quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Desclericarizar a Igreja

''O declínio das vocações é a forma de Deus
'desclericalizar' a Igreja''.
Entrevista especial com Thomas Reese

Desclericarizar a Igreja. Empoderar, capacitar os leigos. Para o jesuíta norte-americano Thomas Reese, o declínio das vocações é um claro sinal de Deus para que isso aconteça. Segundo ele, acabou o mito de que a vocação religiosa é, de alguma forma, melhor ou mais santa. O mundo pede novas respostas por parte da Igreja.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Reese, ex-editor da renomada revista America, dos Estados Unidos, comenta os fatos mais importantes da Igreja vividos em 2010 e que, certamente, terão desdobramentos em 2011, que será, segundo ele, um ano “mais do mesmo”.
Nesse sentido, ele analisa as novas facetas que Bento XVI revelou em 2010, especialmente a partir de seu livro-entrevista Luz do Mundo, assim como a investigação a respeito das religiosas norte-americanas e a nomeação de Dom João Braz de Aviz, ex-arcebispo de Brasília, como prefeito da Congregação para os Religiosos. Por fim, pondera quanto ao futuro das congregações religiosas tradicionais, como os franciscanos e os jesuítas. Segundo o entrevistado, elas serão muito menores do que as de meados do século XX. Mas isso, por um lado, é um chamado de Deus a forçar a Igreja a empoderar os leigos, a "desclericalizar" a Igreja. "Quanto menos padres e religiosos houver, mais os leigos devem se lançar para fazer o trabalho da Igreja", afirma
Por isso, as temáticas candentes do início desta década, como as questões ambientais, exigem, segundo Reese, uma "sensibilidade franciscana para com a natureza e um estilo de vida simples" e uma "espiritualidade inaciana do discernimento e de encontrar Deus em todas as coisas".
Thomas J. Reese entrou para a Companhia de Jesus em 1962, tendo sido ordenado em 1974. É membro sênior do Woodstock Theological Center, centro jesuíta independente de pesquisa teológica da Universidade de Georgetown, em Washington. É mestre em ciências políticas pela Universidade de St. Louis e em teologia pela Escola Jesuíta de Teologia de Berkeley. Possui doutorado em ciências políticas pela Universidade da Califórnia. Entre 1998 e 2005, foi o editor-chefe da revista America, a renomada revista católica dos EUA, fundada em 1909. Porém, por pressão do Vaticano, que discordava de suas decisões editoriais, principalmente com relação a temáticas como o celibato sacerdotal e a ordenação de mulheres, Reese pediu para deixar o cargo. É autor de diversos livros que examinam a política e a organização eclesial. Em português, publicou O Vaticano por Dentro: A Política e a Organização da Igreja Católica (Edusc, 1998).

Confira a entrevista

IHU On-Line – Neste início da segunda década do século XXI, como o senhor avalia os episódios ocorridos em 2010 no Vaticano? Que expectativas centrais o senhor tem para 2011?
Thomas Reese – O que é surpreendente com relação às notícias que surgiram sobre o Vaticano, no ano passado, é como o Papa teólogo foi forçado a desempenhar um papel no cenário internacional. Joseph Ratzinger era um teólogo acadêmico, mais confortável em uma biblioteca e em uma sala de aula do que em uma coletiva de imprensa ou em uma negociação diplomática. No entanto, os eventos o obrigaram a assumir um papel para o qual ele nunca foi treinado. A violência contra cristãos no Oriente Médio, Ásia e África, o secularismo agressivo na Europa, os terremotos no Haiti e um colapso econômico mundial não estão na agenda normal de um teólogo, mas foram lançados sobre o Papa como o líder de 1,1 bilhão de católicos. Infelizmente, este ano provavelmente será mais do mesmo.
"Ratzinger era um teólogo acadêmico,
mais confortável em uma biblioteca
do que em uma
negociação diplomática"

