domingo, 27 de março de 2011

Europeus são de Marte, americanos são de Vênus

TIMOTHY GARTON ASH*
 O que escondem as mãos cruzadas do embaixador alemão 
da ONU, Peter Wittig: embaraço ou vergonha?

Então os europeus são de Marte e os americanos, de Vênus! Os macacos comedores de queijo - os franceses - lideram a investida militar na Líbia. As águias comedoras de hambúrguer vacilaram e ficaram para trás.
O problema é que esses estereótipos grosseiros são tão enganadores agora como quando da guerra no Iraque. Hoje, como então, os americanos estão divididos e os europeus mais ainda. França e Grã-Bretanha lideraram a campanha em favor de uma zona de exclusão aérea e "de todas as medidas necessárias" para proteger a população civil na Líbia. A Alemanha desligou-se dos seus parceiros. O governo Obama de início manifestou a mesma relutância em se envolver em algum tipo de intervenção militar, mas acabou mudando de posição em resposta à brutal campanha de Kadafi para restabelecer o próprio poder, à decisão notável da Liga Árabe aprovando a intervenção e à pressão de muitos americanos. Entre eles Robert Kagan, o neoconservador que popularizou a expressão original: "Os americanos são de Marte, os Europeus são de Vênus".

No tocante à França, não devemos ter ilusões quanto aos motivos pessoais de Nicolas Sarkozy. Ele certamente espera que, causando boa impressão, seus índices de aprovação possam aumentar, propiciando melhores chances para se reeleger no próximo ano. Uma ação decisiva em defesa dos direitos humanos árabes supostamente dissimulariam a vergonhosa atuação do seu governo ao acolher líderes árabes que pisoteiam sobre esses direitos, incluindo Hosni Mubarak, até recentemente copresidente, com Sarkozy, da União pelo Mediterrâneo, Ben Ali, da Tunísia e, sim, Muamar Kadafi.

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, está numa posição política bem diferente, mas chegou a uma conclusão similar. Os motivos que animam as pessoas sempre são ambíguos. O que importa é o mérito da questão e as realidades subjacentes.
Não foram as ilusões de grandeza de Sarkozy que persuadiram a Liga Árabe a apoiar tal ação e o Conselho de Segurança da ONU a aprová-la. O que mudou as mentes foi Kadafi matando o próprio povo, ameaçando eliminar os "ratos" que se opõem a ele, caçando-os casa a casa, sem piedade nem perdão; foi Saif al-Islam Kadafi vociferando em cima de um tanque; foi Benghazi quase caindo diante das forças de Kadafi.

A decisão de intervir, tomada sensatamente e sem ilusões, baseou-se numa única proposição: se não interviéssemos, em breve as coisas ficariam piores para muitos. Essa foi a lógica que convenceu uma maioria dos membros do Conselho de Segurança a votar a favor da resolução 1973 (e, incidentalmente, levou o presidente de Ruanda a apoiá-la). Mas não a Rússia, China, Brasil e Índia, não também a Alemanha. Para mim, uma das imagens definidoras desta crise foi a do embaixador da Alemanha nas Nações Unidas, Peter Wittig, sentado com as mãos cruzadas e uma expressão de aflição no rosto, enquanto a seu lado o embaixador do Gabão, Emmanuel Issoze-Ngondet, levantava o braço aprovando uma resolução destinada a salvar civis inocentes da fúria de um ditador meio enlouquecido. Gostaria de saber o que Wittig, um homem decente, sentiu naquele momento. Simples embaraço? Ou algo mais próximo da vergonha?

Muito se diz de França e Alemanha como o casal inseparável no coração da Europa, liderando juntos o continente para levá-lo a falar ao mundo numa única e mais forte voz. Em vez disso, os ministros das Relações Exteriores da França e da Alemanha, Alain Juppé e Guido Westervelle, se mostraram em total desacordo. "Digo o que penso e ele diz o que pensa", afirmou bruscamente Alain Juppé depois de uma discussão entre os dois em Bruxelas, na segunda-feira. E Juppé lançou esta crítica devastadora: "A política de defesa e segurança comum da Europa? Está morta".

O problema aqui não é a participação direta da Alemanha. Todos compreenderiam se isso não fosse possível. Mas como pode a Alemanha não apoiar uma resolução das Nações Unidas defendida por seus principais parceiros europeus, Estados Unidos e Liga Árabe? Pior ainda, recentemente Guido Westerwelle, para defender a abstenção alemã, citou dúvidas manifestadas pela Liga Árabe quanto ao alcance da ação militar. "Nós calculamos o risco. Se observamos que três dias depois do início dessa intervenção, a Liga Árabe ainda fizer críticas, acho que tivemos boas razões." Enquanto os pilotos franceses e britânicos põem suas vidas em risco na ação, o ministro alemão das Relações Exteriores está, virtualmente, encorajando a Liga Árabe a oferecer mais críticas. Uma palavra que me vem à mente é dolchstoss (punhalada nas costas).

Existem várias razões por trás desse comportamento alemão. Westerwelle é um dos mais fracos ministros do Exterior que a Alemanha já teve. Como líder dos liberal-democratas, ele está apavorado com algumas importantes eleições regionais - como Angela Merkel também está. E da mesma maneira que muitos políticos europeus contemporâneos, ambos mais acompanham do que lideram a opinião pública. Tendo assumido cautelosamente, nos anos 90, responsabilidades internacionais maiores, incluindo as militares, a sociedade alemã parece ter retomado a atitude do "deixe-nos em paz". O extraordinário crescimento de suas exportações se dá cada vez mais fora do velho Ocidente, com países como Brasil, Rússia, Índia e China, os Brics com os quais ela se aliou nas Nações Unidas. Deixemos que a Alemanha se
converta numa grande Suíça!

Mesmo que você ache que o enfoque alemão no problema específico da zona de exclusão aérea foi correto, e o da França, errado, deve admitir que essas divisões transformaram em piada as pretensões da Europa de chegar a uma política externa comum. E lembre-se de que este seria o ano em que a União Europeia finalmente teria uma política externa comum. "A reunião de hoje", disse Catherine Ashton, alta representante da União Europeia para a política de segurança e externa, após a contenda da segunda-feira, "mostrou a determinação da UE em reagir rápida, decisivamente e a uma só voz aos acontecimentos na Líbia." Ela merece um prêmio por conseguir afirmar isso com tamanha desfaçatez. Com Estados membros importantes tão divididos, mesmo a melhor alta representante não poderia fazer muita coisa.
Não me entenda mal: minha crítica à posição alemã não significa que não tenha dúvidas sobre essa operação. Tenho, e sérias, como quase todas as pessoas que conheço. Estou convencido de que, se continuássemos inativos, o resultado seria terrível para os civis atacados pelas forças de Kadafi. A situação ficaria cada vez pior se não agíssemos.
Mas agora precisamos provar que as coisas ficarão melhores exatamente porque intervimos.
Neste ponto estamos diante de um vácuo entre os claros limites do mandato das Nações Unidas para a proteção dos civis e a condição essencial para se conseguir isso: a queda de Kadafi. O único bom desfecho virá se a ação militar aprovada pela ONU, limitada e cuidadosamente dirigida, permitir que os próprios líbios se livrem de Kadafi. Para isso, o compromisso operacional que a coalizão parece estar seguindo - a Otan no comando e controle, numa embalagem política mais ampla - é provavelmente a melhor maneira de avançarmos. Depois, tudo dependerá das pessoas em campo.

Contudo, muitos resultados piores são bem possíveis, incluindo uma divisão inquietante e prolongada da Líbia, com Kadafi ainda no controle da parte ocidental do país. Uma Europa dividida aumenta a probabilidade de uma Líbia dividida. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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* É PROFESSOR DE ESTUDOS EUROPEUS NA UNIVERSIDADE DE OXFORD, SÊNIOR FELLOW DA HOOVER INSTITUTION, DA UNIVERSIDADE STANFORD, E AUTOR DE FACTS ARE SUBVERSIVE (YALE UNIVERSITY)
Fonte: Estadão online, 26/03/2011

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