sábado, 18 de junho de 2011

Amor materno é "um país cinzento e cruel", diz Nobel

Imagem da Internet

Elfriede Jelinek, premiada em 2004,
 tem primeiro livro lançado no Brasil

Publicado em 1983, o romance "A Pianista" ganhou adaptação para o cinema pelas mãos do diretor Michael Haneke

No universo sem salvação da escritora Elfriede Jelinek, o amor materno é "um país cinzento e cruel". O órgão sexual feminino não passa de "um rato rançoso". E o nascimento do menino Jesus foi "uma porcaria".
Décima mulher a receber o Nobel de Literatura, em 2004, quando faltou à cerimônia de entrega do prêmio alegando "fobia social", a polêmica austríaca, hoje com 64 anos, tem enfim um romance traduzido no país.
Recém-lançado pelo selo Tordesilhas, "A Pianista" abre as portas para a literatura implacável de Jelinek, conhecida por seus posicionamentos políticos radicais e feminismo extremo.
"Artistas mulheres são menos livres que os homens para dizer "eu". Queiram ou não, elas sempre falam por todas as mulheres, que fazem parte de uma casta oprimida", afirmou a reclusa Jelinek, em entrevista à Folha, feita por e-mail a seu pedido.
Publicado em 1983, o livro foi adaptado para o cinema pelo diretor Michael Haneke em 2001 e trazia Isabelle Huppert interpretando a protagonista.
A trama narra a existência de Erika Kohut, uma professora de piano de 35 anos controlada pela mãe, que quer transformá-la em uma artista consagrada. Em nome da música, a matriarca a priva dos contatos sociais e das companhias masculinas.
Quando um de seus alunos mostra interesse por ela, a professora exerce sobre o pupilo a mesma relação de autoridade que conheceu em casa.
"Minha protagonista fracassa não por masoquismo, mas porque tenta subjugar um homem", explica a escritora, que se declara ciente da "posição desprivilegiada da mulher na sociedade "falocrática'".

PÓS-NOBEL

Tal qual sua heroína, Jelinek estudou música antes de se tornar escritora de prosa e mulher de teatro engajada.
Se um dia proibiu a encenação de suas peças na Áustria em protesto contra um governo conservador e populista, hoje só quer emitir suas opiniões pela internet. Em seu site pessoal, também já publicou um romance.
Quase sete anos após receber o prêmio que, contra sua vontade, jogou-a no foco da atenção mundial, Jelinek confessa não ter nascido para homenagens, mas o assédio diminuiu.
Considera já ter dito tudo o que queria, embora às vezes surjam temas inevitáveis, como a recente catástrofe de Fukushima, no Japão, que a inspirou a criar uma peça.
"Escrever é como ter que vomitar. Não dá para ser diferente. É quase sempre uma ação dirigida contra seus próprios interesses."
---------------------
REPORTAGEM POR JULIANA VAZ COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
FONTE: Folha on line, 18/06/2011

CRÍTICA ROMANCE


"A Pianista" disseca o lado insuportável do amor e do sexo

NOEMI JAFFE COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O discurso indireto livre, em que mal se pode distinguir o pensamento do personagem daquele do narrador, é mesmo o mais eficaz para denotar a crueldade.
Como o leitor pode ter certeza da imparcialidade do personagem ou até mesmo do narrador? Só o discurso indireto livre consegue essa façanha, de estar dentro e fora ao mesmo tempo.
Pois "A Pianista", romance de Elfriede Jelinek, vencedora do Prêmio Nobel, é tão carregado desse recurso que nunca sabemos exatamente quem é o portador do pensamento, que, compartilhado por dois, fica mais potente.

