sábado, 28 de maio de 2011

Camboja - Uma Igreja renascendo das cinzas

 Entrevista com o Vigário Apostólico de Phnom-Penh
(Camboja)

O Camboja ainda carrega as feridas do Khmer Vermelho - um regime brutal [comunista] que governou de 1975 a 1979 em que morreram cerca de 2 milhões de pessoas. Eis a elite cultural: os médicos, os advogados, os professores e as autoridades eclesiásticas. Hoje, o Camboja conta com 14 milhões de habitantes, dos quais 96% são budistas e os cristãos chegam a pouco mais que 1% da população.
O bispo Dom Oliver Michel Marie Schmitthaeusler nasceu em 1970 em Estrasburgo (França). Depois de sua ordenação em 1998, foi para o Camboja como missionário. Em março de 2010, foi ordenado bispo e empossado como Vigário Apostólico coadjutor de Phnom-Penh, capital do Camboja.

Excelência, o senhor foi recentemente nomeado bispo da capital Phnom-Penh. Qual foi sua reação inicial? Foi um choque?
Fiquei surpreso e receoso porque era muito jovem. Tinha apenas 39 anos - talvez àquela altura o bispo mais jovem do mundo. Eu me sentia como Jeremias: "Senhor, eu sou tão jovem. O que posso fazer?" E então me lembrei de Maria que disse: "Eis a serva do Senhor", e então aceitei a nomeação.

Excelência, o senhor vive há 13 anos no Camboja. O senhor escolheu ir para o Camboja ou foi convidado a ir pela Missão Estrangeira de Paris (MEP), a ordem religiosa que envia missionários para a Ásia?
De fato, sou membro da Missão Estrangeira de Paris e recebi a comunicação quando me ordenei diácono. O Superior Geral anunciou para todos depois de minha ordenação: "Olivier, você vai para o Camboja".

O senhor sentiu medo?
Fiquei surpreso e, ao mesmo tempo, feliz. Estive no Japão por 3 anos como seminarista. Eu amo a Ásia e quando recebi esta missão, fiquei feliz de ir para o Camboja.

O senhor trabalhou por 10 anos em paróquias rurais. O que o senhor aprendeu dos cambojanos?
Foi uma experiência maravilhosa para mim, especialmente nos lugares em que estive. Era uma igreja muito pequena. Quando cheguei havia apenas um cristão. Começamos tudo do zero. Construímos a igreja e organizamos um grupo de jovens. Tivemos o primeiro batismo em 2003 - temos agora um total de 98 pessoas batizadas e 35 catecúmenos que serão batizados no próximo ano. Começamos também uma pequena escola - um jardim-da-infância e uma de ensino médio. Temos também um centro de tecelagem de seda. O povo Khmer é muito amigável e eles me acolheram de braços abertos. Foi uma ótima experiência para minha vida sacerdotal. Ser muito difícil para mim ter de partir.

O povo cambojano é 96% budista. Qual foi a reação das vilas vizinhas quando o senhor começou a evangelizar? Eles foram receptivos ao fato de que de repente havia uma vila cristã incipiente entre eles?
Nesta vila somos muito felizes; Deus está conosco. As pessoas nos aceitam muito bem porque temos um jardim-da-infância e os pais, todos budistas, mandam seus filhos para nossa escola. Também temos algo parecido a um grupo de escoteiros e toda manhã de domingo temos mais de 300 crianças que frequentam uma hora de formação.

E os pais não temem que seus filhos se convertam?
Temos feito isto há mais de seis anos e a cada ano o número aumenta, então penso que isto seja um bom sinal. Começamos uma nova paróquia a cerca de 40 km de distância e inicialmente tivemos problemas, especialmente entre os jovens.

Por que?
Por dois anos, com microfones e megafones, dos pagodes [templos budistas] eles davam algumas informações equivocadas sobre a Igreja Católica, dizendo que se as crianças fossem para a Igreja Católica elas não obteriam autorizações para o casamento nem receberiam auxílio de algumas ONGs. No Natal de 2006, convidamos todos os avós da vila. Eles ficaram muito felizes e perceberam que a Igreja Católica é muito receptiva e recebe a todos. Tornamo-nos bons amigos. Há também algo interessante, nesta vila, a cada domingo eu tenho de 10 a 20 pessoas da comunidade budista que vêm à Igreja para ver o que estamos fazendo. Eles assistem à Missa e ouvem a homilia. A relação é muito interessante.

