segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O relativismo rasteiro do aluno (e do professor!)

Paulo Ghiraldelli Jr*
Parece que o relativismo saiu do campo filosófico, onde tem algum sentido, e adentrou para o âmbito do senso comum, tornando-se um alimento esquisito de estudantes ruins e, agora, até de professores – em geral os formados em faculdades particulares pouco recomendáveis.
O caminho pelo qual o senso comum chegou ao relativismo pode ter a ver com alguma derivação da filosofia. Trata-se do rapaz ou da garota que ouviu em algum lugar a frase de Nietzsche “só há interpretação” e, então, acredita que pode escrever suas opiniões na prova e, ao final, jogar esse pó de pirilimpimpim nos olhos do professor e exigir uma nota boa. Este, atordoado, tem de lhe dar uma nota. Quando é só o aluno que faz isso, tudo bem. Mas quando até mesmo o professor (universitário!) já chegou a este ponto, as coisas realmente vão de mal a pior. Os Estados Unidos viveram isso. Com a inclusão digital de Lula, estamos podendo notar melhor que o Brasil, mutatis mutandis está chegando ao mesmo Calvário, onde ocorrerá a crucificação da verdade e do certo, indistintos do falso e do errado. Se antes já não se podia falar do belo, pois alguém vinha glorificar a estupidez com a frase “beleza não se põe na mesa”, agora as novas gerações acham que Nietzsche e outros “pós-modernos” irão lhes autorizar a não ler mais nada, pois podem dizer qualquer coisa de qualquer coisa.
É desagradável tirar a chupeta da boca dessa juventude, mas, enfim, está na hora desse pessoal chegar à vida adulta. Para tal, vou contar um segredo (de Polichinelo): o falso é o falso, o errado é o errado, o verdadeiro é o verdadeiro e o certo é o certo. Nada mudou. Ou melhor, o que mudou não os atinge.
A postulação relativista não se sustenta pela lógica. E sem a lógica, não temos como conversar. Pois veja, se digo que “só há interpretação”, então essa frase também é só uma interpretação (a mais) e, portanto, não tenho razão nenhuma para lhe dar grande valor. Ela vale tanto quanto a sua contrária, que nega que o enunciado “só há interpretação”. E eis que estamos enredados numa situação complicada: quando afirmamos, negamos o que afirmamos.
É esquisito que o jovem não perceba isso, que é algo simples e básico da lógica, e queira a qualquer momento sacar o seu “tudo é uma questão de ponto de vista” para dizer algo que não está implícito aí nessa frase que é “tudo é uma questão de ponto de vista, e ponto de vista cada um tem o seu, que deve ser considerado válido”. Ou seja, o relativismo, graças a um democratismo que nada tem de democrático, se envolve na criação de um sofisma. O sofisma é jogado como casca de banana no pé do professor. Este, estando no mesmo plano de argumentação do aluno, não consegue então dar a nota ao trabalho do aluno. Resta a ele dizer, autoritariamente, que o aluno errou. O aluno irá dizer: “não errei, o senhor é que não consegue conviver com a minha opinião divergente”. Ponto final. O professor, vitimado pela esperteza pouco inteligente do aluno, tem de engolir essa, dado que sua formação é tão triste quanto a que o aluno quer obter.
Bastaria o professor mostrar que a frase “só há interpretação” não se sustenta para calar o aluno. Mas ele, professor, já não pensa mais logicamente. Aliás, ele próprio não percebe a falácia. Ou, pior ainda, ele ouviu alguém dizer que Nietzsche pronunciou essa frase e viu muitos comentarem, então ele acredita que ela valha também para questões da prática do “como corrigir uma prova”. Ele não percebe que o “só há interpretação”, na boca de Nietzsche, diz respeito a uma tentativa filosófica de ir além da lógica. Mas sem chutar a lógica. “Só há interpretação” diz apenas que há múltiplas perspectivas. Nietzsche nunca disse que todas as perspectivas são equivalentes. Nietzsche adotou o perspectivismo, não o relativismo.
Mas, então, qual o critério para Nietzsche avaliar as perspectivas? Nesse caso, a conversa sai do campo comum e entra para a própria doutrina de Nietzsche. Ele advoga uma perspectiva que não seria a do homem, a minha ou a de qualquer outro enquanto bípede-sem-penas, mas a perspectiva da vontade de potência. Bem, mas o que é e o que faz a vontade de potência? Eis então que os scholars se digladiam: uns apóiam a idéia de que se trata de um princípio metafísico e outros afirmam que se trata de um elemento cósmico ou, ainda, de uma metáfora para poder conversar além da conversação “demasiado humana” (presa ao Humanismo). Mas, a essa altura, já não estamos mais falando de questões práticas que permitem avaliar uma prova. Estamos já dentro de um complexo pensamento filosófico. Cabe então, voltar à prova do aluno.
Na prova do aluno, as coisas são simples: pois o que se compara são textos, e a comparação, portanto, é de ordem empírica. Há o que podemos concordar que se trata de uma descrição e há o que podemos concordar que já é uma interpretação. Mas, se na escola primária não ocorreu o aprendizado de como fazer a descrição, a partir de olhar um quadro, e em cima disso, o aprendizado de fazer uma interpretação, então, mais tarde, realmente tudo fica muito confuso. Ou seja, por um problema de má-alfabetização, alguém pode muito bem chegar à faculdade querendo ler filosofia sem nem poder ler O Pato Donald. Isso ocorre com muita gente. São pessoas assim que não conseguem entender o que estão lendo, pois não sabem mais as hierarquias narrativas que um texto cria. Entendem as palavras, mas não conseguem entender os níveis de complexidade dos textos. Lêem de modo errado e quando escrevem produzem algo infantil, até meio estúpido, para não dizer maluco.
"É difícil expor essa história
diante do caos em que está a educação brasileira.
Mas, o que cabe a todos nós filósofos,
ao menos no Brasil, é a tarefa de
não nos trancarmos e, enfim,
continuarmos nessa batalha."
O caos mental de pessoas assim as faz acreditar (ou simplesmente se agarrar nessa muleta) que “cada um tem sua verdade”, e que a verdade não tem mais nenhuma objetividade. Não conseguem entender os manuais de filosofia quando estes dizem que a verdade é objetiva. Acreditam que a verdade é subjetiva. Mas não é. A verdade é um adjetivo de enunciados, especialmente proposições, e para uma proposição só há duas possibilidades, ou é (objetivamente) verdadeira ou é (objetivamente) falsa. “A banana está sobre a mesa” – cabe dizer desse enunciado que ele é falso se não há a banana em cima da mesa e cabe dizer que ele é verdadeiro se há a banana em cima da mesa (da mesa em questão). Isso é objetivo. Agora, se alguém me diz como que eu justifico a verdade de “A banana está sobre a mesa” e a banana está sobre a mesa, eu posso dizer que minha justificação é dada, por exemplo, pela frase “eu vi a banana sobre a mesa”. Alguém pode dizer que eu fui enganado, que era um bastão, não uma banana. Eu posso ampliar a justificação, dizendo “eu vi bem de pertinho e minha mãe estava comigo e também viu, era uma banana”. E assim por diante, seguem-se as justificativas.
Posto o valor verdadeiro de um enunciado, o que pode ser chamado de subjetivo são as justificações para sustentar o valor verdadeiro (ou falso de uma proposição). E essas justificativas não são quaisquer. Elas são boas quando mostram plausibilidade diante de platéias interessadas (e competentes, dentro de uma certa possibilidade do tempo e do espaço). No caso do aluno, a platéia é o professor e a comunidade científica representada pelo professor.
É difícil expor essa história diante do caos em que está a educação brasileira. Mas, o que cabe a todos nós filósofos, ao menos no Brasil, é a tarefa de não nos trancarmos e, enfim, continuarmos nessa batalha. Sei que alguns colegas desistiram e foram para os gabinetes ler o seu autor preferido. Eu sei disso! Mas, isso pode ser um perigo daqui um tempo. Podemos estar criando uma sociedade inteira que poderá ter uma dificuldade imensa de ler a revista Caras.
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*Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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A poetisa, a mística e a gata

