domingo, 19 de junho de 2011

CORPUS CHRISTI

Rubem Alves*

Tenho medo de morrer e ir para o céu. Eu me sentiria um estranho lá. Cecília Meireles pensava o mesmo. E se perguntava se, "depois que se navega, a algum lugar enfim se chega... O que será talvez, até mais triste. Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas companhias..."
Também eu preciso de barcas e gaivotas, pois amo o mar e o ar. Sou um ser deste mundo e sinto que no meu corpo moram rios, árvores, montanhas e nuvens. Nenhum mundo além poderá consolar-me da sua perda. É certo que um espírito, por bem-aventurado que seja, não pode sentir o cheiro bom do capim gordura (que recém começa a florescer roxo nos campos). Para isso ele teria de ter um nariz. E nem pode sentir o vento frio das tardes de Inverno a lhe golpear o rosto. Ao que me parece, espíritos não têm pele. E (pobres) não podem jamais sentir o prazer de mergulhar no mar. Esta alegria animal está vedada aos espíritos, seres etéreos que, ao que consta, não sofrem os efeitos da gravidade ( ou da gravidez). Sua leveza os protege de quedas de muros, mas lhes tira a alegria do mergulho. Saltam, e ficam flutuando no espaço.
Amo este mundo. Por isso não quero ir para o céu. Nietzsche sentia o mesmo. E até sonhou com o "retorno eterno" - voltarei sempre a este mesmo lugar, o único que conheço, das coisas materiais do cotidiano, que vão desde o café com leite e pão com manteiga, pela manhã até a música de Bach e os céus estrelados, à noite. Isto, para não se falar nos prazeres do amor, que não podemos subsistir sem o corpo. Pois precisam do encanto dos olhos que dizem: "Como é bom que você existe..." E do olfato, que percebe desde o "brabo cheiro bom de suor e graxa", a que Adélia Prado se refere, até o perfume de pêssego maduro que vem da flor do imperador, tão discreta, e que Guimarães Rosa declarou ser a mais querida. E os ouvidos? As serenatas (antigas), o "eu te amo" (eterno), os poemas, - são todos seres materiais, que não existem sem a física da fala. Não posso imaginar um só espiritual, embora se diga que os querubins tocam harpas e cantam. Sons precisam de bumbos, trombones, violinos, dedos, sopro, corpo: são coisas físicas, corpóreas. E fico preocupado com o destino de Bach e Beethoven, espíritos nos céus, para sempre preparados dos bons instrumentos da terra onde tocaram a sua música.

"Corpus Christi: divino é o pão e
toda a terra onde cresceu,
com a água que o fez germinar,
 e o vento que o acariciou,
e o fogo que o cozeu..."

Por isso me alegro com esta festa de nome latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a celebração da sua alma, confesso que fugiria. Almas do outro mundo, boas ou más, são assombrações que causam medo. Sei que há um dia que as celebras, o dia de "todas as almas", também chamado de dia de todos os santos, logo antes de finados. O que combina muito bem. A alma começa quando o corpo termina. Parece que acreditavam que as almas vagavam, penadas, por este mundo (dias das bruxas!), sofrendo e assombrando os vivos - que, neste dia, faziam orações por sua eterna salvação nos céus, deixando livre a terra para as coisas materiais e boas que nela moram. Mas este dia, Corpus Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu que o bom mesmo era ter corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Porque as alegrias compensavam.
E nasceu, declarando que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina. Curioso que os homens preferiam os céus, quando Deus prefere a Terra. Lembro-me do espanto do chefe índio que escrevia ao presidente dos Estados Unidos e dizia não poder  compreender as razões que levavam os brancos a desejar, depois de mortos, ir morar num lugar muito longe da terra. Nós, ele dizia, precisamos do perfume dos pinheiros, do barulho da água, dos riachos, do cintilar da luz sobre a superfície dos lagos. Corpus Christi: divino é o pão e toda a terra onde cresceu, com a água que o fez germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que o cozeu. Divino é o vinho, alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar. Coisas do corpo: dentro dele cabe o universo. Não é à toa que o "Credo" fala não em imortalidade da alma mas em ressurreição do corpo. Afirmação que a vida é bela e o divino se encontra nas coisas materiais mais simples. Como dizia Blake: "Ver a eternidade num grão de areia". Ou Fernando Pessoa: "Toda matéria é espírito". E assim, como e bebo as coisas deste mundo, corpo de Deus...
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* Teólogo. Escritor e Educador.
Fonte: Correio Popular on line, 19/06/2011

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