sábado, 31 de dezembro de 2011

Japão é lider em relacionamentos sem sexo

Nova geração
Mundo virtual atrai mais do que realidade (Reprodução/The Guardian)
Estará uma nova geração de japoneses
perdendo o interesse em sexo?
E se sim, o que estará
por trás disso?

Não é fácil ser jovem no Japão hoje em dia. A cada poucos meses se vê o lançamento de um novo conjunto de imagens, estatísticas e reportagens alardeando a mesma ideia: a de que os homens japoneses contemporâneos não são viris o suficiente – e pior, não parecem se importar com isso.
No estudo mais recente feito pelo governo, publicado no fim do mês passado, a porcentagem de homens solteiros subiu 9,2 pontos em relação a cinco anos atrás. E o que é mais revelador: 61% desses homens declararam não ter uma namorada, entre os quais 45% disseram que não podiam se importar menos em encontrar uma.
E então? Como qualquer um que já tenha assistido a vídeos pop japoneses ou coreanos, as imagens mais populares dos homens asiáticos, vistas de uma perspectiva ocidental, é muito mais efeminada do que as imagens de homens ocidentais. Asiáticos são retratados cobertos de maquiagem, penteados, estilizados e gostam de passos de dança coreografados.
E ainda assim o Japão foi reconstruído das cinzas da Segunda Guerra Mundial e transformado em uma grande potência econômica e tecnológica com uma rapidez sem precedentes, graças aos seus trabalhadores esforçados, em sua maioria homens, que construíram os trilhos do impressionante trem bala do país, por exemplo.
“Talvez nós sejamos seres humanos mais avançados,”
 minha amiga japonesa disse enquanto
jantávamos juntos em Tóquio (ela pediu que eu
não usasse seu nome real). Ela é a
atraente editora de 40 e poucos anos
de uma das principais revistas de moda do Japão,
 e ela ainda está solteira.
“Talvez,” ela continuou,
 “nós já tenhamos aprendido a
nos satisfazer sozinhos.”

Então por que o repúdio e a indiferença generalizados dos japoneses no que se refere ao sexo? Existem muitas teorias. A mais provocativa para mim, um japonês-americano que vive em Tóquio há muitos anos, é a de que as mulheres japonesas se tornaram mais fortes social e economicamente ao mesmo tempo em que os homens japoneses se tornaram mais prostrados e absorvidos por mundos virtuais, saciados pela própria feitiçaria tecnológica que seus antepassados lhes impingiram, e muitas vezes preferindo-os à realidade. “Eu não gosto de mulheres de verdade,” desdenhou com arrogância um rapaz no 2Channel, o maior e mais ativo fórum online do mundo. “Elas são exigentes demais hoje em dia. Prefiro ter uma namorada virtual.”
Namoradas virtuais se transformaram em uma sensação no último verão, quando a fabricante de jogos japonesa Konami lançou a segunda geração de seu popular Love Plus, apropriadamente chamada de Love Plus +, para Nintendo DS. E sabiamente, a Konami conseguiu fazer com que uma monótona cidade de praia chamada Atami fosse a sede de um fim de semana especial com o tema Love Plus +.
Os jogadores foram convidados a levar suas namoradas virtuais, dentro de seus aparelhos de videogame, até a cidade de praia para viver um fim de semana de romance e êxtase. A promoção obteve um sucesso absurdo, e gerentes de resorts locais disseram que foi seu melhor fim de semana em décadas. Claramente, esses são jovens japoneses de uma geração que considera as demandas imperfeitas ou simplesmente inesperadas dos relacionamentos no mundo real menos atraentes do que a tentação da libido virtual.
A expressão “homens herbívoros” foi criada por uma jornalista japonesa em 2006. Em 2009, a falta de ambição dos homens japoneses, tanto sexualmente quanto em outras áreas, havia se tornado um tema recorrente na mídia. Com relatos recentes de japoneses que não conseguem satisfazer mulheres de verdade e que não pretendem se casar ou ter filhos, o fenômeno de distanciamento mútuo entre os gêneros se tornou um assunto popular. Pode ser o futuro, mas será que é realmente japonês?
“Talvez nós sejamos seres humanos mais avançados,” minha amiga japonesa disse enquanto jantávamos juntos em Tóquio (ela pediu que eu não usasse seu nome real). Ela é a atraente editora de 40 e poucos anos de uma das principais revistas de moda do Japão, e ela ainda está solteira. “Talvez,” ela continuou, “nós já tenhamos aprendido a nos satisfazer sozinhos.”
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Fontes: The Guardian - Japan leads the way in sexless love

De presentes e ausências

 Daniel Piza*

Daniel Pisa, 41 1nos,  vítima de um AVC,  faleceu 30/12/2011.
Nesta época é comum ver, além das retrospectivas, os apelos piegas ao tal espírito natalino, abusos de expressões como “renovar esperanças”, previsões furadas de astrólogos, tarólogos e outros loucos, textos que lamentam onde estão os natais d’antanho, mensagens de boas festas com listas de virtudes. Meu impulso é perguntar por que as pessoas não procuram ser assim o ano todo, e não apenas no solstício que foi apropriado pela religião e pelo folclore para se tornar uma data paradoxal em que se discursa sobre bons sentimentos enquanto se consome em ritmo febril; até mesmo os nacionalistas se calam diante do fato de que a festa não tem cara do calor de 34 graus. E então me ponho a pensar em como generosidade e respeito, para ficar só nesses dois itens, andam em falta nos tempos atuais, especialmente nas grandes cidades, e em como a tecnologia que deveria nos aproximar nos tem dispersado. Mas lembro os Natais de infância, comparo com o dos meus filhos e as diferenças se tornam irrelevantes, porque os prazeres e as questões são muito parecidos. E os dias deliciosamente desocupados, desacelerados, convidam ao balanço do ano, ainda que tenha tido tantas tristezas em meu caso, e sem balanço não há avanço.

"Perdi minha mãe e, apesar das falas
pseudo consoladoras do tipo
 “É a vida” (não, é a morte mesmo) e
“Tudo vai ficar bem” (defina “bem”),
a dor ganha intervalos,
mas a ausência fica."

Somos carne e pensamento, um não se dissocia do outro, e do mesmo modo o Natal é ficar feliz em dar e receber presentes, é ver as crianças alegres com o que ganham e pronto, sem místicas nem melancolias. Lembro que meu avô nos levava em seu Opala, no banco da frente, câmbio atrás do volante, para procurar o Papai Noel. Olhávamos para o céu e achávamos que qualquer luzinha era a carruagem de renas. Quando voltávamos, ele já tinha passado e deixado os presentes sob a árvore. Um primo mais velho me disse: “Cheguei até a ver a perna dele saindo pela janela”. Eu devia ter uns oito anos e achei estranho; afinal, era só ter ficado ali que com certeza o veríamos, já que eu nunca tinha conhecido ninguém que não ganhasse presentes todo santo Natal. (Eu já estava acometido desta mania de descrença: antes de fazer 6 anos, na minha primeira viagem de avião, assim que ficamos acima das nuvens perguntei ao meu pai onde estavam os “anjinhos”. Não era ali que diziam que eles moravam?) De qualquer modo, afora as comidas saborosamente calóricas, quase sempre o presente fazia a dita magia da noite. Digo “quase sempre” porque uma vez pedi um Piloto Campeão e ganhei uma Motocleta. Inconformado, reclamei: “Que Papai Noel burro!” Mas a Motocleta, espécie de triciclo evoluído, me divertiu muito mais ao descer a rampa do abacateiro na chácara que tínhamos.

Ver o sorriso de filhos e sobrinhos é boa maneira de encerrar o ano, como o fecho de capítulo de um livro que ainda não terminou, e mesmo que não chegue a redimir o capítulo ruim. Perdi minha mãe e, apesar das falas pseudo consoladoras do tipo “É a vida” (não, é a morte mesmo) e “Tudo vai ficar bem” (defina “bem”), a dor ganha intervalos, mas a ausência fica. Tive também uma decepção pessoal, que abalou minha confiança, me tirou alguns quilos, me fez ver de novo como nossos melhores esforços podem ser os mais injustiçados, como a ingenuidade é amiga da vaidade, como a efusão brasileira pode ocultar inveja ou egoísmo. Também não fico feliz ao pensar que para tantas pessoas uma experiência insubstituível como ter filhos pode ser vista como algo que “atrapalha” ou, pior, que justifica manter relacionamentos frios ou frustrantes, em vez de renová-los. Mas terminei meu capítulo com páginas encorajadoras, confiante não apenas em ter superado a fase crítica, mas também em não ter deixado o desencantamento tomar conta. Aí está, se me permitem o toque natalino: não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
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* Jornalista. Escritor. Tradutor. último post.
OBs.:Daniel Pisa 41 anos, vítima de AVC, colunista do 'Estado' e autor de 17 livros estava em Minas com a família.
Fonte: Estadão on line, 31/12/2011

Réveilon

Inês Pedrosa*

Chega de cismar em milagres, homem. Milagre bastante é estarmos nós ainda sobre a terra, não entendes?
Elvira estava cheia das ladainhas do marido. Agora o velho dera em enumerar milagres como quem faz contas de mercearia; tornara-se tão beato que Elvira sentia um rasto de incenso quando se aproximava dele. Na cama, a beatice esfumava-se-lhe num instante - valia-lhe isso. Mas tinha saudades do cheiro a tabaco e vinho carrascão que se desprendia de Pedro quando o conhecera - um cheiro másculo que lhe excitava aquela parte da alma que caminha mais encostada à pele. Elvira duvidava que houvesse outra: uma alma desligada dos apetites carnais, flutuando pela tralha interior de cada um como um anjo cumpridor e controleiro. A alma é uma coisa suja de sangue e memórias, uma coisa que a idade torna cada vez mais pesada, como o estômago ou as pernas. Tomara afeição a Pedro por lhe parecer mais livre do que todos ali da aldeia, quando ainda havia aldeia e ela voltara da cidade, desenganada. O grande predador local deixara-se conquistar por ela, que se considerava uma artista falhada da sedução.
- Estuda, menina, estuda bastante para arranjares um bom casamento - nunca esquecera estas palavras da mãe, tremidas, no abraço em que a despachara para casa da tia, lá longe, na cidade. Ganhara amor aos estudos, aos livros onde os sonhos adquiriam a espessura dos corpos e depois a um Miguel que estudara música e tocava violino numa orquestra. Entregara-se-lhe tanto que empreendera em escrever versos e ficara quase bonita, com os olhos acesos e a pele macia como se tivesse sido criada entre cremes e sedas. Aprendera a sublinhar a negro os olhos para o puxar para dentro do incêndio da sua paixão. Ele dizia-lhe que encontrara nela a sua alma gémea, e Elvira caíra nessa fé. Porém, na véspera da passagem de ano, confessara-lhe que não podia festejar com ela porque já era casado e tinha um filho. Elvira estava nua e transpirada nos braços dele, numa casa que pensava dele e afinal era emprestada por um amigo. Enquanto procurava a roupa, de cócoras, no chão, jurou que nunca mais passaria por uma humilhação semelhante. Deambulou até ao nascer do sol pelas ruas desertas da cidade, embriagando-se de prédios e progressos inacessíveis, e regressou à aldeia nesse mesmo dia.
O amor não lhe passou tão depressa quanto a fúria: agarrava-se àquela melodia da alma gémea que lhe dedilhava o sexo como uma orquestra fantasma. Serviu-se do prazer que Miguel lhe revelara para a alfabetização erótica de Pedro, que era nula. Pedro casara com Elvira em estado de virgindade quanto ao desejo feminino: nunca sequer lhe ocorrera que tal matéria existisse, menos ainda que pudesse ampliar de um modo tão concreto as delícias do sexo. A princípio assustou-se: perguntava a si mesmo como podia ter uma só mulher a capacidade de lhe apresentar tão variadas versões do paraíso. Mal lhe virava as costas desatava a sofrer e tinha ganas de a amaldiçoar por esse feitiço. Todas as outras lhe pareciam de repente esboços imperfeitos de Elvira, a ponto de perder a vontade de as subjugar. Olhava para a vizinha Ana Maria e, mais do que vergonha do acto praticado, tinha medo de que um dia ela o confidenciasse a Elvira. Apavorava-o que o abandonasse, não concebia a existência sem os dedos letrados da mulher. Feito de loucura este pensamento; Elvira não se atreveria a enciumar-se por casos do passado - não chegara ela a namoriscar Políbio? Mas o coração é pouco dado a lógicas. Acresce que Pedro se habituara a racionar o pensamento na mesma medida em que gastava o corpo. O deslumbramento por Elvira virara-o do avesso, e levaria a vida inteira a acostumar-se, sem sossego, a essa revolução. Por isso não queria mesmo pôr os pés na casa do precipício: temia que Elvira farejasse o triste pecado que ali cometera. Da intuição de Políbio não havia que cuidar porque nunca chegara a nascer. Homem que é homem não desconfia do amigo, nem encosta o nariz no peito do outro à procura de briga.
"...um cheiro másculo que lhe excitava
aquela parte da alma que caminha
mais encostada à pele."
Elvira sorria diante do resmonear de Pedro contra a casa do precipício. Estava certa de que havia uma história mal resolvida entre ele e Ana Maria - via-se-lhes nos olhos, a um e a outro. Uma história que os embaraçava; nunca passavam dos bons-dias, mal trocavam palavras. Preferia não fazer perguntas; evitaria assim que lhas fizessem, porque as perguntas são contagiosas. Parecia-lhe infantil a superstição de que a passagem de ano naquela casa funcionaria como um desafio a deus e aos milagres que dele haviam recebido. Para ela todas as passagens de ano eram tristes. Tentara apagar a recordação do fim do seu namoro com Miguel procurando-o, uma vez que ele viera tocar na cidade próxima. Dessa noite de suposta redenção resultara uma gravidez muito mal desfeita, que a conduzira às portas da morte. Elvira sabia que a sua sobrevivência se devia à pureza da raiva e não à ternura oratória de Pedro. Decidira, simplesmente, que não podia permitir que um homem que nunca lhe dera nada a matasse.
Ao longo dos anos reformulou esta apreciação; devia a Miguel o conhecimento do prazer, a consciência das possibilidades do seu corpo de mulher. Em algumas ocasiões lograra mesmo encontrar Miguel no corpo de Pedro: para isso serviam os livros e a imaginação que através deles se desenvolvia. No dia a dia, enervava-a a distância insuperável entre um e outro; peguilhava com Pedro por insignificâncias, invejosa do excesso de felicidade do marido. Pedro aceitava com bonomia esses saltos de humor, isolado no aquário luminoso da sua própria paixão. Alquebrado pela velhice, continuava a desejá-la, e os limites do corpo ateavam-lhe a criatividade. Amava cada uma das pregas e rugas do corpo da mulher, percorria-lhe com dedos vagarosos cada curva e recanto, lavava-a com a língua até a deixar brilhante como uma pedra preciosa. Quando finalmente entrava nela sentia-se um jovem com asas, um anjo lúbrico em êxtase celestial. Uma boa passagem de ano seria essa: meter-se dentro da sua casa, a mulher amada. Era culpa sua que os outros velhos precisassem de companhia? Era culpa sua que o milagre do amor não lhes tivesse batido à porta? Tudo o que lhe fazia falta estava ali. Ao contrário dos velhos do precipício, que se lamuriavam por não terem tido filhos nem disporem agora de netos que lhes alegrassem as festas, Pedro alegrava-se por não ter que dividir Elvira com mais ninguém. Filhos e netos eram ralações e despesas; na hora da decadência empacotavam a velharia em lares e escabichavam-lhe os haveres sem sequer aguardarem pela hora da morte. Pedro tinha uma caçadeira, não tanto para se defender dos ladrões, que nenhum se afoitaria a ir tão longe por tão pouco, mas para garantir que morreria assim que Elvira se finasse, caso deus ousasse a grosseria de a levar primeiro. Pedira à mulher que lhe fizesse gentileza idêntica se a morte o escolhesse antes. Elvira argumentara com a zanga de deus contra os que lhe roubam o poder.
- Não te apoquentes, mulher, deus distingue os que se matam contra ele dos que se deixam morrer de amor. O próprio filho dele se deixou matar para nos salvar.
Elvira pensou que dera demasiado lastro à curiosidade do marido sobre os livros. Era um pensamento que lhe acudia muito: para que se metera a ensinar a pensar um homem que passava tão bem sem isso? A vaidade não era boa conselheira, não. Pusera-lhe ideias na cabeça, e acabava a ter de se defender de prometer matar-se. Disse-lhe que ele baralhava tudo, e então o que havia de ser das galinhas, dos porcos, dos gatos e dos cães - e Pedro tornava que os vizinhos tomariam conta da bicharada, ele é que não podia entrar no céu sem a levar pela mão.
- Falamos disso mais tarde. Nenhum de nós está para morrer hoje - era a resposta dela, pronta a mudar de assunto.
Nisto ia o penúltimo dia de Dezembro adiantado, Políbio e Ana Maria polindo e brunindo e desempoeirando a louça melhor para a despedida do ano. Pedro veio à porta, olhou para o céu e anunciou trovoada.
- Oxalá venha forte, para que nem eles cá nos apareçam com a ceia, à última da hora.
Elvira retorquiu-lhe de dentro que não fosse mau nem agoirento, mas a frase foi engolida pelo estrondo do trovão. O céu desmoronou-se em água grossa açoitada pelo vendaval. O mundo transformou-se num animal uivante. Elvira e Pedro trancaram as portas e as portadas das janelas, e Pedro ajoelhou-se a rezar diante do Senhor do coração em chamas, enquanto Elvira se metia debaixo dos cobertores da cama, de olhos fechados para não ver os clarões dos raios, a pedir a Deus que não os levasse aos dois naquele dia.
"Não têm pressa de chegar à próxima
passagem de ano. Os dias não lhes custam a passar;
nenhum é igual ao outro."
O volume dos estrondos crescia, juntando-se ao barulho da chuva nas telhas e da água arrastando madeiras e pedras em torno da casa. E gritos - sim, gritos de socorro, entrecortados pelo som arrepiante da natureza descontrolada. O casal enfiou as suas capas de chuva, em silêncio uníssono, e saiu para a rua. Vislumbraram um par de vultos no meio da névoa gerada pelo dilúvio - Políbio e Ana Maria, molhados até aos ossos, sem capas nem casacos, desorbitados de pavor. Políbio gaguejava:
- A nossa casa. Uma desgraça. Acudam-nos.
A casa fora tragada pelo precipício. Um empurrão impiedoso de deus. Só haviam tido tempo de correr para a rua, no instante em que sentiram que as paredes se desconjuntavam e o chão lhes deslizava debaixo dos pés. Parecia bruxedo, diria mais tarde Ana Maria, vestida com uma roupa de Elvira, com os olhos desorbitados pousados nos olhos de Pedro. Ou maldição.
- E agora, o que vai ser de nós? - perguntava Ana Maria.
- Ficam conosco. - respondeu Elvira. - Temos um quarto de arrumos. E que não tivéssemos. Amanhamos aí um colchão e amanhã vamos à vila comprar uma cama.
Pedro botou a canja no lume e começou a cortar pão e chouriço. Depois da janta a chuva amainou. Os homens foram ao celeiro e trouxeram um saco de feno com o qual compuseram um colchão. As mulheres começaram a avinhar as carnes e a preparar as louças para a noite de ano-novo.
Nas casas antigas do monte apenas uma tem gente - a casa da ponta da igreja, onde moram dois casais mais velhos do que o próprio tempo, rodeados por cães, gatos, porcos, galinhas e coelhos. Arrufam-se, resmungam, gemem quando têm de se curvar sobre a terra e arrastam os pés. Não têm pressa de chegar à próxima passagem de ano. Os dias não lhes custam a passar; nenhum é igual ao outro.
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* A AUTORA
Nome: Inês Pedrosa
Idade: 49 anos
Origem: Coimbra,Portugal
Principais obras:A Eternidade e o Desejo (Alfaguara, 2008), Os Íntimos (Alfaguara, 2010) e Nas Tuas Mãos(Alfaguara, 2011)
A ILUSTRADORA

Nome: Catarina Bessell
Idade: 27 anos
Origem: São Paulo (SP)
Principal obra: Ilustrações do Olhar Estrangeiro (Trabalho apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP)
FONTE: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,reveilon-parte-4,-31/12/2011

Entrevistas 2011/2012 Christopher Hitchens (1949-2011), Jornalista



Imagem da Internet
Meu inimigo é o absoluto,
aquele que quer o controle da sua mente

Em sua última entrevista, Hitchens debate com Richard Dawkins
temas que ocuparam sua trajetória, como a relação
entre igreja e estado, o ensino da religião e
os riscos do totalitarismo

Da “New statesman”

Como estudioso de George Orwell, você deve ter uma visão particular da Coreia do Norte, de Josef Stálin e da União Soviética e se irritar com o refrão constante: "Stálin foi um ateu".
Não sabemos se foi. Hitler, com certeza, não foi. De qualquer modo, o ateísmo não supõe nenhuma espécie particular de posição política.

As pessoas que fizeram o trabalho sujo de Hitler foram quase todas religiosas.
Lamento dizer que a relação da SS com a Igreja Católica é algo que a igreja ainda precisa enfrentar.
Se você está escrevendo sobre a história dos anos 1930 e a ascensão do totalitarismo, pode, se quiser, tirar a palavra "fascista" em relação à Itália, Portugal, Espanha, Tchecoslováquia e Áustria e substituí-la por "partido católico de extrema direita".
Quase todos os regimes foram instalados com a ajuda do Vaticano. Isso não é negado. Em muitos casos os entendimentos com a Santa Sé persistiram após o fim da Segunda Guerra e se estenderam a regimes comparáveis na Argentina e outros países.

Mas houve sacerdotes que fizeram coisas boas.
Não muitos, ou saberíamos seus nomes. Do mesmo modo como os nazistas pensavam ser uma raça separada, queriam sua religião própria.
Eles desencavaram os deuses nórdicos, mitos e lendas extraordinários de todo tipo saídos das sagas antigas. Queriam controlar as igrejas. Estavam dispostos a fechar um acordo com elas.
A Igreja concordou em dissolver seu partido político, e Hitler ganhou o controle da educação alemã; foi um ótimo acordo. As comemorações do aniversário dele eram ordenadas desde o púlpito.
Não há dúvida, os nazistas queriam o controle -e estavam dispostos a entrar em choque com as igrejas para conseguir isso.
As pessoas juravam por Deus que jamais desrespeitariam o juramento feito ao Führer. Isso não é nem secular, o que dirá ateu.

Agradecia-se a Hitler nas orações antes das refeições.
Creio que sim.
Você mencionou a Coreia do Norte. Ela é um Estado teocrático, em todos os sentidos. É quase sobrenatural, na medida em que os nascimentos na família (governista) Kim são vistos como sendo misteriosos e acompanhados por acontecimentos fora do comum. É uma "necrocracia" ou uma "mausoleucracia", mas não seria possível dizer que seja um Estado secular, o que dirá um Estado ateu.
As tentativas de fundar religiões novas deveriam atrair nosso desdém, tanto quanto o atraem as alianças com as religiões velhas.
Tudo o que se afirma é que não é possível dizer Hitler tenha sido nitidamente cristão: "Talvez, se ele tivesse continuado, teria se descristianizado um pouco mais". Isso é tudo baboseira absoluta. É falho como história e é falho como propaganda política.

E é falho como lógica, porque não existe conexão entre ateísmo e atos hediondos; por outro lado, essa ligação pode facilmente ser traçada no caso da religião, como vemos com o islã moderno.
Na medida em que a adoração a Stálin e o "Kim Il-sungismo" são novas religiões, nós, como todos os ateus, as repudiamos absolutamente.

Acusam você de ser do contra, que é uma descrição que vocês mesmo já fez de si.
Na realidade, não fiz. Eu a rejeitei. Mas a penduraram em meu pescoço e não tenho como me livrar dela.

Sempre desconfiei da dimensão política esquerda-direita.
Para mim ela já se rompeu.

Mas é espantoso como o contínuo esquerda-direita ainda exerce influência. Se você sabe o que alguém pensa sobre a pena de morte ou o aborto, sabe o que ela pensa sobre tudo. Você é uma exceção à regra.
Tenho uma coerência, que é ser contra o totalitário -o de esquerda e o de direita. O totalitário é o inimigo: aquele que é absoluto, que quer o controle do que acontece na sua cabeça, não apenas sobre suas ações e os impostos que você paga. E as origens disso são teocráticas, obviamente.
O começo disso é a ideia de que existe um líder supremo, ou papa infalível, ou rabino-chefe capaz de receber e expressar o pensamento divino e então nos dizer o que fazer.
Há formas seculares disso, com gurus e ditadores; essencialmente, é a mesma coisa.
Alguns pensadores -acima de todos, Orwell - compreenderam que, infelizmente, os humanos possuem uma forte tendência inata a adorarem, a se tornarem abjetos.
Portanto não estamos apenas combatendo ditadores. Estamos criticando os outros humanos por tentarem usar atalhos, simplificar suas vidas, rendendo-se e dizendo: "Se você me oferecer a felicidade suprema, é claro que abrirei mão de parte de minha liberdade mental em troca disso". Afirmamos que essa é uma barganha falsa: você não receberá nada, tolo.

"Madre Teresa acreditava que não
se devia dar às mulheres o controle
sobre o ciclo reprodutivo. Ela passou a vida militando
 para que a única cura da pobreza
que sabemos confiável não fosse implementada"
A parte de você que foi, ou é, da esquerda radical sempre é contra ditadores totalitários.
Sim. Fui trotskista; para nós, o movimento socialista só poderia ser reavivado se fosse purgado do stalinismo. Considerávamos o stalinismo uma teocracia.

Uma das minhas principais queixas quanto à religião é o modo como rotulam uma criança como "católica" ou "muçulmana". De tanto reclamar disso, estou até chato.
Nunca tenha medo de ser acusado de chato, ou de excessivamente rigoroso. Não há mal no excesso de rigor. O rigor é o mínimo que você deve em pregar como arma. Se você continuar a insistir em algo, o pior que podem dizer é que você é tedioso.

Hoje mesmo recebi um texto de conselhos, de um site do governo britânico, intitulado "As Responsabilidades dos Pais" ou algo assim. Uma das responsabilidades era "determinar a religião do filho". Literalmente, determinar. Mas quando me queixo a esse respeito me dizem que ninguém rotula as crianças.
O governo, sim. A meu ver, isso vem de uma política imperial britânica, que, por sua vez, veio de impérios otomanos e anteriores: você classifica seus novos súditos segundo a fé deles.
Você pode ser um cidadão otomano, mas é um cidadão otomano judeu ou cristão armênio. E algumas dessas religiões dizem às crianças que as crianças de outras religiões vão para o inferno. Acho que não podemos proibir isso, nem podemos descrevê-lo como "discurso de ódio" -embora eu tenha minhas dúvidas-mas deveria causar alguma desaprovação.

Eu chamaria isso é abuso infantil mental.
Como libertário, não tenho como dizer que as pessoas não deveriam educar seus filhos segundo seus direitos, por exemplo. Mas a criança possui direitos, e a sociedade, também. Não permitimos a mutilação genital feminina, e acho que não deveríamos tolerar a masculina.
Mas seria muito difícil afirmar que você não tem o direito de dizer a seu filho que ele tem sorte e que ingressou para a única fé verdadeira. Não vejo como deter isso. Acho apenas que o resto da sociedade deveria olhar para isso com um pouco de desaprovação, coisa que não acontece.

Há uma tendência entre liberais de achar que a religião deveria estar fora de discussão.
Ou até mesmo de achar que existe um racismo antirreligioso, algo que, a meu ver, é uma limitação terrível.

Você acha que os EUA correm o risco de virar uma teocracia?
Não. As pessoas em quem pensamos quando falamos disso -os evangélicos protestantes extremos, que querem realmente uma América comandada por Deus e acreditam que ela foi fundada segundo princípios fundamentalistas protestantes- talvez sejam a ameaça mais superestimada no país.

Que bom.
Eles já foram derrotados em toda parte. Por que isso?
Na década de 1920, tiveram uma sequência de vitórias. Proibiram a venda, manufatura, distribuição e consumo de álcool. Incluíram isso na Constituição. Mais ou menos conseguiram proibir a imigração vinda de países de maioria não branca, não protestante. Eles nunca se recuperaram dessas vitórias.
Nunca se recuperarão do fracasso da Lei Seca. Ou do julgamento Scopes [de 1925, envolvendo o ensino da teoria da evolução nas escolas]. Cada vez que tentaram introduzir o ensino do criacionismo, os conselhos de ensino, pais ou tribunais derrotaram as tentativas, e na maioria dos casos graças ao trabalho de pessoas como você, que mostraram que é bobagem.

Isso é muito animador.
O que me preocupa um pouco mais é a natureza reacionária e extrema do papado neste momento. Por outro lado, parece que o papa não consegue muita fidelidade junto à congregação americana, que desobedece à Igreja abertamente com relação aos anticoncepcionais, o divórcio, o casamento gay, em grau extraordinário e que eu não teria previsto.
Ela está até mesmo se mantendo firme com relação ao aborto, que, em minha opinião, é uma questão moral muito forte e não deveria ser decidida levianamente.
A única ameaça religiosa real nos EUA é a mesma que, lamento dizer, existe em muitos outros países: uma ameaça externa. É o jihadismo, parcialmente cultivado no próprio país; mas em parte o jihadismo americano é fraco e se desacredita sozinho.

Chega a preocupar você a ideia de que, se vencermos e destruirmos o cristianismo, por assim dizer, o vazio poderia ser preenchido pelo islã?
Não. É engraçado, mas não me preocupo com a possibilidade de vencermos. O único que podemos fazer é nos assegurarmos de que as pessoas saibam que existe uma alternativa muito mais maravilhosa, interessante e bela. Não, não acredito que a Europa se encheria de muçulmanos à medida que se esvaziasse de cristãos. O cristianismo derrotou a si mesmo na medida em que se tornou uma coisa cultural. Não há realmente cristãos crentes, como havia gerações atrás.

Na Europa isso é verdade, certamente. Mas e nos EUA?
Acho que há uma tendência que vem de longa data, no mundo desenvolvido e em grandes áreas fora dele, de as pessoas enxergarem as virtudes da separação entre igreja e Estado, porque já experimentaram a alternativa.
A cada vez que algo como uma jihad ou movimento de sharia tomou conta de qualquer país -é verdade que isso só foi possível em casos muito primitivos-, o país é uma ruína ainda em brasa, com produtividade zero.

Analisando a religiosidade nos países do mundo e nos diferentes Estados dos EUA, constata-se que a religiosidade tende a estar correlacionada à pobreza e a vários outros índices de carência social.
Sim, é também disso que ela se alimenta. Mas não quero ser condescendente em relação a isso. Conheço muitas pessoas altamente instruídas, muito prósperas e muito reflexivas que creem. Não é inédito que pessoas tenham a ilusão de serem Deus ou o Filho sagrado. É uma ilusão comum, mas, novamente, acho que não precisamos condescender.
Rick Perry [pré-candidato republicano à Presidência dos EUA] declarou certa vez: "Não apenas creio que Jesus seja meu salvador pessoal, como creio que os que não acreditam nele vão para o castigo eterno". Ele foi contestado em relação a essa última parte e respondeu: "Não tenho o direito de modificar a doutrina. Não posso dizer que ela vale para mim, e não para outros."

Frequentemente me perguntam por que os EUA, uma nação de base secular, é tão mais religiosa que países europeus ocidentais que têm uma religião oficial, como os da Escandinávia ou o Reino Unido.
[Alexis] de Tocqueville acertou na mosca. Se você quer uma igreja nos EUA, tem de erguê-la com o suor de sua fronte, e muitos já o fizeram. É por isso que são tão ligados a elas. Os judeus -mas não todos-, surpreendentemente, abandonaram sua religião pouco tempo depois de chegar do Leste Europeu.

"Hoje a coisa ficou tão insípida em partes
dos EUA que muitas crianças são criadas
sem conhecimento de qualquer religião.
 Os pais deixam esse conhecimento
a cargo das escolas, e as escolas têm medo
de mexer com isso"

Então a maioria dos judeus abandonou sua religião?
Nos Estados Unidos, cada vez mais. Quando as pessoas vieram para escapar da perseguição religiosa e não quiseram reproduzir a perseguição, essa era uma memória muito forte.
Os judeus se secularizaram muito rapidamente quando vieram. Os judeus americanos, como coletivo, devem constituir a força mais secular do planeta, hoje. Isto é, se considerarmos que formam um coletivo, o que não parece ser realmente o caso.

Embora não sejam religiosos, muitas vezes ainda observam o shabat e esse tipo de coisa.
Isso só pode ser algo cultural. Eu celebro o Pessach todo ano. Às vezes até faço um seder [jantar em comemoração à páscoa judaica], porque quero que minha filha saiba que vem de outra tradição, de modo muito distante.
Se ela encontrasse seu bisavô, isso explicaria, porque ele fala iídiche. É cultural, mas o seder do Pessach é também o fórum socrático. É dialético. É acompanhado por vinho. Tem todos os elementos de uma discussão muito boa. E há o destino manifesto.
As pessoas sentem que os EUA são um lugar de sorte. É um país que fica entre dois oceanos, repleto de minerais, de beleza, de riqueza. Para muitas pessoas, realmente parece providencial.

A terra prometida.
Tudo isso e mais o desejo de outro jardim do Éden. Alguns utópicos seculares vieram para cá com a mesma ideia. Thomas Paine e outros todos pensaram na América como o maravilhoso recomeço para a espécie.

"Me preocupa um pouco a natureza reacionária
e extrema do papado neste momento.
Por outro lado, a congregação americana
desobedece a Igreja com relação a anticoncepcionais,
ao divórcio e ao casamento gay,
em grau extraordinário"
Mas isso tudo foi secular.
Muito foi, mas é impossível fugir da liturgia: ela é poderosa demais. Você acaba dizendo coisas como "terra prometida", e isso pode ser usado para fins sinistros.
Mas, em muitos casos, é uma crença benigna. Trata-se só de dizer: "Devemos compartilhar nossa boa sorte". A razão pela qual a maioria de meus amigos não é crente não tem a ver especialmente com terem participado de discussões como as que você e eu temos tido, mas com o fato de que a religião obrigatória na escola os tornou indiferentes à religião.

Ficaram entediados.
Ficaram fartos. Eles pegavam da religião, de vez em quando, aquilo de que precisavam: se precisassem se casar, sabiam aonde ir. É claro que alguns deles são religiosos, outros gostam da música, mas, de modo geral, os britânicos são benignamente indiferentes à religião.

E o fato de haver uma igreja estabelecida aumenta esse efeito. As igrejas não deveriam ser isentas de impostos, como são. Não automaticamente, de todo modo.
Com certeza, não deveriam. Se a Igreja pede que seja dado tempo igual a especulações criacionistas ou pseudocriacionistas... Qualquer igreja que ensina isso em sua escola e recebe dinheiro federal da iniciativa religiosa deveria, por lei, também ensinar o darwinismo e conhecimentos alternativos, para que se ensine o debate. Acho que elas não querem isso.

A religião comparativa seria uma das melhores armas, desconfio.
Hoje a coisa ficou tão insípida em partes dos Estados Unidos que muitas crianças crescem sem qualquer conhecimento de qualquer religião de qualquer tipo. Isso porque seus pais não lhes transmitem esse conhecimento; eles deixam a cargo das escolas, e as escolas têm medo de mexer com isso. Eu gostaria que as crianças soubessem de que trata a religião, senão algum guru ou alguma seita pode fazer a cabeça delas.
"...mas, de modo geral, os britânicos
são benignamente indiferentes
 à religião."
Elas são vulneráveis. Eu também gostaria que elas conhecessem a Bíblia, por razões literárias.
Precisamente. Uma parte enorme da literatura inglesa seria de difícil compreensão se as pessoas não conhecessem a Bíblia.

Você teria algo a dizer sobre o Natal?
Sim. Não poderia deixar de haver um feriado no solstício do inverno. A religião dominante não poderia deixar de tomar conta dessa festa, e isso teria acontecido mesmo sem Charles Dickens e todos os outros.

A árvore de Natal vem do príncipe Albert [consorte da rainha Vitória da Inglaterra]; os pastores e os três reis magos são todos invenções.
Cirênio não era governador da Síria, tudo isso. Cada vez mais, o Natal vem se secularizando. E essa mania de desejar "boas festas" é algo de que também não gosto.

É horrível, não? "Boas festas"
Prefiro nossas frases sobre o cosmos.


Raio-X Hitchens


NASCIMENTO
13/4/1949, Portsmouth (Inglaterra)

MORTE
15/12/2010, Houston (EUA)

FORMAÇÃO
Jornalista e crítico literário

ATUAÇÃO
Defensor do ateísmo, ficou conhecido por sua admiração por George Orwell e Thomas Jefferson, e por ataques a Bill Clinton, Henry Kissinger e Madre Teresa de Calcutá

PRINCIPAIS OBRAS
"O Julgamento de Kissinger" (2001)
"Cartas a um Jovem Contestador" (2001)
"A Vitória de George Orwell" (2002)
"Amor, Pobreza e Guerra" (2004)
"Os Direitos do Homem de Thomas Payne" (2006)
"Deus Não É Grande" (2007)
"Hitch-22" (2010)

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Tradução de CLARA ALLAIN
Fonte: Folha on line, 31/12/2011

Felicidade: “Essa procura virou obsessão”

O historiador Georges Minois dedica boa parte de sua atividade intelectual a tentativas de responder uma das mais etéreas questões: qual é o sentido da vida? Depois de livros investigando a melancolia, o riso, o suicídio e a depressão, entre outras manifestações do comportamento humano, o francês se lançou ao desafio de mapear como a humanidade procurou, ao longo dos tempos, o mais pleno e almejado estado de bem-estar. Em A Idade de Ouro História da Busca da Felicidade, que acaba de ser lançado no Brasil, Minois observa povos e épocas desde a Antiguidade.
– Sempre fiquei intrigado com a obsessão pela felicidade que se vê hoje em dia. Exige-se uma postura otimista quase compulsória em todas as esferas da vida, apesar das características obscuras e alarmantes do mundo moderno – afirma o autor.
Professor aposentado, Minois, aos 65 anos, vive na Bretanha, no noroeste da França, e se define como um “pessimista feliz”. Diz que procura não a felicidade, mas a verdade, e se diverte ao situar sua trajetória no tempo.
– Pertenço a uma geração de sorte: nasci logo após a guerra, cresci durante o boom da economia e vou morrer antes de as coisas ficarem realmente ruins.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por e-mail.

Donna – O conceito de felicidade é amplo e variável, por isso o senhor decidiu pesquisar a busca da felicidade. O que mais o atraiu?
George Minois – Um dos aspectos mais impressionantes sobre a noção de felicidade é que as pessoas falam sobre isso como se fosse realmente um conceito claro e evidente, mesmo que cada um tenha uma opinião diferente. É o que acontece com a maioria dos nossos entendimentos mais comuns: eles são tão triviais que nem questionamos seu significado. O que é a felicidade? Não há resposta para essa pergunta, considerando-se que todos têm uma visão distinta. Essa é a razão pela qual não se pode escrever a história da felicidade, mesmo que assumamos que ela exista, o que não está claro. Podemos estudar somente como as pessoas tentam alcançar esse estado ilusório, escrevendo a história da busca pela felicidade.

Donna – O senhor diz que a palavra felicidade perdeu o sentido.
Minois – O termo perdeu a força a partir do momento em que passou a ser considerado como o estado “normal” das coisas. No passado, filósofos e teólogos estabeleceram uma concepção muito elitista para a palavra. Felicidade era um estado de perfeição que apenas poucos sábios poderiam alcançar durante uma vida inteira de meditação e estudo. Na Idade Média, a felicidade chegou a ser considerada algo inatingível neste plano. A partir do Iluminismo, decidiu-se que todos teriam o direito a uma parcela de felicidade na vida – é um direito natural dos seres humanos, de acordo com o que pregavam inúmeras constituições democráticas. Desde então, ser feliz tem sido a grande preocupação das pessoas, ao ponto de ter virado quase uma tarefa. Quando algo se torna tão disseminado, perde a força.

"Não acredito na felicidade.
Desisti de procurá-la. E provavelmente esse seja
o motivo pelo qual eu não sinta a sua falta.
Não sofremos por não possuir
um conhecimento universal
porque sabemos que
não é possível alcançá-lo."

Donna – O senhor faz bastante referência à chamada “Idade de Ouro”. Como surgiu essa ideia?
Minois – Nos primórdios da cultura ocidental, na Grécia antiga, alguns intelectuais, confrontados com o estado miserável da população, arrasada por guerras, inanição e doenças, tentaram explicar a origem da maldade. Um deles, Hesíodo, no século 3 a.C., criou o mito da Idade de Ouro. Ele imaginou que, no princípio do mundo, houvera um período de abundância: todos eram jovens e saudáveis, não sofriam, não precisavam trabalhar. Foi uma época de pura e perfeita felicidade. Depois as coisas começaram a se deteriorar, e agora estamos na idade do ferro. Enfrenta-se todo tipo de mal, e a vida termina numa velhice dolorosa. O sonho que envolve a ideia de felicidade é um sonho que restaura a idílica Idade de Ouro. A Bíblia apresenta um mito semelhante, a história de um paraíso terrestre. E a felicidade é perdida para sempre.

Donna – Que povos e períodos mais chamaram a sua atenção?
Minois – A busca pela felicidade impulsionou muitas teorias sobre o estilo de vida ideal. Entre as mais influentes, podemos citar a do filósofo grego Epicuro. No século 3 a.C., ele disse que era preciso evitar a dor e procurar o prazer para ser feliz. Parece muito óbvio, mas, para que se atinja esse objetivo, ele diz que é necessário levar uma vida muito disciplinada. Essa concepção austera foi totalmente deformada e difamada pelos cristãos, que representavam os epicuristas como porcos cujo único objetivo de vida era festejar e se afundar na libertinagem. Horácio também é famoso pela recomendação “carpe diem” (aproveite o dia). Depois das ideias sombrias da Idade Média, a Renascença reabilitou o conceito de felicidade com Montaigne. O autor francês pregava a moderação em tudo, o que permitiria alcançar um estado razoável de felicidade. E então os filósofos do Iluminismo colocaram a felicidade no centro das discussões, o que acabou culminando com a inclusão, na declaração de independência dos Estados Unidos, da “busca pela felicidade” como um direito inalienável do cidadão.

Donna – Seu livro alega que não se pode dizer quando e onde as pessoas parecem ter sido mais ou menos felizes ao longo da história da humanidade. Mesmo assim, se tivesse de arriscar um palpite, o que senhor diria?
Minois – Essa pergunta é complicada. São tantas as variáveis que se deve considerar que se torna impossível decidir. Hoje, de acordo com pesquisas de opinião, os dinamarqueses são o povo mais feliz do mundo. Mas, repito, isso é totalmente questionável. Na minha opinião, arriscaria dizer que os atenienses, no século 5 a.C., foram os menos infelizes: tinham escravos, suas necessidades materiais eram limitadas, seus deuses eram benevolentes, eles desfrutavam de muita liberdade, tinham um bom nível cultural. Seu líder, Péricles, em um famoso discurso, explicou a seus súditos por que eles eram o povo mais feliz do planeta.

Donna – Quais são os grandes ideais de felicidade hoje e o que eles revelam sobre os valores do mundo ocidental?
Minois – Devido ao triunfo global do capitalismo liberal e ao colapso das ideologias, tudo gira em torno da noção de aproveitar ao máximo o “aqui e agora”: um bom poder de comprar em uma sociedade livre, com o mínimo possível de restrições, evitando-se qualquer reflexão sobre o sentido da vida. O que as pessoas mais desejam é conforto material e diversão. Acima de tudo, sem reflexão, porque refletir é depressivo. Todos os governos do mundo, e também o setor privado da economia, encorajam isso, guiando o mundo na direção de uma regressão cultural vergonhosa: compre, divirta-se e seja feliz. Mas, acima de tudo, não pense.
A IDADE DE OURO HISTÓRIA DA BUSCA DA FELICIDADE,
de Georges Minois Editora Unesp, 472 páginas, R$ 72




Donna – Nos acostumamos com lugares, posses, pessoas, situações. Quando isso acontece, perdemos a empolgação da novidade. Isso transforma a busca pela felicidade em uma corrida infindável?
Minois – Sem dúvida. Isso explica por que Sócrates, de acordo com Platão, acreditava que nós jamais alcançaríamos a felicidade. A felicidade, de acordo com ele, é o que sentimos ao satisfazer nossos desejos, o que significa que ambos, desejo e satisfação, devem coexistir. Um desejo sem satisfação é doloroso, mas a satisfação mata o desejo, colocando fim à felicidade. A busca pela felicidade é a busca eterna por uma ilusão.

Donna – E o senhor, como autor de um livro sobre felicidade, mesmo admitindo que uma descrição específica para isso não existe, como definiria essa palavra?
Minois – Sou um historiador, portanto meu trabalho é estudar como as pessoas enxergaram a felicidade e tentaram alcançá-la, desde a Antiguidade até os dias atuais. Descobri que, quanto mais falam sobre felicidade, menos felizes as pessoas são. Essa procura virou uma obsessão, ao mesmo tempo em que nunca existiram tantas pessoas deprimidas. Quanto mais deprimidas estão, mais as pessoas falam de felicidade. “Seja feliz!” é a ordem do dia. Você deve ser descolado, otimista, descontraído. Se não é nada disso, sente-se culpado, deve procurar um analista e tomar medicamentos. Felicidade a qualquer custo. Isso é uma bobagem. O mais claro sinal de felicidade é quando você não pensa mais nisso. É como o que se fala sobre o diabo: seu melhor truque é nos fazer acreditar que ele não existe (o que é verdade, a propósito). A felicidade está presente quando você pensa que ela não existe.

Donna – O que o faz feliz?
Minois – Não acredito na felicidade. Desisti de procurá-la. E provavelmente esse seja o motivo pelo qual eu não sinta a sua falta. Não sofremos por não possuir um conhecimento universal porque sabemos que não é possível alcançá-lo. O mesmo acontece com a felicidade. Tento ser realista e lúcido, o que significa que sou pessimista, mas valorizo, acima de tudo, a busca da verdade, não da felicidade. Pessimismo é realismo, e provavelmente o melhor modo de se contentar: o pessimista nunca se desaponta porque sempre espera o pior. Diria que sou um pessimista feliz.

Desejada plenitude
Larissa Roso

O consumismo voraz e a tentativa de recuperar valores simples, como mais tempo para si, estão inseridos no conceito de como a felicidade é entendida nos dias de hojePeça uma definição de felicidade e ganhará uma mão cheia de explicações. É daqueles conceitos que até podem se parecer no significado mais amplo a maioria das pessoas almeja as mesmas boas e prazerosas sensações proporcionadas por saúde, dinheiro, paz, amor, segurança , mas a individualidade dita as nuanças. Felicidade muda de lugar, cor, forma, intensidade.
A filósofa Marcia Tiburi acusa a chamada indústria cultural da felicidade, fortalecida incessantamente pela propaganda e pelos meios de comunicação, pelo esvaziamento de valores e práticas mais relevantes. Criou-se uma receita. Há padrões regrando a aparência, as posses, os hábitos. O comercial de margarina, exemplifica Marcia, oferta um contexto idílico – mais do que um produto específico, o anúncio está vendendo o modelo de uma vida feliz. Essa “felicidade industrial” diminui o espaço e a disposição para relações significativas e profundas.
– A felicidade industrial não tem espaço para o outro. Vivemos em uma cultura de ostentação, nosso maior valor é a aparência – afirma Marcia. – As pessoas ficam completamente incapazes de ver o que estão fazendo com suas vidas. É uma grande contradição do nosso tempo: elas compram esse ideal de felicidade, compram os objetos que são os meios para alcançar a felicidade, e ao mesmo tempo estão deprimidas, se matando, correndo para comprar um monte de remédios – acrescenta.
Edson de Sousa, psicanalista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vê uma mudança de prioridades. Até pouco tempo, a felicidade estava intimamente ligada ao sucesso profissional e a seus subprodutos, como a consequente possibilidade de usufruir de casa, carro, viagens, grifes. O consumismo voraz não cedeu, mas hoje está visível a tentativa de se recuperar valores mais singelos – e por vezes inacessíveis.

"A felicidade industrial não tem espaço para o outro.
Vivemos em uma cultura de ostentação,
nosso maior valor é a aparência – afirma Marcia. –
As pessoas ficam completamente incapazes
de ver o que estão fazendo com suas vidas.
 É uma grande contradição do nosso tempo:
elas compram esse ideal de felicidade,
compram os objetos que são
os meios para alcançar a felicidade,
e ao mesmo tempo estão deprimidas,
se matando, correndo para
comprar um monte de remédios – acrescenta"

No consultório, Sousa acolhe pacientes que lamentam não dispor de tempo, segurança, relações afetivas sólidas e tranquilidade em suas escolhas. Quem tem muito dinheiro acaba por invejar quem tem menos ou até bem pouco quando o peso do seu fardo de problemas não cede com cifras.
– É como se houvesse uma inversão. A pessoa que tem muitos bens e está aparentemente feliz é, às vezes, escrava de uma situação – avalia Sousa. – A felicidade está nas pequenas coisas, no cotidiano. Está em poder aceitar a sua finitude, poder aceitar que ser feliz não é ter tudo, não é não tropeçar, não cair, não sofrer. O sofrimento tem o seu valor, é uma maneira de te situar diante da vida. Não acredito na ideia de uma felicidade que pudesse ser o esvaziamento de qualquer angústia.
Em um mural publicado em Donna Online, uma centena de leitores respondeu à pergunta: “O que te faz feliz hoje?”. A microempresária Alba Feil, 51 anos, elaborou uma espécie de linha do tempo, fazendo uma retrospectiva dos desejos que experimentou:
– Quando tinha oito anos, felicidade, para mim, era a época de Natal, imaginar o Papai Noel e muitos presentes. Aos 16 anos, felicidade era encontrar o amor da minha vida, casar e ter filhos. Aos 30 anos, era ter minha casa própria, um bom carro e nenhuma conta para pagar. Aos 40 anos, era a minha aposentadoria, viajar e descansar. Quando cheguei aos 50 anos, percebi que adiamos a felicidade e, muitas vezes, nunca a encontramos. Hoje, ser feliz é viver o dia a dia, é ter meu trabalho, ter saúde, minha família, minha fé, meus amigos. Me aceitar e aceitar a vida como ela é, chorando algumas derrotas, mas vibrando muito com as conquistas, mesmo que sejam menores do que imaginei.
Ser feliz, conclui Alba, é uma opção.
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Reportagem por: Larissa Roso
Fonte: DONNA/ZH - 01/01/2012

Feliz 2012

Fernando Henrique Cardoso*
Natal e Ano-Novo são momentos que convidam à calma, às retrospectivas e aos devaneios sobre o futuro. Não será diferente nesta passagem de 2011 para 2012. Os pregadores de todas as religiões, os arautos das boas-novas, desde os políticos até os adivinhadores do futuro, vão insistir no “amai-vos uns aos outros”, síntese do que de mais generoso já foi proposto para a humanidade.
Noutro dia, em um casamento, ouvi o celebrante pregar com emoção o amor entre os noivos e as juras de fidelidade eterna. Pensei em silêncio: diante da vida, ele crerá nisso? Acho que sim e eu também. Cumpra-se ou não à risca o que está ditado como a boa norma, ela não deixa de ser o ponto de referência sem o qual a sociabilidade não tem no que se apoiar e a relação entre as pessoas dá-se com tal estranhamento, que torna o homem inimigo do homem. Pode até ser assim, mas como anomalia, rejeitada pela “boa sociedade”.
Esta construção mental – a boa sociedade – inspirada pela vontade e guiada por valores pode ser “utópica”, mas é condição para uma convivência civilizada. É por isso que, sem cinismo, proclamamos os votos de bom Ano-Novo. Razões para pessimismo há, de sobra. Mas por que não acreditar que as coisas podem melhorar?
Assistimos em 2011 aos Estados Unidos naufragarem na crise financeira e no desemprego. Mas há alvíssaras. Com todo o impasse no Congresso, com os caricatos candidatos do Partido Republicano se digladiando na ignorância, pouco a pouco parece que encontraram um candidato menos ridículo, ainda que “direitoso”, Gingrich. Obama, por seu lado, mais retórico do que eficaz, se equilibrou entre propostas generosas e dificuldades políticas para elas serem aceitas. Cedeu, mas não capitulou. Deixou que o Fed inundasse os mercados de dólares, não tocou nos banqueiros, viu seu prestígio ir ladeira abaixo pela dificuldade em barrar o desemprego crescente, mas parece que capeou o temporal. Torçamos para que as coisas se ajeitem e para que o ônus da tragédia dos “mercados irracionalmente exuberantes” não recaia apenas no povo mais pobre.

"Tenha coragem, senhora presidente,
e trate de se livrar do entulho herdado,
uma teia de corrupções,
clientelismos e conivências."

A Europa, meu Deus, quase se desmilinguiu. O maior avanço civilizatório posterior à hecatombe da II Grande Guerra, a Europa dos 17 ou dos 27 esteve à beira de se desfazer e ainda é possível que surja algum problema pela frente. O euro, símbolo da vontade de unidade europeia, foi duramente golpea- do. Os construtores da União Europeia e do Banco Central Europeu acreditaram que um tratado prévio, assinado na cidade de Maastrich em 2002, fosse capaz de ordenar os orçamentos de Estados soberanos. Lá estava estipulado que país algum poderia se endividar acima de 3% do Produto Nacional. Pobre engano: Alemanha e França, hoje heraldos da ortodoxia, foram os primeiros países a desobedecer. Como a União Europeia construiu-se a partir do princípio de solidariedade, os países ricos transferiram recursos aos mais pobres. Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda abriram estradas, se “modernizaram”. Entretanto, nem todos criaram novas fontes produtivas.
Agora, com os apertos financeiros, os banqueiros e governos europeus, que anteriormente encheram esses países de dinheiro, gritam: esses povos “do Sul”, esses “mediterrâneos”, são irresponsáveis, gastam o que não têm e não querem pagar o que lhes emprestamos. Dureza neles, nada de perdão de dívidas que levaria à “frouxidão moral”. Com isso, talvez salvem o euro, mas dificilmente darão saída para o empobrecimento e o desemprego, que necessitam de mais investimentos para ceder. Torçamos para que em 2012 a Europa saia dessa enrascada.
A China, por seu turno, grande vitoriosa do último quartel, tornou-se possuidora das maiores reservas de dinheiro do mundo. Investe sem parar e, ao contrário dos europeus e americanos, tem o problema de frear lentamente o crescimento baseado em exportações e fazer com que os chineses consumam mais e poupem menos. Belo desafio! Ficam registrados minha torcida e meus votos para que a nova geração que se prepara para assumir o poder continue na linha pragmática da anterior e entenda que o “amai-vos uns aos outros” (que pode ser expresso em linguagem ideográfica e confuciana) implica ampliar o bem-estar dos chineses, mas também em colaborar para entendimentos que assegurem a paz entre os povos e o alento em suas economias.
Para o Oriente Médio e outros focos mais ardentes do planeta, fica a esperança de que a “revolução da primavera” não se perca em novos autoritarismos e fundamentalismos e que dela resulte o aumento da pressão para que prevaleçam dois Estados independentes e pacíficos na Palestina e em Israel. Ou, pelo menos, que o terror atômico não ensandeça a cabeça de algum exaltado líder iraniano ou israelense comprometendo em definitivo a paz no Oriente Médio. Por outro lado, espero que o delírio do “regime change”, que leva a guerras derrotadas de antemão, não embale outra vez as ambições de líderes ocidentais na região.
E aqui, na pátria amada? Por enquanto, vamos escapando da derrocada da crise financeira. Mas, atenção: o que foi postergado, as reformas (as que vão da porta da fábrica para fora – a tributária, as de flexibilização do mercado trabalhista, as parcerias para acelerar as obras de infraestrutura etc., sem esquecer a sempre lembrada e pouco entendida “revolução educacional” ), está se tornando incontornável, se quisermos realmente competir com os polos mundiais de crescimento. Como poderemos enfrentar tamanho desafio com o arranjo político vigente, baseado em pluralidade de legendas e escassez de partidos e no butim do Estado para permitir o que se está chamando de “governabilidade” num sistema de coalizões entre grupos de interesse? Tenha coragem, senhora presidente, e trate de se livrar do entulho herdado, uma teia de corrupções, clientelismos e conivências. Ou melhor, tenha habilidade e competência política para jogar fora de sua “base” a ganga que parece indispensável, mas que pesa menos quando se defronta com uma vontade nacional alimentada com a energia de quem propõe uma agenda nova. É preciso grandeza para dar rumo ao país. São meus votos.
Assim como são meus os votos para as oposições oferecerem porto seguro, de paz e de prosperidade, aos que desejam novos caminhos para o país. Eles serão em número crescente à medida que a inércia governamental prevaleça. A alternância no poder não é apenas uma condição formal da democracia, mas uma necessidade para que as sociedades não se tornem apáticas com a repetição de práticas. Coragem, unidade e competência são meus desejos para as oposições. Feliz Ano-Novo.
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*Ex-presidente da República
Fonte: ZH on line, 31/12/2011
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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

UMA NOVA CIÊNCIA DA MENTE

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ERIC KANDEL
Psiquiatria, psicanálise e neurociência. O cientista austríaco naturalizado norte-americano Eric Kandel transita por todas essas áreas com desenvoltura. Laureado com o prêmio Nobel de Medicina de 2000, por ter descoberto os mecanismos neurais responsáveis pela formação das memórias, o pesquisador de 82 anos defende que essas três áreas do conhecimento devem se unir para formar uma “nova ciência da mente”, capaz de desvendar os mistérios do cérebro humano.
Kandel nasceu em Viena, cidade natal de Sigmund Freud, mas só foi se interessar pela psicanálise nos Estados Unidos, país em que sua família judaica se refugiou meses antes da eclosão da Segunda Guerra, em 1939. Durante o ensino médio, no bairro do Brooklyn, em Nova York, ele direcionou seus estudos para a história e a arte e decidiu que queria se tornar um psicanalista. Para isso, se inscreveu no curso de psiquiatria na Universidade Harvard, onde se encantou com o estudo dos processos biológicos. Mais tarde, no final da década de 1950, se aventurou na neurociência ao se matricular em um curso de neurobiologia na Universidade Colúmbia, onde hoje é professor. Desde então, o cientista não abandonou mais a pesquisa empírica e se firmou como referência no estudo do cérebro e dos processos mentais humanos.
Em novembro, Eric Kandel veio ao Brasil apresentar sua nova pesquisa, sobre esquizofrenia, no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado no Rio de Janeiro. Em entrevista à CH, ele falou sobre seus estudos atuais e seu fascínio pela memória, além de discutir a atualidade de Freud e a crise da psicanálise diante da emergência da neurociência.

Desde que o senhor ganhou o prêmio Nobel por sua pesquisa sobre a memória, usando a lesma-do-mar Aplysia para experimentos, que outras descobertas foram feitas nessa área que considera importantes? Na minha pesquisa, tomei duas direções principais desde 2000. Primeiramente, nos concentramos no processo pelo qual a memória é perpetuada – o que faz com que nos lembremos de algo pelo resto da vida – e nos deparamos com um mecanismo muito interessante. Mostramos que as memórias de longo prazo envolvem a expressão de genes específicos a certas sinapses no nosso cérebro. O modo como as sinapses das memórias de longo prazo se mantêm é pela síntese de algumas proteínas. Já sabíamos que, quando produzimos uma memória de curto prazo, as sinapses do cérebro são modificadas, mas sem mudanças anatômicas. Recentemente, descobrimos que, quando produzimos uma memória de longo prazo, ocorrem mudanças anatômicas no nosso cérebro: a expressão de alguns genes é alterada, novas proteínas são sintetizadas transformando as sinapses e criando outras novas. Isso quer dizer que, quando algo impactante acontece na sua vida, gera efeitos na expressão dos genes do seu cérebro.
Mais tarde observamos outros detalhes surpreendentes nesse processo. Um estudante de doutorado do meu laboratório descobriu uma molécula, a CPEB, que regula o mecanismo de formação de memórias de longo prazo. Mas, essa molécula, que ajuda a manter as sinapses em bom estado, surpreendentemente, tem proteínas semelhantes aos príons. Os príons foram caracterizados nos anos 1990 como as proteínas responsáveis pela doença de Creutzfeldt-Jakob, a doença da vaca louca. Eram conhecidas diferentes proteínas que podiam se autoperpetuar na forma de príons, mas sempre como causadoras de doenças, matando as células do cérebro. Nós conseguimos obter o primeiro exemplo de um príon que é funcional. Quando ele se perpetua nas células, trabalha normalmente, não as da¬nifica, permite que elas funcionem melhor. A princípio, observamos isso na Aplysia. Recentemente, vimos que isso ocorre também em camundongos.

"EXISTEM MUITOS CONCEITOS DE FREUD
SENDO USADOS NA NEUROCIÊNCIA,
COMO OS DE INCONSCIENTE E CONSCIENTE.
O QUE SABEMOS SOBRE O INCONSCIENTE HOJE
É MUITO SIMILAR À VISÃO DE FREUD"

O senhor veio ao Brasil apresentar sua nova linha de pesqui¬sa, sobre a esquizofrenia. Como o senhor entrou nesse novo campo de estudo e qual a relação dele com a memória?
Sou fascinado pela memória, pois ela é a cola que junta a nossa mente, é o que faz de você quem você é. Então, tenho me concentrado em dois tipos de distúrbios de memória. Um é a perda de memória relacionada à idade, que independe de uma doença específica e se dá normalmente com o tempo. O outro é a perda de memória associada às doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia, que tem como um dos sintomas um déficit de memória de curto prazo.

O senhor disse uma vez que, nos últimos 40 anos, não houve avanços na farmacoterapia para doenças mentais, especialmente para a esquizofrenia. O senhor e sua equipe pre-tendem desenvolver novos medicamentos para essa doença?
Sim, eu disse isso mesmo, e estamos estudando novas drogas. Acho que não é prático tentar desenvolver apenas um medicamento para a esquizofrenia, pois há diferentes tipos de complexos de sintomas associados à doença. Temos que tentar atacar cada sintoma individualmente, pois há diferentes mecanismos por trás da doença.

Qual seria a diferença entre as drogas que vocês estão desenvolvendo e as que são usadas hoje?
Como elas atuariam nesses outros sintomas? As drogas que temos hoje só tratam um dos complexos de sintomas da esquizofrenia, os chamados sintomas positivos, como as alucinações, e não miram nos sintomas negativos, como a falta de motivação, nem nos cognitivos, como o déficit de memória de curto prazo. Acho que precisamos desenvolver abordagens completamente novas para os pacientes, focando esses últimos dois sintomas, e também terapias para as pessoas que não respondem aos antipsicóticos, que tratam apenas os sintomas positivos.

O senhor já chegou a algum resultado concreto em termos de medicamentos?
Ainda estamos trabalhando nessa nova abordagem, usando camundongos geneticamente modificados como modelos para estudar a esquizofrenia. Temos conseguido bons resultados com algumas drogas, mas ainda é muito cedo para falar em testes com humanos, embora já estejamos em contato com algumas indústrias farmacêuticas interessadas.

"NÃO É PRÁTICO TENTAR DESENVOLVER APENAS
UM MEDICAMENTO PARA A ESQUIZOFRENIA,
POIS HÁ DIFERENTES TIPOS DE COMPLEXOS DE
SINTOMAS ASSOCIADOS À DOENÇA.
TEMOS QUE TENTAR ATACAR CADA SINTOMA INDIVIDUALMENTE,
 POIS HÁ DIFERENTES MECANISMOS
POR TRÁS DA DOENÇA"

O senhor sempre defendeu, em seus livros e artigos, que a psicanálise e a psiquiatria deveriam usar mais a biologia e as neurociências. O senhor vê isso acontecendo hoje?
Com certeza, hoje existe muito mais neurociência em todos os aspectos da psiquiatria; infelizmente, o mesmo não acontece com a psicanálise. A psiquiatria está em uma ótima posição e já está se aproveitando do grande crescimento dos conhecimentos da neurociência, como os métodos de imagem e a genética. Já a psicanálise pare¬ce ter parado no tempo.

Mas o senhor não acha que, se a psicanálise usasse métodos biológicos, correria o risco de se descaracterizar e desaparecer como área do conhecimento frente ao crescimento da neurociência?
Acho que a psicanálise já está desaparecendo e vai desaparecer se não se valer da biologia, se as coisas continuarem como estão. Se um analista quiser ler Freud, assim como lemos Shakespeare ou Nietzsche, não há problema algum. Freud foi um grande pensador e deve ser lido sempre. Mas, se os psicanalistas quiserem constituir uma ciência dinâmica, que continuamente evolui, precisam vir ao século 21, fazer novos estudos, descobrir como as coisas funcionam no cérebro, sob quais circunstâncias, qual é a melhor te¬rapia para cada problema... Eles definitivamente não estão fazendo isso.

Então a psicanálise vive uma crise?
A psicanálise está em crise, mas não porque suas ideias estejam necessariamente erradas ou ultrapassadas, mas porque ela não se autoinvestiga. Não existem muitos estudos explorando os mecanismos biológicos por trás das ações.

Como o senhor vê a psicoterapia hoje?
Há terapias, como a cognitivo-comportamental, que vêm sendo bastante estudadas e parecem funcionar bem, mas, de modo geral, é um caos. Existem muitas terapias diferentes, mas não sabemos quem realmente se beneficia com elas. Aí entra a neurociência, que poderia comprovar cientificamente que tipo de terapia é melhor para cada um.

O senhor estudou psicanálise por muito tempo antes de se aventurar na psiquiatria e nas neurociências. O senhor acredita que os conceitos da psicanálise se aplicam à neurociência?
Com certeza, existem muitos conceitos de Freud sendo usados na neurociência, como os de inconsciente e consciente. O que sabemos sobre o inconsciente hoje é muito similar à visão de Freud.

"A biologia da mente é um dos maiores
desafios científicos do século 21 e
só poderá ser entendida completamente
quando a neurociência, a psiquiatria,
a psicologia e a filosofia se interligarem
formando o que eu chamo de uma
nova ciência da mente."

O senhor vê as ideias de Freud ainda vivas quando olha para o cérebro humano no laboratório?
O tempo todo. Ele errou em algumas coisas, não entendia nada sobre mulheres, mas acertou em muitas outras coisas.

A psicanálise tende a ver mente e cérebro como distintos, enquanto o senhor prega que ambos são interligados e que a mente nada mais é do que um conjunto de processos biológicos do cérebro. Então, essa seria outra grande diferença entre o senhor e Freud?
Pode-se dizer que sim. Tenho convicção de que não existe uma mente independente do cérebro. Mas Freud chegou a buscar por um modelo biológico da mente; como a ciência ainda era muito incipiente nessa área, ele abandonou esse caminho e partiu para o modelo abstrato da mente.

A premissa de que nossa mente se resume a processos biológicos favorece a ideia do uso de drogas e medicamentos como resposta para qualquer problema. O senhor acha que existe a possibilidade de que, no futuro, as pessoas passem a tomar medicamentos para, por exemplo, desenvolver uma supermemória ou apagar lembranças indesejadas?
É claro, existe esse perigo, mas as pessoas têm problemas com as drogas desde que as pessoas existem e as plantas existem, mesmo que sejam ilegais. Não acho que a ideia de tomar drogas para melhorar a memória seja boa. Drogas para melhorar a memória vão existir, mas não deverão ser tomadas por jovens que querem passar nas provas do colégio; deverão ser prescritas por médicos, pois a perda de memória é uma doença que precisa ser tratada, assim como todas as doenças psiquiátricas. Também acho uma péssima ideia remover memórias. É mais interessante fazer algo para prevenir a formação de memórias assustadoras. Se você manda alguém, como um bombeiro, para um incêndio e quer reduzir o impacto emocional da situação, pode lhe dar drogas para isso. Mas tentar remover memórias com drogas é uma má ideia. Você é quem é por causa de suas memórias, e se você retira as suas memórias, altera a sua personalidade. Quais são hoje os maiores mistérios da neurociência e quão perto estamos de resolvê-los? Temos muitos problemas a serem resolvidos. Precisamos descobrir ainda, por exemplo, quais são as bases biológicas de doenças como a esquizofrenia e o transtorno bipolar e também qual é a natureza biológica da consciência. Já fizemos muitos avanços conceituais e acredito que estamos começando a avançar também na pesquisa empírica. A biologia da mente é um dos maiores desafios científicos do século 21 e só poderá ser entendida completamente quando a neurociência, a psiquiatria, a psicologia e a filosofia se interligarem formando o que eu chamo de uma nova ciência da mente. O senhor participou do documentário In search for memory, sobre a memória e sua própria vida. Atualmente também participa de uma série de vídeos na internet sobre o cérebro com o jornalista inglês Charlie Rose. A divulgação da ciência é uma de suas metas? Com certeza. A ciência precisa se tornar parte do dia a dia e da cultura de todas as pessoas. O senhor vai lançar, em março próximo, o livro The age of insi-ght (A era do insight), sobre arte. Também há espaço para a ciência no livro? Claro, em The age of insight, tento fazer uma ponte entre arte e ciência. Uma coisa maravilhosa da neurociência é que ela não só aumenta o nosso entendimento de doenças psiquiátricas como também nos conecta com outras áreas da vida, como a música e a arte, ao nos mostrar como o nosso cérebro responde a elas. No livro, eu me concentro em determinados artistas de Viena do século 18, como o pintor moderno Egon Schiele. Esses artistas tiveram muitos insights sobre a mente; então, eu defendo que os processos mentais inconscientes foram descobertos paralelamente por Freud e por eles. Embora Schiele e Freud sejam personalidades bem distintas, ambos tiveram grandes ideias sobre a mente humana.
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Reportagem por SOFIA MOUTINHO FONTE:  CH 288 (dezembro/2011)
- http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2011/288/pdf_aberto/entrevista288.pdf