IHU On-Line – Em 2010, Bento XVI também publicou seu livro-entrevista Luz do Mundo. Que face de Bento XVI surge desse livro, além dos seus gestos e pronunciamentos ao longo do ano?
Thomas Reese – Bento, em seu coração, é um professor. Se ele pudesse, ele iria gastar seu tempo mais escrevendo e menos em reuniões com líderes mundiais. Francamente, ele é um professor melhor do que o Papa João Paulo II, cujos escritos eram muitas vezes ininteligíveis até mesmo para os leitores instruídos. Bento XVI é mais acessível como professor quando responde a perguntas, como ele faz em seu novo livro Luz do Mundo. Ele é capaz de extrair uma riqueza de conhecimento e explicar as questões para as pessoas. Às vezes, ele também deseja falar como um simples teólogo (sujeito à correção) e não como Papa. Embora muitas pessoas achem isso refrescante, algumas autoridades do Vaticano não gostam, porque acreditam que isso reduz a mística de sua autoridade. Elas também objetam que seu livro foi publicado sem ser revisto e revisado dentro do Vaticano.
Esses funcionários curiais têm razão. Depois de décadas tratando cada palavra de um Papa como escritura sagrada, é difícil para os católicos simples entenderem que algo que o Papa diz pode estar aberto ao debate. No curto prazo, isso é confuso e, no longo prazo, será saudável para a Igreja. Também é constrangedor quando as palavras do Papa não são claras, como foi com o trecho sobre os preservativos, que exigiu uma semana de esclarecimentos para explicar o que ele quis dizer. Se ele, que não é um teólogo moral, tivesse consultado teólogos morais na elaboração de seus parágrafos sobre os preservativos, essa confusão poderia ter sido evitada. Por outro lado, a sua vontade de dizer que, sob certas circunstâncias, o uso de preservativos por pessoas com Aids pode ser moralmente responsável foi uma ruptura corajosa com o passado. Se ele tivesse consultado a burocracia do Vaticano, ele poderia não ter dito isso.
O que os discursos e os livros de Bento XVI mostram é um teólogo que, às vezes, se expressa com confiança, sem necessariamente se consultar com alguém dentro ou fora do Vaticano. Isso lhe permite falar em um estilo menos burocrático, mas também o coloca em apuros quando ele diz algo que um crítico amável poderia tê-lo protegido de dizer, por exemplo o que ele disse em sua visita ao Brasil, que o colonialismo foi uma bênção para a índios da América Latina por ter trazido o cristianismo.

IHU On-Line – Qual a sua análise da Visitação Apostólica às religiosas dos EUA? Já se tem algum resultado prévio? Está sendo uma iniciativa válida, em sua opinião?
Thomas Reese – Durante décadas, os católicos conservadores falaram mal das religiosas dos EUA. Alguém poderia ter a impressão de que todas elas são bruxas que celebram a missa sem um sacerdote. Infelizmente, o Vaticano ouve esses conservadores. Na verdade, as religiosas dos EUA são mulheres majoritariamente generosas e dedicadas, que trabalharam arduamente para implementar o Vaticano II em suas comunidades e ministérios. Elas cometeram algum erro? Claro que sim. Mas elas também aprenderam com os seus erros. Elas estão constantemente refletindo sobre como podem viver melhor o Evangelho e seus carismas particulares. A maioria delas é a favor da ordenação de mulheres? Certamente, assim como a maioria dos católicos norte-americanos. Elas estão fugindo e sendo ordenadas? Não.

"A nomeação de Dom Braz de Aviz
só pode ser uma melhoria
com relação ao cardeal Rodé,
que foi um desastre completo"

A maioria dos católicos norte-americanos tem uma visão muito positiva das irmãs, com base em sua experiência com elas nas paróquias, escolas e hospitais. As irmãs são amadas e respeitadas. Quando os bispos norte-americanos fizeram uma coleta especial para criar um fundo de aposentadoria para as irmãs idosas, a coleta arrecadou mais do que todas as outras coletas nacionais somadas.
 Dom Joseph Tobin

Grande parte do problema com a visitação foi a forma com ela foi instigada. Não houve consulta com as irmãs sobre isso, embora as lideranças nacionais das irmãs estivessem em Roma um mês antes da visitação ser anunciada. O objetivo da investigação não foi bem explicado. A impressão que ficou é que as religiosas haviam ficado loucas, e que os homens iriam endireitá-las. Muitos leigos pensaram que não eram as irmãs, mas sim os bispos norte-americanos que deveriam ser submetidos a uma investigação do Vaticano por causa da sua má gestão da crise dos abusos sexuais. As pessoas erradas estavam sendo investigadas.

IHU On-Line – Em 2010, foi nomeado o novo secretário da Congregação para a Vida Religiosa, o norte-americano Joseph Tobin, e recentemente o Papa indicou o brasileiro João Bráz de Aviz como prefeito desse dicastério. Como o senhor recebe essas indicações? Que rumos e tendências Bento XVI deseja para a vida religiosa?
Thomas Reese – As religiosas norte-americanas têm respondido muito positivamente à indicação do arcebispo Tobin como secretário da Congregação para os Religiosos. Mesmo antes de se apresentar em Roma, ele reconheceu que a visitação estava com problemas e disse que iria ouvir as irmãs e transmitir suas opiniões a Roma. Palavras francas como essas de um recém-indicado ao Vaticano são inéditas. A nomeação de Dom João Braz de Aviz como prefeito só pode ser uma melhoria com relação ao cardeal [Franc] Rodé, que foi um desastre completo. As opiniões de Rodé acerca da vida religiosa eram pré-Vaticano II. Se o novo prefeito se aproximar das irmãs norte-americanas com uma mente aberta e ouvir o arcebispo Tobin, a crise será evitada.
Dom João Braz de Avis

IHU On-Line – Em sua opinião, qual o papel da vida religiosa hoje, especialmente das grandes e tradicionais congregações, como os dominicanos, franciscanos, jesuítas etc.?
Thomas Reese – O papel das congregações religiosas é providenciar uma base institucional para os carismas a serviço da comunidade cristã. Enquanto a hierarquia proporciona estrutura e estabilidade para a Igreja, as comunidades religiosas proporcionam criatividade e espontaneidade. Quando a Igreja hierárquica se torna burocrática, a vida religiosa providencia espaço para a inovação e a reforma. Não é de surpreender que a história da Igreja narra inúmeros conflitos entre as congregações religiosas e os bispos. As congregações religiosas são muitas vezes locais de teste para a teologia, para as devoções e os ministérios, que, se se provarem bem-sucedidos, podem ser implementados em todo o mundo na Igreja.
Ao mesmo tempo, hoje existe claramente um declínio no número de religiosos no Norte global e até mesmo em partes do Sul global. A maior conscientização e respeito ao papel dos leigos e à vocação da vida matrimonial abalou o mito de que a vocação religiosa é, de alguma forma, melhor ou mais santa. Os pais com poucos filhos não incentivam as vocações. Considerando que a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa de uma família analfabeta levava a um melhor status social no passado, hoje uma vocação é vista, às vezes, como um rebaixamento cultural. O crescente afastamento dos jovens da Igreja também tem o seu preço. As congregações religiosas da primeira metade do século XXI serão muito menores do que as de meados do século XX. O declínio das vocações pode ser uma forma de Deus forçar a Igreja a empoderar os leigos.
Dom Franc Rodé

Ao mesmo tempo, o século XXI oferece novas oportunidades para a vida religiosa. O aquecimento global e outras questões ambientais certamente exigem uma sensibilidade franciscana para com a natureza e um estilo de vida simples. Da mesma forma, a espiritualidade inaciana do discernimento e de encontrar Deus em todas as coisas pode oferecer uma abordagem às novas questões que podem surgir.

IHU On-Line – Por outro lado, como o senhor analisa os novos movimentos religiosos? A que realidades e necessidades concretas do nosso tempo eles respondem? Quais são suas limitações?
Thomas Reese – Os novos "movimentos" não têm sido muito bem sucedidos nos Estados Unidos, por isso minha resposta será tentativa. Um razão pela qual os movimentos não têm sido bem sucedidos aqui é que a vida paroquial nos EUA é muito mais viva do que na Europa. Desde o início do catolicismo nos EUA, os padres foram próximos do seu povo. Desde o início, os bispos e padres dependeram dos seus paroquianos, e não do Estado, para apoio financeiro. Depois do Concílio Vaticano II, também tivemos programas de renovação paroquial de sucesso, como o "Renew", que começou na Arquidiocese de Newark. Como resultado, as paróquias norte-americanas têm uma vitalidade, uma riqueza de ministérios e um senso de comunidade que está ausente na Europa, onde os movimentos surgiram.
Os movimentos religiosos surgiram em resposta a uma necessidade sentida de comunidade, espiritualidade e participação ativa no ministério. Quando as paróquias não atendem a essas necessidades, então as pessoas se voltam para os movimentos ou para outras Igrejas, como os evangélicos. Assim como as ordens religiosas, os movimentos também podem oferecer inovação e criatividade. Eles também podem ser locais de teste para novas ideias e práticas, embora a maioria dos movimentos tendam a ser bastante tradicionais, o que os levou a servir aos que já estão salvos em vez dos mais afastados. Resta saber se eles poderão perdurar a longo prazo, sem o compromisso permanente e a longa formação dos religiosos professos. Serão divididos pelas facções e pelas políticas internas? Seus membros e suas lideranças irão envelhecer ao longo do tempo?

IHU On-Line – Como jesuíta, como o senhor analisa os cenários futuros da Companhia de Jesus nos EUA e no mundo? Que ações ainda são necessárias para uma ação mais eficaz?
Thomas Reese – Qualquer pessoa que prediz o futuro pode ter certeza de apenas uma coisa: vai estar errado. Se em 1970 alguém tivesse me dito que, na virada do século, os jesuítas norte-americanos abririam mais escolas de ensinos fundamental e médio, eu perguntaria o que eles estavam fumando. De fato, abrimos ou financiamos dezenas de escolas Cristo Rey [1] e Nativity [2], quando, na década de 1970, falávamos em fechar escolas. Essas escolas não saíram de nenhum plano nacional. As primeiras foram fundadas por indivíduos criativos, com o apoio de seus provinciais. As escolas funcionaram e foram replicadas por outros.
"Quanto menos padres e religiosos houver,
mais os leigos devem se
lançar para fazer
o trabalho da Igreja"
As congregações gerais podem oferecer visão e inspiração, mas os novos ministérios vêm de indivíduos criativos que respondem às oportunidades e são encorajados e apoiados por suas comunidades. Infelizmente, a Igreja de hoje não é boa para encorajar a criatividade.
Com um menor número, será difícil para que a Companhia [de Jesus] faça tudo o que queremos fazer. Com os números projetados, não será possível provermos nossas escolas com pessoal. Educamos os leigos, e agora entregamos as nossas escolas para eles. Esse é um sinal de sucesso, assim como de diminuição. Talvez, o declínio das vocações é a forma de Deus “desclericalizar” a Igreja. Quanto menos padres e religiosos houver, mais os leigos devem se lançar para fazer o trabalho da Igreja.
Mas enquanto a Companhia for verdadeira para com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, enquanto estivermos abertos para discernir os movimentos do Espírito, vamos encontrar formas de servir a comunidade cristã e construir o reino de Deus.

Notas:

1. A rede de escolas Cristo Rey Rede é composta por 24 escolas de ensino médio para jovens que vivem em comunidades urbanas com poucas opções educacionais. Hoje, possuem 6.500 alunos, que de outra forma não teriam acesso à educação. A missão das escolas é possibilitar a entrada dos alunos Cristo Rey no ensino superior. A rede foi fundada em 2001, quando os líderes de Portland, Oregon, Cleveland, Denver e Nova York procuraram uma forma de repetir o sucesso da escola jesuíta de ensino médio Cristo Rey, de Chicago.
2. As escolas da rede Nativity começaram com os jesuítas de Nova York na década de 1970, dirigidas às crianças pobres. As escolas cobram uma taxa mensal de 25 a 100 dólares – ou até mesmo nada – e sustentam-se por meio de doações de fundações, individuais e da ajuda de igrejas e ordens religiosas católicas que dirigem muitas das escolas. Os pais e tutores geralmente trabalham voluntariamente em algumas funções específicas da escola, como em atividades de escritório, cuidado do jardim etc.
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(Por Moisés Sbardelotto)
Fonte: IHU online, 20/01/2011

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