terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Neurônios e chips

 João Teixeira*
Filosofia da mente


No seu livro A Redescoberta da Mente, publicado em 1992, John Searle descreve um curioso experimento mental, no qual o cérebro de uma pessoa era progressivamente substituído por chips de silício. Tudo se passa como se partes do cérebro dessa pessoa se deteriorassem devido a alguma doença desconhecida e a única maneira de contornar a situação fosse substituí-las, gradativamente, por chips que executariam as mesmas funções cerebrais.
Searle não estava preocupado com os detalhes técnicos de uma cirurgia desse tipo e sim com as suas consequências para uma pessoa que recebesse esses chips. Ele perguntava o que ocorreria do ponto de vista subjetivo. Como nos sentiríamos com um cérebro com uma parte biológica e outra não? Como seria nossa experiência do mundo com um cérebro integrado a uma máquina, ou, no final das contas, com o cérebro transformado em uma máquina? Ou, em outras palavras, que tipo de pós-operatório poderíamos esperar dessa cirurgia progressiva?
Searle nos fala de três possibilidades. A primeira seria o sucesso total da cirurgia. As funções vitais, a consciência e o comportamento se manteriam intactos. Nada aconteceria; a substituição seria perfeita. A segunda possibilidade seria a redução gradual da experiência consciente. Na medida em que os neurônios fossem substituídos por chips, o seu campo de consciência iria se estreitando. Da mesma maneira que o campo visual de uma pessoa que sofre de glaucoma vai se fechando.
A terceira possibilidade seria a de que os comportamentos se extinguissem sem, entretanto, haver perda da consciência. Dá para imaginar algo semelhante à situação do filme O Escafandro e a Borboleta, que foi baseado em fatos reais, no qual o personagem principal tinha perdido toda e qualquer possibilidade de se mover, mas ainda mantinha os olhos abertos e podia saber tudo o que se passava à sua volta. Essa é, sem dúvida, uma situação cruel e angustiante.
Para os filósofos da mente é a segunda possibilidade que mais interessa. Afinal, o que significa uma redução gradual da consciência? Seria uma perda progressiva de estados subjetivos como, por exemplo, a percepção de cheiros e cores? Isso equivaleria a uma perda dos qualia, ou seja, dos estados intrinsecamente subjetivos, o que nos transformaria, aos poucos, em uma espécie de robô. Essa é também uma possibilidade angustiante, pois como seria ser um robô? A angústia viria principalmente do fato de não conseguirmos sequer nos imaginar no lugar de um robô. É mais fácil tentarmos nos colocar no lugar de um morcego do que no de Deep Blue, o famoso computador enxadrista da IBM.
Retomando o experimento de Searle, David Chalmers, no seu livro The Conscious Mind, publicado apenas quatro anos depois do de Searle, nos levanta uma hipótese interessante. Se a consciência for gradualmente se reduzindo, nossa percepção das cores tornar-se-á menos intensa, pois os qualia serão menos intensos. Um vermelho que antes era percebido como extremamente vívido tornar-se-á um vermelho comum e, em seguida, alaranjado, até por fim desaparecer. Chalmers nomeou essa ideia estranha de fading qualia.
Imagine agora uma maçã não muito madura, com partes vermelhas e outras rajadas de verde. Se você tiver perdido a capacidade de ver coisas vermelhas, sem prejuízo das outras cores, verá apenas parcialmente a maçã. Sua percepção teria se tornado caótica em algum momento da substituição de neurônios por chips. Mas será que nos daríamos conta disso? O mais estranho será tentarmos imaginar a experiência de não ver o vermelho na maçã.

"Poderemos transmitir dados
para os chips implantados no cérebro.
Já pensou transferir o conteúdo de
uma biblioteca para o cérebro de alguém?
O que aconteceria com essa pessoa
ao invocar a lembrança de algo
que foi implantado na sua memória
sem ter passado pela sua consciência?"
Poderíamos viver, talvez, um período intermediário de angústia, no qual ainda tentaríamos ver o vermelho. Mas certamente essa angústia desapareceria com a extinção do vermelho na nossa consciência. Tudo se passaria como em doentes que sofrem de Alzheimer. No início, eles sentem uma forte angústia pela perda de alguns itens de memória e tentam desesperadamente se lembrar deles. Contudo, na medida em que a doença avança, eles vão progressivamente perdendo o próprio sentimento de esquecimento, como se a supressão de memória causasse uma perda tão radical que eles não soubessem sequer o que esqueceram.
O estreitamento da consciência não deve ser muito diferente. A perda progressiva de consciência sugerida por Searle talvez não seja nem tão séria nem angustiante do ponto de vista da primeira pessoa. Ou seja, não haveria tanto desconforto nos pós-operatórios da substituição de neurônios por chips.
Mas temos de considerar outras possibilidades de pós-operatório que parecem não terem sido notadas nem por Searle nem por Chalmers. Poderemos transmitir dados para os chips implantados no cérebro. Já pensou transferir o conteúdo de uma biblioteca para o cérebro de alguém? O que aconteceria com essa pessoa ao invocar a lembrança de algo que foi implantado na sua memória sem ter passado pela sua consciência? Como classificar mentalmente a lembrança de uma coisa da qual não fomos conscientes? Será que ao invocá-la tenderíamos a colocá-la no domínio da memória ou no da imaginação?
"Os implantes de chips cerebrais
já estão se tornando
uma realidade."

Creio que a lembrança de algo do qual não fomos conscientes terá uma característica distintiva. Ela será acompanhada por uma sensação de déjà vu, ou seja, de uma lembrança inesperada de algo que nunca foi percebido e que se intrometeu na nossa memória. Essa é a origem da sensação de estranheza que acompanha o déjà vu. Isso poderá ser um desconforto psíquico para alguns, para outros não.
Teremos de esperar alguns anos para saber se estas especulações são corretas. Mas poucos. Os implantes de chips cerebrais já estão se tornando uma realidade.
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* João de Fernandes Teixeira é Ph.D. pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos. http://www.filosofiadamente.org/
Fonte: http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/Edicoes/54/ - Revista FILOSOFIA CIÊNCIA  & VIDA, dezembro/2010

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