Leonardo Boff*
A Igreja Católica italiana apresenta em sua história uma contradição fecunda. Por um lado há a presença forte do Vaticano, representando a Igreja oficial com sua massa de fiéis mantidos sob vigilante controle social pelas doutrinas e especialmente pela moral familiar e sexual. Por outro, há a presença de cristãos leigos e leigas não alinhados, resistentes ao poder monárquico e implacável da burocracia da Cúria romana mas abertos ao evangelho e aos valores cristãos sem romper com o Papado embora críticos de suas práticas e do apoio que dá a regimes conservadores e até autoritários.
Assim temos a figura de Antônio Rosmini no século XIX, fino filósofo e crítico do antimodernismo dos Papas. Modernamente identificamos figuras como Mazzolari, Raniero La Valle, Arturo Paoli, a eremita Maria Campello. Entre todos destaca-se Adriana Zarri, eremita, teóloga, poetisa e exímia escritora. Além de vários livros, escrevia semanalmente no diário Il Manifesto e quinzenalmente na revista de cultura Rocca.
Era duríssima contra o atual curso da Igreja sob os Papas Wojtyla e Ratzinger a quem acusava diretamente de trair os intentos de reforma provados pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e voltar a um modelo medieval de exercício de poder e de presença da Igreja na sociedade. Veio a falecer no dia 18 de novembro de 2010 com mais de 90 anos.
Visitei-a por algumas vezes em seu eremitério perto de Strambino no norte da Itália. Vivia só num enorme e vetusto casarão, cheio de rosas e com sua gata de estimação Arcibalda. Tinha uma capela com o Santíssimo exposto para onde se recolhia várias horas por dia em oração e profunda meditação.
Na conversa com ela, queria saber tudo das comunidades eclesiais de base, do engajamento da Igreja na causa dos pobres, dos negros e dos indígenas.
Tinha um carinho especial pelos teólogos da libertação por causa da perseguição que sofriam por parte das autoridades do Vaticano que os tratavam, segundo ela, “a bastonadas”enquanto usavam luvas de pelica aos seguidores do cismático Mons. Lefebvre.
Seu último artigo, publicado três dias antes de sua morte, dedicou-o à gatinha de estimação Arcibalda. Com ela, como pude testemunhar pessoalmente, possuía uma relação afetuosa como de íntimos amigos. Aquilo que a nossa grande psicanalista junguiana Nise da Silveira descreveu em seu livro Gatos, a emoção de lidar o confirmou Zarri:”o gato tem a capacidade de captar o nosso estado de alma; se me vê chorando, logo vem lamber minhas lágrimas”.
Contam que a gata esteve junto dela enquanto expirava. Ao ver os amigos chegarem para o velório, se enrolava, nervosa, na cortina da sala. Como se soubesse a hora, discretamente, pouco antes de fecharem o féretro, entrou discretamente na capela.
Alguém, sabendo do amor da gatinha por Adriana Zarri, pegou-a no colo e a aproximou ao rosto da defunta. Fixou-a longamente e parecia que lacrimejava. Depois colocou-se debaixo do féretro e aí permaneceu em absoluta quietude.
Isso me reporta à nossa gata, a Branquinha. Parece uma menina frágil e elegante. Apegou-se de tal maneira à minha companheira Márcia que sempre a acompanha e dorme a seus pés, especialmente, quando passa por algum aborrecimento. Ela capta seu estado de alma e procura consolá-la roçando-se nela e miando suavemente.
Adriana Zarri deixou uma epígrafe que vale a pena ser reproduzida:
”Não me vistam de preto:
 é triste e fúnebre.
Nem me vistam de branco
porque é soberbo e retórico.
Vistam-me de flores amarelas e vermelhas
e com asas de passarinho.
 E Tu, Senhor, olhe minhas mãos.
Talvez tenham colocado um rosário,
talvez uma cruz.
 Mas se enganaram.
Nas mãos tenho folhas verdes e
sobre a cruz, a tua ressurreição.
E sobre minha tumba não coloquem mármore frio
com as costumeiras mentiras para consolar os vivos.
Deixem que a terra escreva, na primavera,
uma epígrafe de ervas.
Ali se dirá que vivi e que espero.
Então, Senhor,
tu escreverás o teu nome
 e o meu, unidos como
duas pétalas de papoulas”.
A mística dos olhos abertos, Adriana Zarri, nos mostrou como viver e morrer bela e docemente.
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*Teólogo. Escritor. Ecólogo.
Fonte: (Envolverde/O autor)
Imagens da Internet

Marina Bentivoglio -Neurocientista - Entrevista

''Não há profissões só para homens ou só para mulheres''

Marcio Fernandes/AE
Experiência.
A italiana Marina Bentivoglio,
uma das mais renomadas neurocientistas:
 'Mesmo na velhice noss cérebro continua disposto a aprender'



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Pesquisadora aponta diferenças entre os cérebros masculino e feminino, mas afirma que dinamismo do sistema nervoso garante aptidão dos dois para qualquer atividade intelectual

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Homens e mulheres utilizam estratégias distintas para resolver os mesmos problemas, um reflexo das particularidades dos cérebros masculino e feminino. Mas, para a médica italiana Marina Bentivoglio, as diferenças não privilegiam nenhum dos sexos e apontam para uma verdadeira complementaridade. Professora da Universidade de Verona, Marina é uma das mais importantes neurocientistas em atividade.
Na semana passada, ela veio ao Brasil para a 5.ª Escola Latino-Americana de Epilepsia, em Guarulhos. O evento, promovido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reuniu jovens médicos de diversos países latino-americanos e especialistas em neurociência e epilepsia de renome internacional. O encontro termina na terça-feira.

Quais as principais diferenças entre os cérebros feminino e masculino?
Há diferenças fisiológicas: a sensibilidade a determinados neurotransmissores, a distribuição de receptores, particularidades estruturais, o volume de sinapses... Mas o significado prático dessas diferenças ainda é motivo de controvérsia. Alguns fatos são evidentes. Na mulher, o cérebro prioriza funções relacionadas à maternidade e ao cuidado dos filhos, necessárias para a conservação da espécie. Mas, do ponto de vista da organização social, as diferenças nos cérebros de homens e mulheres são comparáveis às particularidades encontradas entre cérebros de pessoas do mesmo sexo. O cérebro feminino, por exemplo, é muito verbal, apto para a comunicação. Mas há homens que se comunicam bem e mulheres que não se comunicam tão bem. Natureza e sociedade exercem cada uma a sua influência.

Podemos diferenciar o que é construção social ou biologia na mente?
Não. É difícil diferenciar, pois o cérebro é dinâmico. A organização dos circuitos cerebrais influencia a experiência e a experiência modifica esses circuitos. Há um contínuo interagir entre natureza e educação, entre nossos circuitos cerebrais e a experiência concreta. Mesmo na velhice, nosso cérebro continua plástico, disposto a aprender, a se adaptar.
"O problema não é a avalanche de informações,
 mas a seleção do mais importante.
Realmente não sei se os jovens, hoje,
conseguem diferenciar o lixo
dos conhecimentos relevantes. (...)
O pensamento crítico é mais importante
do que nunca.
A monogamia, por exemplo, fundamenta-se na biologia ou na cultura?
Essa questão envolve também cultura, antropologia, sociologia... E eu não sou especialista nestas áreas. De qualquer forma, nós sabemos, por estudos com outros mamíferos, que o cérebro de um animal monógamo é diferente do cérebro de um promíscuo: há diferença na concentração e distribuição de determinadas substâncias. No caso dos humanos, convém lembrar dois dados. Nem todas as culturas humanas são monógamas: há culturas polígamas. Mas a monogamia tem sido privilegiada na nossa história evolutiva e na organização social. Mesmo assim, permanece aberta a questão: foi o cérebro que influenciou essa preferência ou foi essa preferência que influenciou a organização do cérebro? Sinceramente, não sei resposta. É provável que a regra da monogamia seja ditada pela experiência e a experiência molde o cérebro.

O cérebro feminino lida melhor com a linguagem e o masculino tem mais aptidão para processamento espacial. Mito ou realidade?
É o que aponta boa parte da literatura científica. Tais particularidades estão relacionadas ao processo de lateralização do cérebro (quando determinadas funções passam a ser controladas em larga medida por um dos hemisférios cerebrais - direito ou esquerdo). A lateralização aumenta a especialização para determinadas atividades. Acredita-se que o cérebro do homem é mais lateralizado. Mas, se é verdade que o cérebro da mulher é menos lateralizado, isso não significa que seja menos perfeito. Significa somente que é mais plástico. Provavelmente, na sua história evolutiva, as mulheres precisaram enfrentar e controlar um rol maior de situações no ambiente: coleta de alimentos, controle da prole... Um cérebro menos lateralizado - e, portanto, menos especializado - estaria pronto para um número maior de cenários.

