quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Criança ou índio?

JUREMIR MACHADO DA SILVA*
Crédito: ARTE PEDRO LOBO

Ando encafifado com uma questão: uma criança índia é antes uma criança ou um índio? O que vem primeiro? Ser criança ou ser índio? Uma criança índia brasileira é primeiro criança, brasileira ou índia? Quando eu era estudante de antropologia, emperrava na oposição entre particular e universal. Todos os dias, ando no Centro de Porto Alegre, onde vejo uma mãe índia com seus filhinhos. Ela mendiga na calçada. As crianças arrastam-se no chão sujo. Já a vi trocando fraldas de uma delas. Ando tão encafifado com isso que fizemos uma edição do programa "Esfera Pública", na Rádio Guaíba, sobre esse tema. Uma criança qualquer não pode esmolar na rua. O conselho tutelar pode e deve interferir. E uma criança índia? Interferir pode significar desrespeito à cultura indígena? Pode ser etnocentrismo esse pecado antropológico de preconceito com a cultura dos outros?
"Fico com a ligeira impressão de que
uma criança indígena pedindo esmolas
é apenas um pobre mendigo igualado
por baixo aos excluídos da nossa civilização.
Devo estar enganado."
Parece que esse é o entendimento de muitos especialistas e até do Ministério Público. Curioso paradoxo: uma criança qualquer mendigando não pode, sendo o adulto passível de ser acusado de exploração de menor. Criança índia mendigando é diferença cultural. Os guaranis tem uma expressão para "estender a mão". Houve um tempo em que os índios andavam nus. Não podem mais fazer isso. Podem mendigar com crianças pelas ruas da cidade? As causas da penúria dos índios integram um capítulo que, certamente, não honra a nossa história, mas também não dá brilho ao nosso currículo a pobreza dos demais. Quando vejo aquelas crianças rastejando na calçada imunda, úmida ou torrando, tenho tendência a pensar de uma maneira muito simples: criança é criança. Em qualquer lugar do planeta, seja qual for a cultura.
A partir desse princípio, que alguns poderão rotular de simplório, concluo que, dificilmente, uma cultura poderá me convencer do valor de crescer rastejando em calçadas sujas. Sou fanático pela diferença. Mas acredito também que até o relativismo deve ser relativo. Meu lado universalista usa um megafone: antes de sermos parte de uma cultura, somos seres humanos. Não culpo a mãe índia pelo que acontece com seus filhos. O problema é muito maior. Na verdade, ela também é vítima do que temos feito com os índios. Continuamos a ensinar que os portugueses "descobriram" o Brasil, um lugar que já estava ocupado, como se os índios não contassem como habitantes válidos. Até aí tudo claro. Mas não me conformo ao ver aquelas crianças fazendo de uma rua suja o seu universo simbólico, jardim da infância e até parque de diversões.
O que se pode fazer? O respeito à diferença não poderá significar no caso uma mera justificativa para nada se fazer? A "preservação" de uma cultura vale até mesmo o preço de uma educação para a miséria? Podemos devolver esses índios urbanos a sua inocência original? Perguntas sem respostas. Fico com a ligeira impressão de que uma criança indígena pedindo esmolas é apenas um pobre mendigo igualado por baixo aos excluídos da nossa civilização. Devo estar enganado. Não pretendo julgar a cultura dos índios. Contento-me em avaliar a nossa.
___________________________-
*Filósofo. Escritor. Prof. Universitário. Cronista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo online, 26/01/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário