quarta-feira, 16 de março de 2011

Sapato velho

Ruy Carlos Ostermann*
Não gosto da ideia cataclísmica de que o mundo está assim porque estamos forçando-o a que seja assim, devoluto, absurdo, de ondas gigantescas, desenleando do fundo da terra em contraturas e imensas rachaduras que irrompem de baixo para cima e vão acelerando tudo que deixamos inadvertidamente nas cidades, nas ruas - e nas usinas nucleares.
Não gosto de me sentir culpado por um fenômeno tão grande, que invade a minha TV e parece romper com seus limites de segurança eletrônica e me deixa, à noite, no vão da cama com sobressaltos quase sísmicos não estivesse apoiado firmemente no chão e nada tremesse ao redor, além de mim.
Culpa temos, e muita, mas não podem ter aumentado tão desumanamente água, vento, fogo e vapores só porque praticamos os crimes do desmatamento e todas as atrocidades contra a humanidade. Não temos muito valor cósmico, somos uns reles investigadores tateantes de galáxias que não nos dizem respeito e são inacessíveis. Pertencemos a um reduto pobre e em decomposição da Terra, uma província do que não conseguimos superar.
Não sou inocente, mas também não posso ser culpado. E se trato dessa calamidade na primeira pessoa é porque me sinto de algum modo, responsável. Nenhum homem é seu algoz, nenhum homem é sua inocência. O mundo que desaba é irremediavelmente o nosso mundo, esse mesmo que sempre identificamos com nossa ignorância do que ele pudesse ser, como um sapato velho.
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* Jornalista.
Fonte: http://www.encontroscomoprofessor.com.br 16/03/2011

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