E na resolução de problemas concretos? Há alguma diferença?
A opinião mais difundida é que em várias situações homens e mulheres utilizam estratégias diferentes para resolver problemas, embora essa não seja uma questão fechada. Poderíamos citar, como exemplo que confirma essa tese, as diferentes estratégias de aprendizado. Uma das coisas mais importantes para a nossa existência é o que conhecemos como mecanismo de recompensa: o prazer que o cérebro oferece quando realizamos atividades importantes para a manutenção da vida. E não tenho dúvidas de que esse mecanismo é diferente em homens e mulheres: ter um filho, por exemplo, oferece uma satisfação diferente para cada um. Mais uma vez, é difícil precisar qual é essa diferença - em parte cultural, em parte biológica. Mas a recompensa, por exemplo, que um menino e uma menina sentem por se comportarem bem é diferente. Do ponto de vista biológico, há diferença na distribuição dos receptores, na probabilidade de sinapses e em vários outros parâmetros do mecanismo de recompensa... Pequenas diferenças, mas importantes. E se a recompensa é diferente, as motivações e o desempenho também serão diferentes.

Há trabalhos em que as mulheres se sairiam necessariamente melhor do que os homens ou vice-versa?
Acredito que não. Naturalmente, nos trabalhos em que massa muscular é importante, os homens podem ter um desempenho melhor. Mas, do ponto de vista do cérebro, não creio que existam trabalhos mais adequados para homens ou mulheres. Convém lembrar que há uma grande variabilidade entre os indivíduos concretos. Nós somos 7 bilhões de pessoas no mundo. Não convém recorrer a categorias binárias. Você vai encontrar pessoas - homens e mulheres - com talento para algumas coisas e sem aptidão para outras. Mas não acredito que seja justificável uma separação dos trabalhos por gênero. Para qualquer um é uma questão de treino, de estímulo... Devemos procurar todos os dias novos estímulos: descobrir novos caminhos para voltar para casa, ler livros diferentes dos que estamos acostumados. Vale o princípio: use (o cérebro) para não perdê-lo. Sem dúvida, alguns contextos sociais podem fazer com que a mulher não se sinta estimulada a encarar desafios, diminuindo o seu desempenho intelectual. Mas isso também pode acontecer com homens. Não acredito que seja bom proteger esse ou aquele gênero. Sou mulher, mas gosto de trabalhar com homens. Por quê? Aprecio a diferença. É mais estimulante. Tenho homens e mulheres no meu laboratório. Acharia ruim se só houvesse mulheres. Quero diferentes abordagens para resolver os problemas. A natureza criou dois sexos e tenho certeza de que há uma ótima razão para isso.
"A expressão dos genes muda
significativamente - cerca de 10% - durante o sono.
 E os genes mais utilizados no sono são justamente
os relacionados à memória,
ao aprendizado."
Como o cérebro se adapta às mudanças no ambiente?
Mudar estruturas no cérebro leva milhões de anos. Por isso, as mudanças mais comuns são marginais: regulação de sinapses, interações entre neurônios e células não neuronais, etc... Ou seja, o hardware já está lá. Mas há algo como um software de modulação que atua de forma quase imediata para realizar a adaptação. Às vezes, em poucos minutos. Sua atuação depende do ambiente físico e cultural onde a pessoa está inserida. Por exemplo, uma mulher na savana e outra no norte da Europa têm diferentes prioridades e o cérebro se adapta a essas distintas prioridades. O hardware para os dois sexos é muito parecido. Mas alguns ajustes finos do software dependem das prioridades de cada indivíduo e tais prioridades dependem do gênero e do contexto social. Convém lembrar que os neurônios sempre atuam em conjunto. Nunca isolados. Se o estado de um neurônio muda, centenas ou milhares também mudam ao seu redor. Realmente funciona como um arranjo social. Essa modulação no estado dos neurônios ocorre a todo momento. Isso é, afinal, a essência da vida. O cérebro não é estático. Como a vida, ele se reorganiza sempre.

No mundo contemporâneo, o cérebro é submetido diariamente a uma avalanche de informações. O que você acha desse cenário?
Eu adoro. O problema não é a avalanche de informações, mas a seleção do mais importante. Realmente não sei se os jovens, hoje, conseguem diferenciar o lixo dos conhecimentos relevantes. O cérebro continua capaz de processar um volume imenso de informações. Mas precisamos decidir quais informações convêm processar. O pensamento crítico é mais importante do que nunca. Todo conteúdo que aprendi na escola está na internet misturado a muitas outras coisas. Você digita uma palavra no Google e aparecem milhões de bytes de informação. Como filtrá-la? Sou uma entusiasta do progresso. Mas ele traz consigo novos desafios.

Você também estuda o sono. Como a ciência vê o sono hoje?
No início da neurociência, os pesquisadores acreditavam que nosso cérebro permaneceria passivo durante o sono. Não é verdade. Ele trabalha muito. Cessa a comunicação com o ambiente externo, mas o ambiente interno continua ativo. É o momento em que se filtra e armazena o que aprendemos durante o dia. A expressão dos genes muda significativamente - cerca de 10% - durante o sono. E os genes mais utilizados no sono são justamente os relacionados à memória, ao aprendizado.

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Reportagem por Alexandre Gonçalves - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão online, 28/02/2011
Imagem da Internet

Amós Oz - escritor israelense - Entrevista

‘A RELIGIÃO PODE SER UMA DAS FORMAS CRUÉIS DE OPRESSÃO’

Foto: Julia Rettmann
O escritor israelense Amós Oz fala sobre a
situação atual de Israel e a crise no mundo árabe

Quando Amós Oz recebeu a coluna, em sua casa de veraneio, no subúrbio de Tel Aviv, os conflitos no mundo árabe ainda estavam apenas esquentando. Entretanto, o escritor israelense – conhecido mundialmente por suas posições pacifistas – manteve, desde o começo, os pés no chão: “Fico entusiasmado com esses jovens, mas não com os que querem substituir uma forma de opressão por outra. A religião pode ser uma das formas mais cruéis de opressão, como ocorre no fundamentalismo do Irã”.
A preocupação não é infundada. Israel, país para onde os pais do escritor emigraram na década de 30, antes mesmo de o estado judeu ser criado, está no meio do caldeirão de pólvora que é o Oriente Médio. E apesar de se dizer apreensivo, o escritor guarda certo otimismo: “O Egito substituiu um ditador por uma ditadura militar. Mas há esperança de que, eventualmente, exista algum tipo de democracia”, afirma.
O escritor é um sabra – nome de uma planta, áspera por fora e doce por dentro, como são chamados os judeus nascidos em Israel – e vive na cidade de Arad, às bordas do deserto do Negev. Lá, foi dizendo, de saída, suas lembranças do Brasil: “Nunca me esquecerei de Paraty” – onde ele foi destaque na Flip de 2007 – e mencionou o encontro que teve com Lula, em 2010: “É uma figura adorável, fez muito pelo Brasil”.
Um dos autores mais importantes da atualidade, por sua obra literária e militância a favor da paz, voz rara no conflito entre Israel e a Palestina, Oz não se ilude com utopias: “Quando os povos estiverem genuinamente prontos para um compromisso, que será doloroso para ambos, a paz virá”. Quando? “É difícil ser um profeta na terra das profecias. É muita competição”, disse, espirituoso.

Como o senhor vê os conflitos no mundo árabe?
É difícil dizer. A era dos ditadores duros, a exemplo do que aconteceu com Mubarak, está chegando ao fim. E isso é muito bom. Quanto ao que virá, alguns querem a democracia, outros um governo religioso.

Para onde pode pender o Egito pós-Mubarak?
Difícil prever. O Egito substituiu uma ditador por uma ditadura militar. Mas há esperança de que se constitua uma democracia. Isso porque existem, no Egito, uma classe média e uma forte sociedade civil. Ambas são precondições para a existência da democracia.

