quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Que raios estou fazendo aqui?

MARTHA MEDEIROS*

Não há revista ou jornal que não traga matérias sobre lugares encantadores para se conhecer. Viajar deixou de ser um luxo para se tornar quase obrigatório. São tantas promoções e pacotes, que fica mesmo difícil resistir.
Adoro viajar e adoro livros de viagem, incluindo os de ficção. Geralmente, as narrativas confirmam a ideia de que viajar abre horizontes, traz novos conhecimentos e nos aperfeiçoa como seres humanos. Compensa suportar voos atrasados, cansaço e imprevistos, pois receberemos o Éden em troca. Quanto às roubadas, ninguém dá um pio. É proibido falar “antipatizei com Paris” ou “achei o Caribe um tédio”. É de bom-tom gostar de tudo e, se a viagem for para um destino exótico, convém gostar mais ainda, para não passar recibo de preconceituoso.
Deve ser por isso que me diverti com o livro Eu, Minha (Quase) Namorada e o Guru Dela, do inglês William Sutcliffe. O livro conta a história de um garoto de 19 anos que é pressionado pelos amigos a sair de Londres para fazer uma viagem de aventura em seu período de férias. Por quê? Ora, porque todo mundo faz. Bem que ele gostaria de passar as férias em casa se empanturrando de porcaria em frente à TV, mas acaba conhecendo uma guria que está de partida para a Índia e, muito refinado, pensa: “Essa mina está me dando mole, vou viajar com ela e me dar bem”.
A “mina” quer encontrar o próprio eu, enquanto que o garoto, nos primeiros cinco minutos em Délhi, quer encontrar uma pousada com ar condicionado. A moça encara todas as privações com enlevo, já que está num tour espiritual, enquanto nosso amigo inicia um tour pelo inferno, e cabe a nós, leitores, não ligar para o fato de não estarmos com um Balzac ou Tchekhov nas mãos. Ler as aventuras de um estudante que declara ódio à Índia assim que aterrissa, e que odeia todos os mochileiros que lá estão, e também todos os viajantes sem dinheiro que escolhem ir para lugares insalubres com o intuito de procurar o próprio eu, nos faz viajar com ele para o adorável mundo do politicamente incorreto, que hoje é quase um ponto esquecido do mapa. O livro é engraçadíssimo. Certamente já entramos em alguma roubada que nos fez lamentar ter nascido, porém, muito ponderados que somos, catalogamos o incidente como “uma experiência de vida”. Mas o personagem não tem essa condescendência. Ele quer cortar os pulsos e engolir três caixas de veneno pra rato. E tem motivo.
Nunca embarquei numa fria colossal, mas já passei alguns maus momentos em viagens, quase sempre por falta de informação. Mas quando sobra humor e presença de espírito, mesmo a mais medonha das viagens rende algumas risadas na volta. Ou inspira um livro cômico e despretensioso para ser lido numa tarde de verão.
Em tempo: não conheço a Índia. Me atrai mais ou menos. Sei de pessoas que veneram a cultura e as peculiaridades locais. E de pessoas que não voltariam a colocar os pés lá nem para salvar um filho. Por ora, ainda não incluí o país na lista dos “100 lugares que não posso morrer sem conhecer”, mas vá saber. Tudo é uma experiência de vida.
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* Escritora. Cronista da ZH. Edita livro de suas crônicas.
Fonte: ZH online, 29/12/2010
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