"Poucas vezes o tal amor inquestionável,
 o amor materno, foi tão finamente dissecado,
a ponto de se tornar quase um símile do
que pode haver de mais insuportável"

Não há concessões de nenhuma espécie. Nem na linguagem, que atinge as raias do insuportável com frases curtas, contidas e mecanicistas, nem no objeto abordado -a arte, a maternidade, o amor e o sexo.
Poucas vezes o tal amor inquestionável, o amor materno, foi tão finamente dissecado, a ponto de se tornar quase um símile do que pode haver de mais insuportável. E a arte, a arte de Beethoven (1770-1827) e Schubert (1797-1828), que, num país como a Áustria, carrega o peso do passado e da competição, também se torna um parafuso na engrenagem da burocracia: um fardo. "A filha é o ídolo da mãe, que, em troca, exige um pequeno pagamento, sua vida." A filha, pianista excelente, mas nunca o suficiente, não se torna uma solista, mas apenas professora.
E sua vida, aquela com a qual ela paga o sacrifício da mãe, vai sendo lentamente cortada com lâminas de barbear sobre seu próprio corpo.
Cortar-se e observar homens se masturbarem são seus únicos "prazeres", até que um rapaz atlético se interessa por ela, não por amor, mas por curiosidade, e ela, na impossibilidade de amar, quer ser torturada por ele.
De forma estranha, mas compreensível, sexo e música adquirem laços e um alimenta o outro. No final, se tudo existe em nome da vitória, não há o que ganhar. Ela, a exigência, quer tudo, e tudo não há como oferecer.

A PIANISTA
AUTORA Elfriede Jelinek
EDITORA Tordesilhas
TRADUÇÃO Luis S. Krausz
QUANTO R$ 49,50 (336 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
------------
Fonte: -http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1806201127.htm 

CRÍTICA pesquisada pelo BLOG Zguiotto:

A obscena senhora E.J.

Bernardo Scartezini

A controversa escritora autriaca Elfriede Jelinek
enfim recebe sua primeira edição nacional com o romance a pianista

Elfriede Jelinek ganhou o prêmio Nobel de literatura em2004.Que bacana. Mas a escritora austríaca não experimentou nenhum Efeito Saramago — aquele crescimento de popularidade que se segue ao recebimento da láurea, com reedições mil, outras tantas traduções e frequentes aparições na mídia. Continuou sendo umsegredinho da literatura emlíngua alemã, um estorvo nas letras austríacas e umobjeto de culto entre franceses descolados.
Tanto que o primeiro título de Elfriede no Brasil só aparece agora, passados seis anos do prêmio dos suecos. O romance A pianista é lançado pela Tordesilhas. Até há pouco, quem quisesse lê-lo em português precisaria desencavar uma edição lusitana de 1994, da editora ASA.
A pianista, original de 1983, é tido como o melhor e mais acessível momento de Elfriede Jelinek. Quando o incauto leitor brasileiro se aventurar por ali, perceberá logo nas primeiras páginas o motivo de Elfriede não ser um nome familiar às listas de best-sellers: é que muitas, muitas pessoas não apreciam livros que parecem ter sido escritos aos berros. A ver...
Nossa adorável pianista em questão, Erika Kohut, é uma figurinha peculiar. Amante de Beethoven e Schubert, ela se dedica ao instrumento um bocado e tem certo talento.Mas não talento suficiente para ser a estrela que gostaria de ser. Ou melhor, a estrela que sua mãe gostaria que ela fosse. Ou, ainda, Erika não tem talento o suficiente para ser a estrela que a velha senhora gostaria de ela própria ter sido na juventude. E agora a mãe vai se apercebendo que sua única filha também não será. Erika não é mais uma jovem-prodígio. Tem 36 anos. Uma carreira de destaque como concertista parece cada vez menos provável. Ela dá aulas no Conservatório deViena. Semmaiores perspectivas de fama e arrebatamento do que os recitais internos.
Bueno, cada um tem lá suas frustrações. E cada um tem sua forma de lidar com elas. A forma de Erika é assumir uma postura arrogante, distanciada, de raras palavras, nenhum sorriso. E distribuir notas baixas para seus alunos. Erika também costuma se mutilar. Usando da lâmina de barbear que era do pai, ela faz pequenos cortes nas costas das mãos, seu instrumento de trabalho. Certa noite, sentada na banheira, ela se corta na vagina, esse estranho aparato de feminilidade.
Desde que o pai doente foi mandado para um asilo, Erika e a mãe moram sozinhas. As duas dormem na cama de casal. Erika não namora, nunca namorou, até porque a mãe— dominadora, possessiva, vigilante—não lhe dá espaço para tamanha liberdade. Erika acaba por reprimir seus instintos e sentimentos. Mas, às vezes, ela toma o caminho mais comprido até a casa. Sai do conservatório e passa por peep shows, visita cines pornôs, faz compras em lojas de artigos eróticos. Num domingo, fim de tarde, diz à mãe que tem uma aula particular. E vai até um parque distante do centro da cidade na tentativa de espiar casais fazendo sexo nos arbustos. Nessas situações, prestes a ser descoberta pelos amantes, Erika sente vontade de urinar.
Até queWalter Klemmer faz testes para entrar no conservatório. Klemmer tem um toque elegante ao piano, usa roupas distintas. É bem apessoado e tem 10 anos a menos que Erika.Mas o que mais intimida sua professora é que justamente esse jovem, camarada ostensivamente disputado entre as alunas, é o único homem por ali que parece percebê-la como mulher, que parece desejá-la como mulher. Além de apreciá-la como artista. E para isso, sobre todas as coisas, ela não está preparada. É Klemmer, portanto, quem precisará tomar a iniciativa.Mas a frieza de Erika, que ele pensa ser um desgastado artifício a esconder uma selvagem sexualidade, acaba por se revelar algo de outra natureza. A pianista é o percurso dessa revelação.