O acordo de paz entre Egito e Israel está ameaçado?
Sempre. Os fanáticos não querem acordo com Israel. Simpatizo com os jovens que buscam a liberdade, mas não com os que querem substituir um tipo de opressão por outra. A religião pode ser uma das formas mais cruéis de opressão, como ocorre no fundamentalismo do Irã.

Um articulista do jornal Haaretz comparou a Irmandade Muçulmana aos partidos religiosos de Israel. O senhor concorda?
Nem todos os religiosos são fanáticos. Muçulmanos ou judeus. Entretanto, acredito que fanáticos são sempre similares.

As mudanças no mundo árabe tornam mais urgente um acordo de paz com os palestinos?
Acredito que um acordo de paz entre Israel e Palestina é urgente. E ninguém irá realizá-lo, senão – e somente – israelenses e palestinos. Temos que conversar e acertar nossas diferenças. O buraco entre as duas posições não é absurdo. Um compromisso pode ser acertado.

O senhor já afirmou que palestinos e judeus são irmãos e filhos de um mesmo pai violento, a Europa. A União Europeia teria um papel a cumprir nas negociações?
Árabes e judeus foram, no passado, vítimas da Europa. Os árabes por meio de imperialismo, colonialismo e humilhação. Os judeus pelas perseguições, discriminações e, por fim, o massacre. Duas vítimas do mesmo pai opressor não necessariamente se amam. Muitas vezes enxergam, um no outro, a imagem do pai cruel. Os árabes olham para nós e dizem que somos uma extensão da Europa: colonizadores, tiranos, exploradores. Os judeus olham para os árabes e dizem que eles é quem são como os europeus: problemáticos, nazistas e antissemitas. Isso deixa para a Europa uma grande e pesada responsabilidade de ajudar os dois lados.

Acredita que existe uma condição que torna os dois povos iguais?
Estão todos cansados da guerra. Não falo dos fanáticos, porque esses não cansam nunca. Mas o povo nas ruas de Israel e da Palestina está exausto. E acho isso bom, porque essa fadiga está preparando o solo para um acordo concreto, mas doloroso, para os dois. Acontecerá quando o território for dividido entre israelenses e palestinos. Ambos se sentirão amputados. Mas não há outra alternativa.

Parte do discurso do governo israelense sustenta que o nó do conflito está no Hamas.
O Hamas é uma organização fanática. E é o fanatismo dos dois lados que impede de os acordos caminharem. O Hamas mantém a ideia de que Israel não deve existir. É impossível, até para um moderado como eu, me alinhar com isso. Não posso propor que Israel só exista às segundas, quartas e sextas. O Hamas precisa reconhecer Israel para que se possa negociar.

Em Israel, os judeus deixaram de ser histórica minoria para ser maioria. A mudança de condição não deveria trazer reflexões sobre as minorias do país? Não deveria levar a comunidade israelense a tratar os árabes – atual minoria – com humanismo e igualdade?
Essa é, na minha opinião, a grande questão dos judeus: como eles se comportarão como maioria, pela primeira vez em 2 mil anos, e que tratamento darão às suas minorias daqui para frente.

Uma das críticas frequentes a Israel é que constitui uma sociedade extremamente bélica. Como avalia o papel do exército israelense?
Temos um exército muito populista. Por ser um serviço obrigatório, a nação é o exército e vice-versa. Quase todos servem. É uma instituição igualitária e informal. Se avaliarmos sua ação nos territórios ocupados, como a Cisjordânia, tenho muitas críticas. Contudo, há um senso comum de dever. O interessante do nosso exército é que não se trata de uma instituição profissional. É extremamente plural. Um homem rico e poderoso na vida civil pode ser recrutado para fazer seus 30 dias de reservista e ficar sob o comando de seu próprio chofer, se este tiver um cargo mais alto.

Assim como o exército, Israel é formado por judeus provenientes de 136 países, que trazem consigo marcas de seus países de origem. Isso faz da convivência conflituosa?
É um país complicado. Todos trazem uma relação de amor e ódio com o país de onde vieram. Somos uma sociedade cosmopolita e relativista. Em termos de valores, é possível encontrar um espectro de tudo que há no mundo. Portanto, argumenta-se, discute-se e briga-se o tempo todo. Se você prometer receber o que vou te dizer com um sorriso, eu afirmo que Israel não é um país, nem uma nação. É uma coleção de grandes discussões e argumentos.

Sua literatura aborda muitos conflitos de famílias. Há quem relacione isso com a história da criação do Estado de Israel. O senhor concorda com a tese?
Se tivesse que definir meu trabalho em uma só palavra, eu diria Famílias. Em duas: famílias infelizes. Em três, seria preciso ler todos os meus livros. (risos) Escrevo sobre a família porque acho a instituição mais trágica e cômica do universo. São relações misteriosas, excitantes e paradoxais.

E o que mais o fascina nesse universo familiar?
Essa instituição: mãe, pai e filhos, mesmo com todas suas falhas, contradições e tragédias, perdura por toda história. Já ouvimos tantas profecias sobre a morte da família. E ainda assim, resiste. No Irã com os aiatolás, no Greenwich Village de NY, no Brasil, em Israel, em todo lugar.

No livro De Amor e Trevas, o senhor diz que alguns israelenses quiseram acabar com o iídiche. Não acha que isso seja uma perda para a cultura judaica?
Sim. Lamento muito o declínio do iídiche. Mas não houve alternativa. Havia aqui judeus do Norte da África e do Oriente Médio que não falavam iídiche. Então o hebraico foi recuperado. Renasceu como língua falada. Não por ideologia, mas por necessidade.

Como?
O hebraico ficou morto durante 17 séculos. Era usado em rezas, com propósito ritualístico, e na sinagoga. Nunca na vida cotidiana. Seu renascimento é o resultado do encontro em Jerusalém, há não mais do que 120 anos, de judeus asquenazes da Europa – que falavam iídiche, polonês, russo – e dos judeus sefarditas do Oriente, que falavam árabe, ladino, persa. A única forma de se alugar um quarto ou se comprar pão era usar o hebraico. Posso te dizer o momento exato em que o hebraico se tornou uma língua viva. Foi quando, pela primeira vez, um garoto disse para uma menina “eu te amo” em hebraico. E hoje, todos os dias, eles fazem cirurgias, voam de jatos, constroem satélites… tudo em hebraico.

E como é escrever em uma língua ainda em plena construção?
É um grande desafio. Um poeta ou um escritor em hebraico tem o poder de criar. Podemos inventar novas formas, palavras. E se tiver sorte, pode acontecer o que aconteceu comigo. Uma das palavras que eu inventei voltou para mim por um taxista que não tinha ideia que era eu, o pai orgulhoso e criador daquela palavra.

Qual era a palavra?
Em Israel, há 40 anos, uma peça de Eugène Ionesco sobre oportunismo, Rinoceronte, fez muito sucesso. No palco, a cada dez minutos, um ator se transformava em um rinoceronte. A peça, logicamente, foi apresentada em hebraico e foi muito popular. Já existia a palavra rinoceronte e eu inventei o verbo “rinocerontizar”. Hoje a palavra está nos jornais, na TV, em todos os cantos e esse taxista, falando sobre algum político me soltou essa.

O senhor já afirmou que os israelenses são todos personagens de Fellini. Por quê?
A sociedade israelense é muito passional. Argumenta, debate e discute o tempo todo. As pessoas dizem o que pensam sem nenhum senso de pudor. Todo mundo grita e ninguém se ouve. Isso é um filme de Fellini. Carregamos também o outro lado da moeda: somos o país do sentimento de culpa. A culpa foi inventada originalmente pelos judeus, em Jerusalém, há 2 mil anos. Depois, foi propagandeado e muito bem exportado pelos cristãos para o resto do mundo. Entretanto, a culpa é uma invenção judaica. E como judeu, eu devo dizer que me sinto muito culpado pela culpa ter sido inventada pelos judeus. (risos)
"Eu, que vi o nascimento de Israel,
quando converso com americanos,
digo que ser um israelense da minha idade
 é a mesma coisa que ser
 um americano de 358 anos."
Há uma frase brincalhona de Woody Allen que diz ser mais fácil encontrar Deus do que um encanador num fim de semana. O que acha disso?
Nesse país, Deus está em toda esquina. Existe uma síndrome psiquiátrica chamada síndrome de Jerusalém. Alguns estrangeiros depois de alguns dias na cidade, de repente tiram suas roupas, sobem nas pedras e começam a profetizar. Esse país é lotado de simbolismos, sinais sagrados, religiões. Isso é, de uma certa maneira, muito perigoso para a sanidade das pessoas. É um passo do fanatismo. Jerusalém tem sido um ímã para os fanáticos de todas as religiões.

Érico Verissimo disse, em visita a Israel, que toda religião é uma forma de poesia e vice-versa. Concorda com ele?
Religiões podem ser muito poéticas. Jesus foi, na minha opinião, um grande poeta. Não há contradição entre poesia e religião. O que, às vezes, é uma contradição entre religião e senso comum.

Está crescendo o número de brasileiros jovens que fazem aliá – emigram para Israel. O que lhe parece esse retorno?
Essa sociedade é uma das mais interessantes do mundo. Cada individuo aqui pode fazer a diferença. No Brasil, vocês são muitos. Aqui cada pessoa é uma parte importante do país. Independente da linha política ou das ideias. É um país novo, ainda está sendo modelado. E é um grande desafio participar da construção de um novo país, não acha? Eu, que vi o nascimento de Israel, quando converso com americanos, digo que ser um israelense da minha idade é a mesma coisa que ser um americano de 358 anos.

O senhor já afirmou que Israel é um sonho e que todo sonho carrega uma carga de frustração. Isso se aplica ao governo Obama nos EUA?
Quando Obama foi eleito evocou expectativas messiânicas. Esperavam que ele fosse andar sobre as águas. Há frustrações em virtude das expectativas irreais. E Israel é a terra que compila a história das grandes expectativas.

O que acha que as próximas gerações de Israel poderão fazer pelo país?
Há um provérbio árabe que diz: “Não se bate palma com uma única mão”. Quando ambos povos estiverem genuinamente prontos para um compromisso e as lideranças tiverem a coragem de fazer os esforços necessários, a paz virá. Mas não sei dizer quando. É difícil ser um profeta na terra das profecias. É muita competição. (risos)

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Reportagem por /MARILIA NEUSTEIN
Fonte: Folha online, 28/02/2011

Um novo ensino médio para romper as desigualdades

MOZART NEVES RAMOS*



A desigualdade e sua face educacional são fatos, infelizmente, tolerados no Brasil. No ensino médio, ela toma proporções acentuadas, como pode ser observado pela análise de resultados de avaliações de desempenho dos estudantes.
De acordo com o relatório "De Olho nas Metas", do movimento Todos Pela Educação, apenas metade dos jovens de 19 anos têm o ensino médio concluído.
Deles, somente 11% conseguiram aprender o conteúdo mínimo em matemática, e 29%, em português.
Por ser a etapa final da educação básica, o ensino médio carrega as carências e as ineficiências das etapas anteriores.
Falhas na alfabetização, no acesso à escola, no aprendizado durante o ensino fundamental e na conclusão das séries têm impactos preocupantes sobre as estatísticas. Sem enfrentar essas questões não é possível esperar que os brasileiros tenham acesso a educação de qualidade.
"O ensino médio demanda nova organização
das disciplinas e dos conteúdos e
requer que eles estejam articulados
com o trabalho, a ciência,
a tecnologia e a cultura."
Além disso, o ensino médio sofre com um excesso de disciplinas e há pouca clareza sobre o que o país espera dos alunos nesse nível. Existem algumas iniciativas para dar outro rumo à etapa final da educação básica, como o Ensino Médio Inovador.
Proposto pelo MEC (Ministério da Educação), em consonância com o CNE (Conselho Nacional de Educação), ele pretende proporcionar ao estudante uma melhor articulação entre os diferentes saberes, alinhar a teoria à prática e promover atividades que estimulem o espírito empreendedor dos jovens.
É uma tentativa de instigar os alunos a desenvolver gosto pelos estudos e, ao mesmo tempo, de serem respeitados em sua diversidade cultural.
Nesse cenário, a escola deve prepará-los para a vida e para que possam romper com as desigualdades sociais, por meio de oportunidades educacionais, culturais e profissionais.
O ensino médio demanda nova organização das disciplinas e dos conteúdos e requer que eles estejam articulados com o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura. Só assim a educação poderá cumprir o papel de ser uma política compensatória para as disparidades do Brasil.
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* MOZART NEVES RAMOS é conselheiro do Todos Pela Educação e membro do Conselho Nacional de Educação.
Fonte: Folha online, 28/02/2011 

A ganância da honra

LUIZ FELIPE PONDÉ*
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Aristóteles já dizia que a honra é virtude pública
sedutora impossível para
 quem a busca por si mesmo

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QUE DEUS me proteja de cair na tentação da ganância da honra. Aristóteles já dizia que a honra é uma virtude pública sedutora, mas impossível para quem a busca por si mesmo.
Sobre isso, revi o grande filme de Stanley Kubrick "Glória Feita de Sangue" (1957). Outro filme que recomendo é "A Cruz de Ferro" (1977), de Sam Peckinpah.
Ambos tratam da relação entre elite (oficiais) e plebe (soldado) -Kubrick na Primeira Guerra Mundial, Exército francês nas trincheiras, Peckinpah na Segunda Guerra, força armada alemã na frente russa.
No primeiro filme, o herói, o coronel Dax (Kirk Douglas), membro da elite francesa, se vê diante de uma trama na qual três de seus soldados são condenados injustamente à corte marcial e ao fuzilamento.
São acusados de covardia quando a missão para a qual tinham sido mandados era impossível. Não foram covardes, ficaram detidos pelas condições insuperáveis da batalha.
Mas a hierarquia queria mesmo era o sangue "do gado" para animar a moral das tropas, mostrando o valor da disciplina. O desprezo do coronel Dax pela elite do Exército é evidente, apesar de ser parte dela. O general em comando apenas queria uma promoção.
Segundo o general, o "povo francês" clamava pela sua dignidade, que deveria ser honrada com o sangue dos "covardes". "Povo francês" aqui nada mais é do que a retórica da opinião pública como instrumento de pressão. Confiar no "povo francês", como em sua elite, soará ridículo neste cenário.
No segundo filme, o herói, cabo Steiner (James Coburn), vindo da plebe, ganha várias cruzes de ferro por coragem sem dar valor a nenhuma delas ("só um pedaço de metal"), enquanto um capitão de família nobre prussiana, Stransky (Maximilian Schell), um covarde oportunista, cria situações para ganhar a cruz de ferro sem correr riscos.
O desprezo do cabo Steiner pela elite é também evidente, mas não é membro dela.
Em ambos os filmes, lembramos da tese do escritor russo Tolstói (em "Guerra e Paz") sobre guerras e batalhas (que fala da vida como um todo): um caos sem ordem, sem sentido, violência gratuita, a partir do qual, após a batalha, "reconstruímos o sentido" a fim de satisfazer qualquer ponto de vista, e, assim, contarmos "a" história.
Nutro profunda simpatia por esta teoria da história de Tolstói.
Os filmes seguem cursos diferentes. De certa forma, o filme de Kubrick vai mais longe do que o de Peckinpah na crítica ao modo como o mundo se organiza (sendo a guerra e o Exército em ambos apenas o cenário ideal para demonstrar suas teses).
Enquanto em "Cruz de Ferro" a coragem tem seu lugar (a medalha, apesar de o corajoso não dar valor a ela), em "Glória Feita de Sangue" a coragem é "invisível" para a hierarquia, que trata o herói Dax como um bobo idealista.
Onde está a coragem neste caso? Está na recusa do herói Dax da promoção que receberia como forma de acomodação ao status quo.
No filme de Peckinpah, ao final, Steiner arrasta o oportunista Stransky para o campo de batalha (já arrasado pelos russos), dizendo: "Vou mostrar a você onde crescem as cruzes de ferro" (isto é, diante do inimigo).
Já no filme de Kubrick não há espaço para essa ode última à coragem nas guerras, mas sim algo mais sutil: Dax, observando seus soldados à distância, quando urram num bar diante de uma "cantora" alemã (prisioneira de guerra), percebe como, de uma horda de bárbaros, eles passam à condição de homens tocados pela fragilidade da moça e pela beleza da música que ela canta, em meio às suas lágrimas de medo. Um dos maiores momentos do cinema.
Em ambos, vemos a ruína da ordem do mundo e seus mecanismos de produção da honra (representados pela hierarquia do Exército e seus sistemas oficiais de reconhecimento da coragem e da covardia).
Neste campo devastado, sobra a coragem de um homem solitário (Steiner) e a capacidade de um idealista aristocrático (Dax) de perceber um instante efêmero no qual feras se tornam homens. Ambos impermeáveis à ganância das honras.
Pouco importa a classe social -o que conta, ao final, é a virtude de cada um como modo de ação num mundo sem honra.
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* Filósofo. Prof. Universitário.
Fonte: Folha online, 28/02/2011
Imagens da Internet

Lágrimas e testosterona

MOACYR SCLIAR*
Picasso - Mulher chorando com lenço (1937)
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Cada vez que ele queria repreendê-la,
ela começava a chorar.
E aí, pronto: ele simplesmente derretia

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Atenção, mulheres, está demonstrado pela ciência: chorar é golpe baixo. As lágrimas femininas liberam substâncias, descobriram os cientistas, que abaixam na hora o nível de testosterona do homem que estiver por perto, deixando o sujeito menos agressivo.
Os cientistas queriam ter certeza de que isso acontece em função de alguma molécula liberada -e não, digamos, pela cara de sofrimento feminina, com sua reputação de derrubar até o mais insensível dos durões. Por isso, evitaram que os homens pudessem ver as mulheres chorando. Os cientistas molharam pequenos pedaços de papel em lágrimas de mulher e deixaram que fossem cheirados pelos homens.
O contato com as lágrimas fez a concentração da testosterona deles cair quase 15%, em certo sentido deixando-os menos machões. - Ciência, 7 de janeiro de 2011

ELE VIVIA FURIOSO com a mulher. Por, achava ele, boas razões. Ela era relaxada com a casa, deixava faltar comida na geladeira, não cuidava bem das crianças, gastava demais. Cada vez, porém, que queria repreendê-la por uma dessas coisas, ela começava a chorar. E aí, pronto: ele simplesmente perdia o ânimo, derretia. Acabava desistindo da briga, o que o deixava furioso: afinal, se ele não chamasse a mulher à razão, quem o faria? Mais que isso, não entendia o seu próprio comportamento. Considerava-se um cara durão, detestava gente chorona.
Por que o pranto da mulher o comovia tanto? E comovia-o à distância, inclusive. Muitas vezes ela se trancava no quarto para chorar sozinha, longe dele. E mesmo assim ele se comovia de uma maneira absurda.
Foi então que leu sobre a relação entre lágrimas de mulher e a testosterona, o hormônio masculino. Foi uma verdadeira revelação. Finalmente tinha uma explicação lógica, científica, sobre o que estava acontecendo. As lágrimas diminuíam a testosterona em seu organismo, privando-o da natural agressividade do sexo masculino, transformando-o num cordeirinho.
Uma ideia lhe ocorreu: e se tomasse injeções de testosterona? Era o que o seu irmão mais velho fazia, mas por carência do hormônio.
Com ele conseguiu duas ampolas do hormônio. Seu plano era muito simples: fazer a injeção, esperar alguns dias para que o nível da substância aumentasse em seu organismo e então chamar a esposa à razão.
Decidido, foi à farmácia e pediu ao encarregado que lhe aplicasse a testosterona, mentindo que depois traria a receita. Enquanto isso era feito, ele, de repente, caiu no choro, um choro tão convulso que o homem se assustou: alguma coisa estava acontecendo?
É que eu tenho medo de injeção, ele disse, entre soluços. Pediu desculpas e saiu precipitadamente. Estava voltando para casa. Para a esposa e suas lágrimas.
* MOACYR SCLIAR (1937 - 2011)

Moacyr Scliar, que morreu ontem, à 1h, aos 73 anos, escrevia nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
É a última coluna do médico e escritor publicada neste espaço.
Este texto, inédito, foi enviado pelo escritor ao jornal no dia 11 de janeiro, antes de sofrer um AVC (acidente vascular cerebral), no dia 17 do mês passado.
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Fonte: Folha online, 28/02/2011

De Humboldt ao mundo da inovação

RONALDO MOTA*

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Novos ingredientes alteram os temas
 selecionados para a geração de conhecimentos,
a forma de produzi-los e
 também as metodologias de ensino

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A instituição universidade tem sua origem na Idade Média, e sua versão moderna tem como referência a Universidade de Berlim, criada em 1810 por Humboldt. A novidade da universidade humboldtiana é a incorporação da atividade de pesquisa à prática pedagógica.
Uma alteração, incluindo como missão da universidade o desenvolvimento econômico regional, ocorre com a criação do MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos Estados Unidos, em 1862. Posteriormente, essa nova dimensão influenciou outras instituições, inclusive europeias e asiáticas. A universidade brasileira, por sua vez, passou quase imune por essa última influência, tendo permanecido sempre de alma pretensamente humboldtiana.
Se os 200 anos que nos separam da criação da Universidade de Berlim estão plenos de mudanças, as próximas décadas reservam alterações ainda mais drásticas e rápidas.
Entre as transformações em curso, o papel da inovação chama a atenção pela centralidade que ocupa. Inovação compreende um produto ou processo novo, bem como a introdução de uma qualidade ou funcionalidade inédita. Assim, inovação implica tecnologia e máquinas, mas vai além, contemplando também melhorias na gestão e novos modelos de negócios.
"As universidades do presente e
do futuro tendem a se transformar expressivamente,
agregando às suas missões tradicionais de ensino
e pesquisa a missão de servirem também
 como centros indutores
de inovação."
Como ficam as universidades brasileiras nesse novo contexto de um mundo centrado em inovação?
Nas últimas décadas, em sua maioria, elas têm se caracterizado pelas funções educativas clássicas e secundariamente pelas pesquisas convencionais. As universidades do presente e do futuro tendem a se transformar expressivamente, agregando às suas missões tradicionais de ensino e pesquisa a missão de servirem também como centros indutores de inovação.
Esses novos ingredientes alteram os temas selecionados para a geração de conhecimentos, a forma de produzi-los e afetam também as metodologias de ensino.
Até recentemente, a figura típica do docente investigador tem sido a de um competente profissional que, em sua linha específica de pesquisa, tem por meta explorar os limites do estado da arte, tendo como referência única de sucesso as publicações em conceituadas revistas internacionais. Muitas vezes trabalha isoladamente, às vezes com um estudante de pós-graduação e muito raramente em equipe.
A partir desta década, pela natureza complexa dos problemas a abordar, são inviáveis, em geral, as abordagens do ponto de vista de uma linha exclusiva de pesquisa, demandando, na maioria dos casos, a formação de equipes multidisciplinares e o trabalho em equipe, com redes de pesquisadores.
Na universidade pós-humboldtiana, a demanda social passa a ser, gradativamente, o elemento central que define prioritariamente as áreas de pesquisa em curso e modula tanto a forma de pesquisar como a de transmitir conhecimentos.
Ou seja, temos um longo e estimulante caminho pela frente.
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* RONALDO MOTA, professor titular de física da Universidade Federal de Santa Maria, é secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Fonte: Folha online, 28/02/2011

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Infinito, elétron e outras invenções

MARCELO GLEISER


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Baseamos os nossos argumentos no
que podemos medir.
E o que vem a ser a coisa real?
Talvez nunca saibamos

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OUTRO DIA, meu filho de quatro anos perguntou: "Pai, você pode contar até infinito?" "Não posso, filho, não ia acabar nunca". "Mas quanto é infinito menos três?" "É infinito também". "Mas como se escreve o número infinito?" "É um oito deitado." "Mas isso é um número, feito um ou dois?"
O infinito é mais uma ideia do que um número. É um conceito que criamos para representar sequências infindáveis de números, ou um ponto no espaço ou no tempo infinitamente distante da nossa posição ou do nosso momento presente.
O infinito não é algo a que chegamos; é algo sobre o qual pensamos.
Uma representação de nossas limitações, já que somos finitos no espaço e no tempo. Por outro lado, é também exemplo da nossa criatividade.
Mesmo que arredio, o infinito está por toda parte. Em cosmologia, dados atuais indicam que o Universo é infinito. Se andarmos numa direção e mantivermos a rota, jamais retornaremos ao ponto de partida. Se o universo fosse finito, feito a superfície de uma bola (em 3D), poderíamos circunavegá-lo, como o fez Fernão de Magalhães com a Terra (ou os que restaram de sua tripulação.)
Podemos ter certeza de que o universo é infinito? Não. Sabemos apenas que a porção do espaço que podemos medir, o que chamamos de horizonte -a distância percorrida pela luz em 13,7 bilhões de anos- é plana (ou quase). E uma geometria plana, como a superfície de uma mesa, estende-se ao infinito. Mas nossa certeza termina aí.
É possível que nossa porção plana do espaço faça parte de um universo curvo gigantesco. Se não temos acesso ao que há fora do horizonte, não temos certeza do que existe lá. Podemos apenas inferir.
E os pontos e linhas da geometria? Conceitos estranhos, também.
Um ponto marca uma posição no espaço, mas não ocupa espaço: seu volume é nulo. Uma linha, ligando dois pontos no espaço, não tem espessura. E é feita de pontos adjacentes. Coisas sem volume, lado a lado, fazem uma linha sem espessura!
"Um físico de partículas diria que
um elétron não tem estrutura interna,
que não há nada "lá dentro".
Mas não podemos ter certeza."
Portanto, representamos coisas no espaço usando coisas que não existem no espaço, mais ideias do que coisas. Representações matemáticas, como quando desenhamos pontos num papel e os conectamos com linhas, mesmo que ilusórias, funcionam extraordinariamente bem. O real baseia-se no intangível.
Quando procuramos pelos menores pedaços de matéria, encontramos ideias semelhantes. Átomos são formados de elétrons, prótons e nêutrons. Prótons e nêutrons são formados de quarks. Portanto, dizemos assim que a matéria é feita de quarks e elétrons.
Será que quarks e elétrons são feitos de coisas ainda menores? Um elétron não é simplesmente uma bola de energia com carga negativa.
Um físico de partículas diria que um elétron não tem estrutura interna, que não há nada "lá dentro". Mas não podemos ter certeza.
Baseamos nossos argumentos no que podemos medir. Podemos tratar o elétron como uma partícula "pontual", com carga elétrica negativa, mas devemos lembrar que esta representação é uma aproximação da coisa real. E o que é essa coisa real? Talvez nunca saibamos. Como pontos e linhas, os elétrons e quarks são construções que usamos para representar como vemos o mundo.
Eles são como os vemos.
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* MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Fonte: Folha online, 27/02/2011
Imagens da Internet

KEN DOCTOR, CONSULTOR DE MÍDIA - Entrevista

“Até 2015, 75% dos livros serão digitais”
Especialista americano traça panorama otimista
para futuro da leitura,
de jornais e de livros

O californiano Ken Doctor trocou de lado. Funcionário de uma grande empresa jornalística dos Estados Unidos durante 21 anos – a Knight Ridder, com 32 diários, foi vendida em 2006 –, hoje ensina os antigos empregadores a sobreviver em um território ainda inóspito para a maioria: o da comunicação digital. É um dos consultores de mídia mais incensados da atualidade. Solicitado mundo afora para conferências, Doctor dissemina as 12 leis de seu livro, Newsonomics (nome também de seu site, o newsonomics.com). A principal delas, segundo ele mesmo aponta: os leitores estão se tornando seus próprios editores, e editores dos outros também. O súbito protagonismo de cada consumidor de notícias no oceano de informação da internet é uma novidade com a qual o mercado ainda precisa aprender a lidar.
– Decidimos o que ler ao encaminhar e-mails e comentar palpites de nossos amigos no Twitter ou no Facebook. É claro que a noção de boa edição ainda é importante, mas a era do editor como guardião, ou a do jornalista como contador de histórias exclusivo, ou do veículo como formador da opinião pública está acabando. Os leitores têm conquistado mais controle e mais acesso, e os profissionais precisam encontrar caminhos úteis para compartilhar com eles essa habilidade recém-adquirida – ensina Doctor em entrevista por e-mail.
O morador da costeira Santa Cruz, uma hora e meia ao sul de San Francisco, ilustra com um episódio corriqueiro a complexidade do desafio que se impõe a quem lapida noticiários. Em um passeio aéreo pelas proximidades da cadeia de montanhas do Himalaia – onde se ergue o pico mais alto do mundo, o Monte Everest –, observando o cenário estonteante, comentou com o piloto:
– Uau, é espantoso! Enfadado com a repetitiva rotina, o comandante devolveu:
– Vejo isso todos os dias.
O diálogo ilustrou a Doctor a importância de um ensinamento: é preciso surpreender a todo instante um público que, tem-se a impressão, já viu de tudo. É cada vez mais difícil emocionar, estarrecer, comover, mobilizar, escandalizar.
– Esse é o desafio com o qual todos os negócios de internet deparam hoje em dia. A expectativa dos consumidores digitais é, aparentemente, sem fim. Eles são impacientes. Satisfazê-los é quase impossível, mas tenho certeza de que aqueles que chegarem mais perto serão os vencedores.
O especialista dá nome a essa transformação atual: inicia-se a Era do Conteúdo Darwiniano.
– Éramos reféns da mídia local. Tínhamos de absorver o que quer que fosse que emissoras, jornais e revistas de nossa área nos dessem. Agora, o mundo se abriu: a mídia chinesa, a do Oriente Médio, a BBC e o New York Times cruzam todas as fronteiras graças à distribuição via internet. O conteúdo compete com o conteúdo, e nós, os leitores, decidimos quem sobrevive e prospera.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Zero Hora – Devem questioná-lo sobre isso a todo momento: o senhor vê um futuro animador para os jornais? Definiria-se como um otimista?
Ken Doctor – Sou um otimista nato, ainda que a mudança nos signos do zodíaco tenha deixado meus amigos e minha família apreensivos. Estamos no começo de uma maravilhosa era da distribuição da notícia sem fronteiras e da informação que pode mudar o futuro dos países, como está ocorrendo no norte da África, em poucas semanas. O apetite por notícias é insaciável, mas as barreiras para produzi-las caíram à medida em que a internet tornou jornais e revistas onipresentes. A imprensa, que já foi grandemente rentável, está sobrecarregada com todos os antigos custos da manufatura industrial, enquanto sites como o AOL’s Patch (rede de páginas hiperlocais da norte-americana AOL) produzem notícias locais com 4% do valor dos veículos impressos. Essa ampla diferença significa que estamos em uma época de caos, e apenas as empresas jornalísticas que se adaptarem rapidamente vão sobreviver e prosperar.

ZH – Quais são as suas primeiras impressões sobre o The Daily, jornal diário exclusivo para iPad lançado pelo magnata das comunicações Rupert Murdoch no início deste mês?
Doctor – É o USA Today de 2011. Não se trata de fazer um tipo de noticiário diferente, mas sim de apresentá-lo de outra maneira, como fez o USA Today em 1980. O The Daily começa a mostrar ao mundo o que editores podem fazer – diariamente, e não só uma vez por mês em uma revista – com vídeos, interatividade e interconectividade social. É um megajornal para o tablet, muito mais pelo visual impressionante do que por estar fazendo jornalismo de um jeito diferente. É uma inovação da qual lembraremos por muito tempo, mesmo que seja um fracasso financeiro.

ZH – O The Daily custa US$ 0,99 por semana. Como os jornais em papel vão sobreviver, já que logo outras iniciativas semelhantes devem surgir?
Doctor – O The Daily é notável, resultado de uma grande pesquisa da News Corp., a maior empresa de informação do planeta. A maioria dos jornais ainda são marcas fortes como veículos impressos, pelas quais os leitores pagam. Para todas essas empresas, a chave é vender assinaturas de acesso irrestrito, transformando os clientes do impresso em clientes digitais. “Cliente” significa muito mais do que “usuário” ou “visitante”, e os jornais podem colher benefícios dessa mudança. À medida em que os jornais migrarem para a plataforma digital, os custos podem ser significativamente reduzidos – é muito mais barato produzir e distribuir o jornal online. Então, os custos ao cliente podem ser diminuídos, e o lucro da empresa, mantido.

ZH – O senhor acredita em uma revolução promovida pelos tablets em escala planetária?
Doctor – O tablet é somente um acessório tecnológico, ainda que interessante. Mas não, não é o salvador. O que ele oferece às empresas de comunicação é a possibilidade de se reinventar. Pode virar o jogo por dois motivos: 1) os anunciantes adoram a possibilidade de os consumidores “mergulharem” em seus produtos; é um ótimo lugar para conectar marcas e potenciais compradores; 2) para os leitores, é libertador do confinamento exigido por laptops e desktops; permite uma utilização mais natural, adapta-se melhor à gente. A experiência de leitura online com mobilidade significa mais leitura, e isso é bom para novas empresas.

ZH – Países subdesenvolvidos podem participar desse processo de mudança e, mais do que isso, beneficiar-se dele?
Doctor – Tablets são dispositivos móveis, como grandes telefones celulares. Celulares estão entre os principais meios de comunicação no mundo em desenvolvimento. Os tablets, até três vezes maiores do que um telefone, oferecem a esses países o próximo passo em infraestrutura da comunicação móvel, chave para a educação e o desenvolvimento econômico.
DAMIAN DOVARGANES, AP
ZH – Como você vê o papel da internet e das redes sociais nos protestos em andamento no mundo árabe?
Doctor – Adoro a piada: Nasser (Gamal Abdel Nasser, que governou o Egito de 1954 até sua morte, em 1970), Sadat (Anwar Al Sadat, o sucessor no cargo, entre 1960 e 1981) e Mubarak (Hosni Mubarak, ditador que abandonou o poder este mês) se encontram no além. “O que aconteceu com você?”, um pergunta ao outro. Nasser: “Envenenamento” (a causa oficial de morte de Nasser foi infarto, e boatos sobre um suposto envenenamento, embora largamente difundidos, jamais foram comprovados). Sadat: “Tiros”. Mubarak: “Facebook”. A internet não respeita fronteiras ou ditadores mesquinhos. É como um lodaçal cercando qualquer sistema – pense no WikiLeaks – controlador que um governo possa montar. A revolução no Oriente Médio nos ensina, mais uma vez, que as pessoas desejam ser livres e ajuda a descontruir nosso preconceito contra os árabes. As mídias sociais, cada vez mais, nos ajudam a disseminar as notícias que achamos importantes – quando estamos sob um regime opressor ou apenas procurando um lugar legal onde comer.

ZH – Como você utiliza o iPad no seu dia a dia?
Doctor – Noticiário, mapas, filmes, jogos, vídeos dos meus programas favoritos – e, claro, para leitura. Gosto muito de me recostar para ler, é uma boa alternativa à posição estática, sentado, com uma tela grande quase em cima do seu rosto.

ZH – Você mudou completamente seus hábitos de leitura?
Doctor – Os meus hábitos são como os da maioria dos leitores. Somos contempladores agora, alternando-nos, ao longo do dia, de publicações impressas para a televisão, do rádio para a mídia digital, fazendo misturas e combinações. A leitura de notícias não é uma religião, é conveniência, e a conveniência depende muito de lugar, hora do dia, preferências.

ZH – Como você descreveria o leitor padrão de livros e jornais no iPad?
Doctor – Experiente, digitalmente falando. Mais inclinado a ser viciado em notícia do que o indivíduo comum. Trata-se de algo importante sobre o tablet. Pesquisas mostram que o tablet é o novo aparelho para leitura de notícias. É um de seus usos mais importantes. A internet, em um desktop ou laptop, é muito mais uma lista telefônica de páginas amarelas – o meio para encontrar as coisas rapidamente, ir daqui para lá.

ZH – O conteúdo sempre deve ser brilhante e surpreendente ou algo mais básico às vezes é suficiente?
Doctor – Não, importa mais o contexto do que o conteúdo. Notícia é notícia. A maneira como é apresentada – me dê um vídeo que eu possa parar, recomeçar, compartilhar, muito melhor do que uma foto, que é estática – faz toda a diferença. Não há dúvida de que o aspecto visual vai incentivar mais a leitura do que os jornais impressos, ainda que muitos jornais da América Latina tenham se tornado bem mais visuais ao longo dos últimos 10 anos.

ZH – O que é o mais importante agora: oferecer aos leitores um aplicativo ou esperar um pouco mais e dar a eles um aplicativo muito bom?
Doctor – A diferença, se os editores estiverem suficientemente atentos, deveria ser de meses. A mídia ganha pontos, como diria Woody Allen, por aparecer, apenas pegando carona em uma novidade amplamente divulgada. Na era do deslumbramento visual e da interatividade, entretanto, o alerta foi dado, e os editores precisam se mobilizar rápido, dependendo, claro, do nível de competitividade que enfrentam.

"Nós sempre teremos livros de papel,
mas eles serão mais especiais para nós de
alguma maneira"
ZH – O que virá depois do iPad?
Doctor – O iPad 2, claro, provavelmente em abril (a Apple convidou jornalistas para o lançamento na semana que vem, na Califórnia), com câmera e mais conectividade via entrada USB, para que o usuário possa conectar o tablet a outras tecnologias. A Apple vendeu 13 milhões de iPads, em 26 países, em menos de 12 meses de vendas. Os tablets – pense no iPad e em seus similares – se tornarão artigos baratos e presentes nas casas da classe média ao redor do mundo em cinco anos. Depois da próxima geração de tablets, a grande fronteira é a televisão. As TVs já se transformaram em “monitores”, mas ainda estamos basicamente como espectadores, sem interagir com o aparelho. Interagiremos, em breve. O monitor da TV, a três metros de distância de nós, é a próxima tela a alterar a forma como vemos o mundo, local e globalmente (pense no que ocorreu no Egito, há poucas semanas) e até em família (pense nas fotos e nos vídeos domésticos).

ZH – Os e-readers podem substituir o prazer da leitura de um livro convencional?
Doctor – Milhões de leitores do Kindle dizem que sim. É uma troca: grande flexibilidade e portabilidade versus a já conhecida sensação do papel nos dedos. O prazer está no objeto ou nas palavras? Estamos inseridos em um mundo híbrido de papel e plástico, e os consumidores nos dizem claramente que o acesso à leitura é mais importante do que a tecnologia, antiga ou nova.

ZH – Retomo a primeira pergunta, mas agora com outro foco: o senhor enxerga um futuro promissor para os livros em papel?
Doctor – Acredito que, até 2015, 75% dos livros serão digitais. Para os editores, os custos diminuem. Para os autores de não ficção, a atualização de conteúdo é quase instantânea, o que se trata de um grande diferencial para eles. Para os leitores, o acesso é mais rápido e mais fácil. Assim como os jornais impressos estão se transformando de produto de massa em produto segmentado, o mesmo acontecerá com os livros. Nós sempre teremos livros de papel, mas eles serão mais especiais para nós de alguma maneira.

ZH – Um dos maiores desafios é atrair anunciantes para as novas mídias. Como jornais e revistas devem agir?
Doctor – Editores tradicionais devem avançar para além do simples espaço de venda. O espaço, no meio impresso, é escasso, e portanto valioso. No mundo digital, o espaço é infinito e desvalorizado. Comerciantes não querem anunciar, querem alcançar o público. Consequentemente, editores atentos estão transformando suas empresas, de vendedoras de espaço, em consultoras para venda de espaços, cupons virtuais, anúncios de Facebook e Twitter e muito mais.

ZH – Outro desafio é cobrar pelo noticiário online – e a internet está repleta de conteúdo gratuito. Você acha que os usuários concordarão com isso?
Doctor – Não é uma questão de quando cobrar, como cobrar, ainda que essas dúvidas tenham consumido muitos empresários ao longo de 2010. O que importa saber é quais leitores pagarão por isso. Não é tão difícil assim entender a natureza humana. As pessoas pagarão pelo que tiver valor para elas, algo que elas não conseguem adquirir de graça. Então, as publicações – sejam de circulação nacional, sejam jornais semanais de bairro – com conteúdo amplo e aprofundado poderão cobrar. Esses veículos – diários de grandes cidades nos Estados Unidos, por exemplo – que têm muita competição com conteúdo gratuito terão mais dificuldade para convencer os leitores a pagar. Tenho acompanhado o processo do The New York Times de perto. É um padrão utilizado pelo Financial Times, e tem chance de funcionar: cobre apenas dos 5% a 10% de usuários diários mais frequentes – e não espante os demais com a cobrança.
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Reportagem por LARISSA ROSO
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Fonte: ZH/CULTURA online, 26/02/2011