A cultura é fortemente budista. Ser um Khmer é ser budista e abraçar outra fé é um anátema ao ser Khmer - uma rejeição à própria cultura ou identidade. Isto está correto?
Penso que no Camboja, durante os quatro anos de terror do Khmer Vermelho sob Pol Pot, tudo foi destruído: cultura e toda forma de religião, incluindo budismo e catolicismo. E então durante os 10 anos de ocupação vietnamita comunista, pós-Khmer Vermelho, novamente nenhuma forma de religião era permitida. Ao longo dos últimos 20 anos, os cambojanos começaram a reconstruir suas tradições e práticas religiosas e agora, penso, as pessoas estão mais abertas que antes. Isto é muito benéfico especialmente para a Igreja Católica. Quando os jovens se tornam cristãos, por exemplo durante o batismo, convidamos seus pais e avós para participarem. Há dois anos tivemos um funeral. Um funeral é muito importante para os budistas e eles têm a percepção que os católicos não estão muito interessados nos mortos e que não têm respeito pelos mortos, especialmente pelos pais mortos. Eles estavam esperando para ver o que eu faria durante as exéquias. Eles ficaram muito impressionados com o que viram. Eu segui suas tradições exequiais, incluindo os sete dias de velório da tradição budista. Eu tentei convencê-los de que nós católicos não rejeitamos os mortos, de que rezamos pelos mortos e de que acreditamos na Ressurreição e a esperamos. Foi uma oportunidade para testemunharmos Cristo e uma oportunidade para os budistas verem o que fazemos.

O que leva um budista a abraçar a fé e se tornar cristão?
Começamos com os jovens. Os jovens são missionários muito eficientes; porque meus amigos vão á igreja, eu também gostaria de ir à igreja mesmo que não compreenda plenamente o que a igreja realmente é. Esta é a primeira fase. A segunda fase é a descoberta da caridade. Nós temos obras caritativas em todas as nossas igrejas. É a caridade dos católicos extensiva a todos, não apenas aos próprios católicos, mas a todos indistintamente, especialmente aos pobres. É disto que eles são testemunhas e a isto eles são eventualmente atraídos - a abrir seus corações e amar a todos. A terceira fase, que é muito importante, é o encontro com Jesus. Isto, entretanto, leva tempo porque é uma nova experiência, mas através da oração e da leitura da Bíblia, eles então conhecem Jesus. É um processo gradativo. Recebemos frequentemente muitos jovens e na minha igreja temos cerca de cem deles todos os domingos, sendo mais de 60 budistas. Destes 60, de 20 a 30 continuarão com a formação.

Voltemos ao Khmer Vermelho sob o período Pol Pot. Houve destruição em massa de igrejas bem como completa proibição de práticas religiosas. Como vocês enfrentam este problema hoje?
O período de 1975 a 1979 foi caracterizado pela destruição em massa de propriedades eclesiásticas e pela morte de padres e religiosos. Tivemos dois bispos mortos; um foi morto e outro morreu de uma enfermidade - o primeiro bispo Khmer na história do Camboja - sem esquecer que dois milhões de pessoas Khmer também morreram. Os missionários começaram a regressar em 1989, o primeiro em mais de 30 anos. A primeira celebração foi na Páscoa e havia cerca de 1500 pessoas Khmer na assistência; alguns recém-convertidos, porque os missionários foram muito ativos nos campos de refugiado na fronteira com a Tailândia, e alguns já eram católicos antes do regime de Pol Pot. A nova Igreja Católica no Camboja começou com 1500 Khmer.

O senhor agora está a reconstruir não somente uma comunidade, como também a infraestrutura. Como isto está acontecendo?
Em Phnom-Penh temos apenas uma igreja, a qual era um seminário menor antes de Pol Pot. Nós a compramos há 20 anos e se tornará a igreja principal de Phnom-Penh. Temos uma outra que construímos há 4 anos, mas eu sou um bispo sem Catedral, porque a Catedral de Phnom-Penh foi destruída em apenas uma semana de ocupação do Khmer Vermelho em 1975. Então estamos ainda num processo. Há também uma revitalização da vida cristã. No ano passado, fizemos uma avaliação dos últimos 20 anos de evangelização de 1989 a 2009, e se percebeu o desejo das pessoas de terem uma igreja, uma Catedral, e isto é um sinal de esperança. E isto nos mostra que uma presença física é importante.

Quais cicatrizes o senhor vê que ainda permanecem entre o povo no período posterior a Pol Pot?
As cicatrizes começam antes de Pol Pot. Houve uma guerra civil nos anos 70 durante a época de Lon Nol e a ocupação vietnamita depois de Pol Pot. Foi um longo período. Não houve transmissão da tradição cultural, valores e história durante este período, e esta transmissão é muito importante de uma geração a outra. A principal preocupação naquele período era simplesmente sobreviver; procurar comida e abrigo e não havia tempo para transmitir tradições culturais, valores e história. Para os jovens isto é um desafio quando começam a constituir famílias porque eles carecem de um vínculo com sua herança e de conhecimento dela. No Camboja, 60 % da população tem menos de 20 anos e não têm conhecimento da guerra civil, do regime de Pol Pot e mesmo de sua própria cultura. Sendo assim, este é um grande desafio para o governo e para a Igreja igualmente.