Vulgar e erudita

Elfriede Jelinek tem 64 anos e, se assim for o gosto do freguês, ela dá muito assunto para quem queria comparar sua biografia com a protagonista de A pianista. Elfriede, como Erika, estudou música e frequentou o Conservatório deViena. Seu pai, senil, morreu longe da família num sanatório. Elfriede e a mãe ficaram para trás. Marcelo Backs, professor de literatura e autor do posfácio desta edição, apresenta essas associações e menciona que a autora, quando perguntada sobre a contundência de sua obra, diz que não poderia ser outra a consequência de uma educação católica e da convivência em um ambiente intelectual dominado por homens.
Os demais romances de Elfriede Jelinek não ficam nada atrás em matéria de perversões e comportamentos desviantes. Só um exemplo: Die ausgesperrten (ou Wonderful times em inglês), de 1980, é a história de jovens xenófobos que andam à noite pelas ruas procurando passantes que possam espancar e deixar à morte.
A pianista é considerado seu momento mais acessível pois nele Elfriede freia os experimentos de linguagem que marcam sua produção em prosa, verso e também dramaturgia. Mas isso não garante uma leitura livre de incômodos. Elfriede acentua o desconforto natural de sua história com linguajar de baixo calão. Para Erika Kohut, seu órgão sexual é um“rato rançoso”. Os personagens e seus atos são comparados a animais numa espécie de naturalismo exacerbado. Não há palavra a ser evitada por indecorosa ou inconveniente. Não há eufemismos ou subentendidos. A escritora busca o grotesco, busca o confronto.
A pianista, no entanto, tem plena fluência narrativa e chama a atenção pelos recorrentes jogos de imagens e pelo cuidado da carpintaria, ao mesmo tempo vulgar (no palavreado de estivador) e erudita (nos recursos estilísticos). Elfriede garante ritmo intenso a uma ação que transcorre mais no interior dos personagens do que no mundo exterior. Para aumentar a sensação de mergulho nos personagens, ela extingue os diálogos tradicionais e os apresenta na forma de discurso indireto. Um artifício simples que ganha força graças à riqueza de matizes e semitons de Erika, de sua mãe e de Klemmer.

