um problema complicado.

Valor: Como o senhor avalia o apreço que o Brasil desperta hoje no mundo?
Ferry: Tive a chance de ir umas 20 vezes ao Brasil. Adoro o país e as pessoas que o habitam. Tudo me agrada: a beleza das paisagens, a das pessoas e o multiculturalismo. O país se move a uma velocidade alucinante e a vida política é tão apaixonante quanto a econômica.
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Reportagem por Maria da Paz Trefaut Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Home › Valor Econômico › on line › EU& Fim de semana › Cultura - 29/07/201

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