Qual é a prioridade particularmente à luz desta questão?
No Camboja, educação é a prioridade. Os recursos humanos foram destruídos e agora eles têm de reconstruir tudo. É também uma prioridade da Igreja Católica porque a educação é parte da formação e para mim, ao começar uma nova missão na Diocese de Phnom-Penh, a educação é uma prioridade porque estamos agora vivendo com a primeira geração de cristãos. Eles foram batizados há 20, 10, 5 anos e a educação é um meio que eles têm de aprofundar suas raízes cristãs e culturais, para ajudá-los a se tornarem líderes na Igreja e em suas famílias, e a constituir famílias cristãs melhores. Temos agora dois seminaristas, o que é muito, porque somos apenas 14 mil cristãos, e então dois seminaristas é uma boa média. Precisamos formar boas famílias cristãs a fim de encorajar as vocações. O primeiro foco, portanto, é a formação e a educação em geral. Começamos com um jardim-da-infância e agora temos cerca de 25 deles na diocese. Temos também uma escola técnica na tradição de Dom Bosco.

E o processo de reconciliação após o terrível período em que 2 milhões de pessoas foram assassinadas?
A maioria das pessoas não pensa nem está interessada nisto; reconciliação é um conceito apenas nosso. A vida, para a maioria do povo Khmer, é difícil e eles estão focados em ganhar a vida. Eles miram o futuro e não o passado.

Então não há uma preocupação da Igreja Católica em enfrentar a questão?
Tentamos fazê-lo através de nossos meios de comunicação social. No ano passado tivemos um encontro com um dos juízes internacionais e nos concentramos num encontro com católicos que sobreviveram durante aquele período. Também no ano passado, em nossa escola secundária católica, tivemos um dia em que falamos sobre o período do Khmer Vermelho. Convidamos sobreviventes para falar. Fomos então a um memorial, chamado campos da morte. Rezamos com monges e sacerdotes. Tentamos, pouco a pouco, manter a memória daquela época trágica porque penso que isto seja importante, para que não nos esqueçamos, e isto é um desafio para o país, porque evidentemente não podemos nos esquecer disto.

Eu soube que o rei assistiu à Missa de Réquiem do Papa João Paulo II. Como é a relação com o governo hoje?
A relação é boa, especialmente entre o governo e a Igreja Católica. Há um ministro para o culto e a religião, como em todos os demais países comunistas. Fui Vigário Geral da diocese de Phnom-Penh durante três anos e tenho boas relações com o governo e somos sembre bem recebidos.

Não é tudo fácil, entretanto. O senhor não pode fazer visitas de porta-em-porta. Como isto atinge o trabalho de evangelização, já que não se pode visitar as famílias nas vilas?
Não é bem assim. Não podemos ir de porta-em-porta como os mórmons, nem podemos usar o sistema público para proselitismo. Posso entender isto. Alguns protestantes usam grande pôsteres com citação de algumas passagens bíblicas e isto não é permitido. Eu posso visitar famílias na vila sem restrições. Nós explicamos o que é a fé católica ao governo e sempre usamos o termo Católicos e não Cristãos.

O que provoca uma reação tão negativa do governo quando uma determinada seita cristã ou protestante se estabelece?
Há muitas seitas cristãs no Camboja e o governo tem dificuldade de entender quem é quem. Eles estão satisfeitos conosco porque temos uma estrutura clara: o Papa, os bispos e os padres.

Esta reação negativa se deve também ao agressivo proselitismo de algumas seitas?
Sim, está é uma das razões. Eu lhes darei um exemplo muito concreto: no ano passado eu solicitei a cidadania cambojana. Fui ao Ministério do Interior para uma entrevista. Expliquei-lhes que eu era um padre da Igreja Católica. O entrevistador estava furioso com os cristãos. Ele não entendia a diferença entre os católicos e os outros. Ele disse: "Seu grupo escreveu num muro que vocês têm de odiar Buda para estar com Jesus". Declarações como esta são muito destrutivas especialmente na mente de não cristãos e temos muitos casos como este. Não quero dizer que todos são agressivos e críticos a tudo o que seja cambojano ou Khmer, mas isto às vezes torna difícil mencionar que nós - Católicos - somos Cristãos.

Quais seriam as necessidades atuais de seu país e da Igreja Católica?
A necessidade de formação e ajudar nosso povo a encontrar-se com Deus; isto é muito importante. Encontrar tempo para rezar em silêncio, para ter uma relação com Jesus e com Deus - este é um grande desafio num país budista.
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Esta entrevista foi conduzida por Mark Riedemann para "Where God Weeps", um programa semanal para rádio e televisão produzido pela "Catholic Radio and Television Network" em conjunção com a associação caritativa católica internacional "Ajuda à Igreja que sofre".
Fonte: Aid to the Church in Need
Tradução: OBLATVS

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