Excêntrica e ultrapassada

E, sobretudo, Elfriede Jelinek não carrega nenhuma compaixão por suas crias. Os três vértices desse triângulo parecem representar os tipos mais óbvios: a filha submissa, a mãe castradora, o estrangeiro sedutor. (Tu viste Cisne negro?) Mas, cada qual à sua vez, todos eles claudicam em seus movimentos previsíveis e desconcertam o esperado. Como se descobrissem novas e novas maneiras de danação. Maneiras essas que talvez não caibam aqui numa resenha, mas que levam Elfriede a se filiar a uma notável tradição austríaca...
O fantasma de Arthur Schnitzler (1862-1931) assombra e anima A pianista. Médico vienense transformado em artista boêmio, Schnitzler era amigo do doutor Sigmund Freud (1856-1939) e habitué de seu círculo de intelectuais. Ele foi um dos primeiros a usar na literatura de conceitos e ilações próprios da psicanálise. Obras como Breve romance de sonho (1926) foram consideradas ousadas e vulgares para os padrões da época ao mostrarem como a vida interior de seus protagonistas — sonhos & fantasias — pouco tinha a ver com a aparência e as necessárias imposturas da vida social. Schnitzler era tido como depravado, obsceno. Foi censurado.
Ora se não foi outra a reação a Elfriede Jelinek tantas décadas mais tarde. Sua obra também chegou a ser censurada na mesma Áustria — no ano 2000. Suas peças foram tiradas de cartaz por um par de anos, por serem consideradas violentas e ofensivas pelo governo local. Foi mais ou menos nessa época, e muito por essa razão, que Elfriede começou a ganhar todos os principais prêmios de dramaturgia e prosa no país. Ela chegou a dizer que se afastaria do trabalho — acabou por não acontecer.
Antes disso, ao lançar A pianista, em 1983, Elfriede já tinha sido devidamente escanteada para a prateleira dos autores excêntricos. De onde sequer um prêmio Nobel parece ser capaz de resgatá-la. A premiação da Academia Sueca foi tida como extravagância. A revista Der Spiegel chamou a autora de “ultrapassada” e lamentou que fosse justamente ela a escolhida a suceder Günter Grass no status de nobel em língua alemã.O jornal Die Zeit evitou comparações pois “Elfriede é lixo”.
A escritora Viviane de Santana Paulo, em artigo para a revista on-line Agulha, quando da premiação de Elfriede, foi feliz ao compará-la com Hilda Hilst. No sentido de ambas expressarem a condição feminina de maneira particular e imediatamente identificável. E também, claro, no sentido de ambas serem facilmente classificadas como “malditas”—oque não deixa de ser uma maneira de diminuí-las, estringi-las. Em outros tempos, certamente seriam queimadas como bruxas.
A pianista recebeu uma acolhida mais digna no cinema. O austríaco MichaelHaneke filmou a história em 2001, sob o título brasileiro de A professora de piano. Uma produção francesa filmada em Viena, falada em francês, com Isabelle Huppert como Erika Kohut. Isabelle e o filme foram premiados em Cannes. É fácil entender por que Haneke se interessou pelo texto de Elfriede. Em filmes como Funny games (1997), Caché (2005) e A fita branca (2007), Haneke faz ensaios sobre dominação e violência. Sobre a gênese da violência. Haneke filma como alguém que esmiuça vidas buscando encontrar nelas o momento exato em que a inocência se quebrou dando vez ao absurdo. E, de certa forma, A pianista é exatamente isso— umpequeno tratado sobre a origem do terror.

TRECHO
Klemmer continua a falar. Erika permanece em silêncio. Seus peculiares experimentos com o sexo oposto passa rapidamente por sua cabeça,mas essas lembranças não lhe fazem bem. E o presente, naqueles instantes, tampouco tinha lhe feito bem.Uma vez aconteceu com um representante comercial que insistiu tanto com ela para acompanhá-lo a um café que ela acabou indo só para fazê-lo calar-se. A patética coleção de tipos branquelos completava-se com um jovem turista e um jovem professor de colegial. Mas desde então muitos anos tinham se passado.Depois de um concerto, acadêmicos tinham apresentado subitamente a Erika as mangas de seu próprio casacão, como se fossem canos de uma metralhadora. E assim a desarmaram, pois tinham e mãos as armas mais letais.Nas duas ocasiões, o que Erika mais desejava era voltar para sua mãe o mais rápido possível. A mãe não ficou sabendo nada a respeito desses acontecimentos. Foi assim que ela provou dois ou três apartamentos de solteiro, com cozinhas embutidas e banheiras pequenas onde só se pode ficar sentado. Pratos bem azedos para o paladar delicado de uma conhecedora das artes.”
---------------
Fonte: http://www.correioweb.com.br/euestudante/noticias.php?id=19983&tp=25

Um comentário: