domingo, 15 de maio de 2011

Impressões digitais

Leonardo Brant*
O que é afinal cultura digital? Uma filosofia, um partido político, uma religião? Um novo setor cultural, como o da música, cinema ou dança? Um modo de fazer arte e cultura, que abrange todas as áreas e expressões? Os sistemas e o desenvolvimento tecnológico que nos auxiliam a fazer cultura? Uma política de cultura, que perpassa ou sobrepõe todas as outras?
Em pleno processo de discussão e construção do Plano Nacional de Banda Larga, vale uma discussão profunda sobre os rumos dessa política, já que ele nos coloca o grande desafio de pensar nas oportunidades dessa nova realidade que se apresenta para o campo cultural.
O Plano não tem respostas para uma das suas perguntas fundamentais: onde estão os conteúdos capazes de alimentar a fantástica rede que se formará ligando municípios sem qualquer acesso e presença do Estado no campo cultural?
Quando penso em cultura digital, refiro-me, na maioria das vezes, às novas possibilidades e paradigmas de criação, produção e compartilhamento que as tecnologias de informação e comunicação nos permite. Ou seja, penso nas possibilidades de produção de conteúdo e não nas tecnologias em si.
Observo, no entanto, investimentos consideráveis do Estado serem canalizados todos para o desenvolvimento tecnológico e me pergunto qual seria o plano arquitetado pelo Estado brasileiro em relação à cultura digital? Suas metas e objetivos foram corretamente traçados? E foram minimamente alcançados?
Compra de equipamento, desenvolvimento de software livre, pesquisas, redes. Dinheiro público concedido a ONGs, universidades, centro de desenvolvimento tecnológicos com o objetivo de explorar as novas possibilidades de produção cultural no campo cibernético. O que de fato foi gerado com esse investimento? Que tipo de balanço e aprendizado podemos tirar?
O dilema que enfrentamos enquanto política pública de cultura é se o desenvolvimento tecnológico faz-se mais relevante do que a produção criativa que se faz a partir dele. Assim como não se faz cinema sem equipamentos e softwares, não se faz cultura digital sem plataformas de rede. Mas se o governo nunca se preocupou em financiar a indústria fornecedora do mercado de cinema, porque estaria preocupado em financiar a da “cultura digital”. Esse investimento é realmente público, ou foi canalizado para pessoas e empresas voltadas para projetos privados? E se os projetos são privados, o Estado poderia mapear seus ganhos com geração de empregos, recolhimentos de impostos?
Se a política para a cultura digital é uma interrogação, podemos dizer o mesmo do mercado? Onde ele está, como se comporta e se desenvolve a cadeia econômica?
Seria atribuição do Ministério da Cultura dar cobertura, financiamento e pesquisa ao software livre, por exemplo? Teríamos condições de patrocinar pesquisas universitárias sobre este assunto? Ou isso não seria atribuição dos ministérios da Ciência e Tecnologia, da Educação ou até mesmo das Comunicações? Estamos falando de instâncias muito mais abastadas do ponto de vista de estrutura, orçamento e institucionalidade.
Considerando o estado de abandono e a falta de investimento para setores como do teatro, dança, circo e outras formas menos “digitalizáveis” e menos aderentes ao novo e ao velho mercado, percebemos um claro problema de percepção de nossas prioridades, que precisam ser corrigidas.
Podemos ainda abordar cultura digital pelos modelos de negócios inovadores, gerando novas possibilidades de sustentabilidade aos artistas. Isso exigiria uma consciência sobre os rumos tomados pela indústria cultural dominante, com uma lógica cada vez mais digital, transmídia, convergente. Acredito que a discussão sobre direito autoral precisa realmente ser atualizada para compreender esse novo fenômeno, que fragiliza ainda mais os artistas.
Um outro tipo de sombreamento possível é o investimento em mídia (falo aqui das mídias livres, mas o mesmo princípio se aplica para a relação com as mídias impressas patrocinadas pelo MinC). Acredito que esse tipo de investimento seja atribuição da Secretaria da Comunicação (SECOM), ligado à Presidência da República e não ao Ministério da Cultura e muito sensível ao surgimento de novos meios de produção e mediação de conteúdos informativos. O tipo de controle social realizado naquela instância garante o espírito republicado e os princípios de impessoalidade e probidade que acompanham a relação entre mídia e governo.
Este artigo não visa diminuir a importância da cultura digital. Muito pelo contrário. Estamos falando de uma questão vital para as políticas culturais atuais e para todos os cidadãos. Precisamos acumular reflexão, criar bases sólidas para o desenvolvimento de políticas e ampliar a visão deste assunto para além de uma visão setorial, restrita aos grupos interessados no assunto e que avançaram muito na questão.
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* Pesquisador independente de políticas culturais, autor do livro "O Poder da Cultura". Diretor do documentário "Ctrl-V VideoControl, criou e edita o site Cultura e Mercado. É sócio-diretor da Brant Associados, consultoria para desenvolvimento de negócios culturais.

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