sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Assim caminha a humanidade

CARLOS HEITOR CONY* 
--------------------------------------------------------------------------------

Não há quem não tenha pago
tributo a Dale Arden,
primeiro símbolo sexual de jovens
de todo o mundo

--------------------------------------------------------------------------------

SEMANA PASSADA, a capa da Ilustrada trouxe em tamanho bem grande um dos ícones das histórias em quadrinhos -como se dizia então e ainda se diz. Era a de um dos casais mais famosos do gênero, obra prima do cartunista Alex Raymond: nada menos que Flash Gordon e Dale Arden. A série fora criada pela King Features Syndicate em 1933 e estreou na imprensa no ano seguinte, como concorrente de Buck Rogers, herói de um sindicato rival.
O sucesso foi imediato e estrondoso. No Brasil, foi lançado em 1935, como suplemento de "A Nação", mas logo se transformou em veículo próprio no "Suplemento Juvenil", que durou anos e foi, senão o primeiro, o mais importante contato da infância e juventude não apenas com as histórias em quadrinhos e a ficção científica, mas obra de referência que marcou toda uma geração e as seguintes.
Como não podia deixar de ser, logo passou para o cinema, em várias versões, inclusive uma com alguns lances pornográficos, inspirados de certa forma no exuberante erotismo do traço original de Alex Raymond. A primeira série, "Flash Gordon no Planeta Mongo", com Buster Grabbe no papel principal, era a peça de resistência para as matinês daquela época.
O ponto de partida para a aventura do herói não chegava a ser muito original, era quase o mesmo de outro herói, o Super-Homem, um extraterrestre que veio do espaço para viver na Terra com poderes sobre-humanos, uma vez que seu planeta de origem estava em vésperas de destruição.
Disfarçado de jornalista careta, de chapéu e óculos, ele se envolvia com bandidos daqui mesmo, ao contrário de Flash, que enfrentava inimigos terríveis, homens com imensas asas e um imperador cruel que dominava um planeta sustentado por feixes de luz.
Não há sobrevivente daquela época que não tenha pago tributo a Dale Arden. Foi o primeiro símbolo sexual para jovens de todo o mundo, inclusive para os meninos da minha rua. Era difícil namorar as meninas de então, as aproximações eram evitadas em nome da pureza infantil, um dos meus vizinhos foi impedido de fazer a primeira comunhão porque confessou ao frei André Mattioli que colecionava o "Suplemento Juvenil".
E tem mais. Não podendo se intrometer com as meninas, os meninos buscavam as alternativas à mão, desde as bananeiras dos quintais até os complicados casos de garotos complacentes, dos quais o de maior evidência era um tal de Rubinho, que mais tarde entrou para a Marinha e terminou a carreira como capitão de mar-e-guerra.
Embora vivêssemos na ditadura do Estado Novo, éramos democratas por gosto ou necessidade. Votávamos tudo, no melhor goleiro, na melhor pipa, no melhor doce da Confeitaria Indiana, no melhor ônibus da Viação Popular que servia ao bairro.
Nada demais que votássemos no Rubinho, que logo adquiriu outro nome: Dale Arden. Ao contrário da personagem de Alex Raymond, cuja fidelidade era feroz a Flash Gordon, a nossa Dale Arden era compassiva, compreendia as coisas e dava a impressão de que gostava daquela unanimidade e, sobretudo, do nome que lhe haviam dado.
Antes de entrar para a Marinha, Rubinho fez um estágio entre os escoteiros do mar. Naquele tempo havia muitos escoteiros de terra, sempre alertas por sinal. E logo criaram os escoteiros do mar, que eram a mesma coisa em cenário marinho.
Reinou desolação em toda a rua Cabuçu e imediações. À falta de Rubinho, as edições do "Suplemento Juvenil" se esgotavam na manhã do dia do novo lançamento, os exemplares eram disputados a bofetão. Os mais felizes alugavam o seu, mas, geralmente, o exemplar alugado vinha mutilado, sem as páginas em que Dale Arden aparecia.
Carlos Drummond de Andrade, de uma geração anterior à minha, confessou em várias crônicas que era amarrado no "Tico-Tico", creio que uma pioneira nos quadrinhos para a infância. Era uma revistinha light, seus heróis eram assexuados: Reco-Reco, Bolão e Azeitona, Zé Macaco e outros. Veio depois o "Suplemento Juvenil", com Dale Arden em nossa iniciação sexual. Em geração posterior, surgiram os livrinhos de Carlos Zéfiro, sacanagem pura, 99% dos quadrinhos eram do chamado sexo explícito. Assim caminhava a humanidade.
------------------------------------------
* Escritor. Jornalista. Cronista da Folha de São Paulo. Imortal da Academia Brasileira de Letras.
Fonte: Folha online, 28/01/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário