quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Nasce uma nova moral

MÁRION STRECKER*
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Conceitos de certo e errado
estão em franca mutação;
essa mudança surge do âmago
da nossa sociedade

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NÃO SEI o quanto as pessoas estão atentas, mas uma nova moral está nascendo. Não é um fenômeno local, senão global. Os conceitos de certo e errado estão em franca mutação. E essa mudança não está surgindo porque os "inimigos" estão tomando conta da situação. Essa mudança está surgindo do próprio âmago da nossa sociedade, civil e civilizada. Sim, vou falar do Wikileaks. Peço apenas um pouco de paciência para construir o raciocínio.
Vejamos os ultrajovens, nossos filhos com menos de 20, 15 ou 10 anos de idade. Eles usam a internet para viver a vida e fazem coisas como baixar, sem pagar, músicas, filmes e seriados de TV como quem bebe um copo d'água. Não veem nada de errado nisso. Baixam de sites que permitem baixar. Sinceramente, não acho que isso seja uma mera continuação da Lei de Gerson, que manda tirar vantagem de tudo. Não é uma falta de moral, mas sim uma nova moral que se desenvolve, que precisamos entender, senão aceitar.
Os ultrajovens, que dormem com seus celulares e publicam coisas na internet, fazem seus trabalhos de escola na base do "mash-up" (misturam conteúdos que produzem com fotos, filmes ou textos que foram feitos por outras pessoas, conhecidas ou não). Tudo tirado da web.

"Vejamos os ultrajovens, nossos filhos
 com menos de 20, 15 ou 10 anos de idade.
Eles usam a internet para viver a vida
e fazem coisas como baixar, sem pagar,
 músicas, filmes e seriados de TV
como quem bebe um copo d'água.
Não veem nada de errado nisso. (...)
Não é uma falta de moral,
mas sim uma nova moral que se desenvolve,
que precisamos entender,
 senão aceitar.



Se há honestidade intelectual nisso, ou seja, se ninguém está meramente fingindo ser o autor do conteúdo autoral de um terceiro, ok, acho que é simplesmente o modus operandi dos ultrajovens, que serão adultos amanhã de manhã.
Precisamos rever o conceito do que seja honestidade intelectual. E do que seja honestidade, afinal.
Lembro da obra-bandeira "Seja Marginal, Seja Herói", que Hélio Oiticica criou e empunhou em 1968. Lembro também de um verso de Chico Buarque escrito em pleno regime militar, quando Geisel era o presidente. O verso dizia: "Você não gosta de mim, mas sua filha gosta".
O assunto atual é o Wikileaks, organização sem fins lucrativos, transnacional e sediada na Suécia, que publica documentos, fotos e informações confidenciais, de fontes anônimas, vazados (alguns preferirão dizer "roubados") de governos ou de empresas, sobre assuntos, digamos, "sensíveis". O site surgiu em dezembro de 2006, mas começou a incomodar quando publicou quase 400 mil documentos secretos sobre a Guerra do Iraque, relatando torturas de prisioneiros e ataques a civis pelos americanos e por seus aliados.
Em novembro, publicou telegramas secretos de embaixadas e do governo dos EUA. Nos últimos dias, as informações envolveram o Vaticano. A pedido da Justiça da Suécia, a Interpol distribuiu ordem internacional de prisão de seu diretor, o jornalista e ativista australiano Julian Assange, preso em Londres sob acusação de violência sexual. Em agosto, duas suecas haviam denunciado Assange, entre os motivos, por ter mantido relação sem camisinha.
O Wikileaks estava hospedado na Suécia, mas também nos EUA e em outros países, como é típico da internet, tecnologia inventada originalmente para servir aos interesses militares americanos de descentralizar a informação e seus percursos, de modo a garantir a comunicação mesmo que boa parte de suas rotas seja subitamente eliminada.
Sites de empresas como Visa e PayPal, ao suspender o recebimento de doações que financiavam o Wikileaks, foram alguns dos alvos recentes de importantes ataques virtuais.
Tanto combatentes como defensores do Wikileaks empunharam suas armas, políticas, jurídicas ou cibernéticas. Uns, para censurar o Wikileaks e sufocar seus meios de sustentação, e assim defender supostos interesses nacionais. Outros, para atacar os que se voltaram contra o Wikileaks e assim defender o acesso à informação, inclusive informação confidencial ou roubada.
Até game o Wikileaks virou: brinque de Assange e tente pôr seu "pen drive" no micro do presidente Obama! Hackers, vistos como bandidos ou baderneiros, almejam o prestígio dos heróis.
O Wikileaks já se tornou obra coletiva e global. Ele seguirá, mesmo que seu criador seja condenado ou morto. Os interesses dos que combatem o Wikileaks parecem ser bem mais específicos.
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* MÁRION STRECKER, 50, jornalista, é diretora de conteúdo do UOL. Escreve mensalmente, às quintas, neste espaço.
Fonte: Folha online, 16/12/2010
Imagem da Internet

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