quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Sacks mostra como mente "cria" mundo


Novo livro do escritor aborda reconstruções da percepção
quando área visual do cérebro tem descompasso
Cegos que ainda são capazes de "ver" e os mistérios da visão em 3D dominam nova obra do neurologista inglês

Moacyr Lopes Junior-19.5.05/Folhapress
Oliver Sacks em palestra em SP

Autor de romances policiais, o canadense Howard Engel chegou a imaginar que estava sendo vítima de uma estranha conspiração ao tentar ler o jornal numa manhã de julho de 2001.
"Quando eu focalizava as letras, ora pareciam cirílico [alfabeto do russo e de outras línguas eslavas], ora coreano", contou Engel em carta ao neurologista e escritor britânico Oliver Sacks. Não era um plano maligno da KGB: Engel tivera um derrame numa pequena área do lado esquerdo do cérebro.
Anedotas como essa se juntam como as peças de um quebra-cabeças em "O Olhar da Mente", livro de Sacks que acaba de chegar ao Brasil. A mensagem mais ampla é clara: não há nada de automático na maneira como achamos que vemos o mundo.
Histórias como as de Engel mostram que o conjunto olho-cérebro está menos para câmera digital e mais para simulador de realidade virtual, usando pistas às vezes enviesadas para construir um modelo do mundo na cabeça de cada pessoa.
Na entrevista abaixo, Sacks fala da relação entre ciência e literatura e diz que a interface entre cérebro e máquinas tem potencial para revolucionar o modo como os sentidos funcionam.

Folha - Como é que o sr. normalmente escolhe o fio condutor de um livro? O sr. começa com o tema na cabeça e depois busca relatos de pacientes que se encaixem na ideia, ou é o contrário?
Oliver Sacks - Depende muito de quem me contata, do que acontece no meu cotidiano. Acidentes desempenham um papel muito grande para um médico. As coisas não são nem de longe tão sistemáticas quanto o cotidiano de um cientista.

"Conectar o cérebro a máquinas
que possam se movimentar
é muito empolgante para pessoas
que ficaram paralisadas,
pessoas que estão "trancadas"
dentro do próprio cérebro
 por causa de alguma lesão e
não possuem nenhum modo de
se comunicar com o mundo exterior."

Por que ainda é raro ver livros sobre ciência serem reconhecidos como literatura?
Fico tentado a dizer que algumas pessoas naturalmente vão gostar mais desse tipo de obra do que outras. Não penso em mim mesmo como um homem de letras. O que tento é dizer as coisas com a maior clareza e maior naturalidade possíveis.
Acho que é importante ler em voz alta. Quando escrevo, tento ouvir cada frase na minha cabeça, e acho que esse ouvido para o que se está escrevendo é crucial.

Os casos extremos que o sr. descreve ajudariam a mostrar que até as pessoas que chamamos de normais apenas usam seu cérebro para construir uma espécie de modelo do mundo, que nunca é a mesma coisa que o "mundo real" em si?
Em primeiro lugar, não penso em meus casos como extremos. Acho que eles apenas são os mais exemplares, digamos.
Quando falamos de coisas como o ato da leitura, ou a capacidade de reconhecer rostos, a tendência é considerar essas habilidades como algo natural. E as pessoas não têm a menor ideia de como essas coisas funcionam.
Isto é, a menos que você as analise. E ver pessoas cujas faculdades de reconhecimento foram esfaceladas faz, por exemplo, com que seja possível perceber que certa capacidade está associada a certa parte do cérebro.
Dessa maneira, você aprende que é possível saber o que a leitura ou o reconhecimento de rostos são em todas as demais pessoas. Ou seja: estudar um cérebro anormal lança muita luz sobre os cérebros normais.

Na última década, as pesquisas cujo objetivo é criar interfaces entre o cérebro humano e as máquinas avançaram muito. Qual o potencial dessas tecnologias para mudar a maneira como as pessoas percebem o mundo?
Conectar o cérebro a máquinas que possam se movimentar é muito empolgante para pessoas que ficaram paralisadas, pessoas que estão "trancadas" dentro do próprio cérebro por causa de alguma lesão e não possuem nenhum modo de se comunicar com o mundo exterior.
Na parte final do meu livro, abordo a chamada substituição sensorial, na qual uma câmera de vídeo é conectada a eletrodos implantados na língua do paciente.
Essa pessoa, então, é capaz de interpretar esses estímulos sensoriais na língua como uma percepção visual, mesmo que ela não enxergue. Isso não exige a implantação de eletrodos no cérebro. Mas nós vemos e ouvimos com nosso cérebro, e em breve vai ser possível -é algo que já foi conseguido em modelos animais- enxergar com essas interfaces.
E isso vai revolucionar a medicina.

RAIO X
OLIVER SACKS

VIDA
9 de julho de 1933, na região norte de Londres. Biologia, fisiologia e medicina no Queen's College, da Universidade de Oxford

CARREIRA
Foi professor de neurologia das universidades Yeshiva (Nova York) e da de Nova York. Hoje leciona neurologia e psiquiatria em Columbia

ALGUMAS OBRAS
"Tempo de Despertar" (1997), "O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu" (1997), "Alucinações Musicais" (2007)

Cérebro "maleável" explica estranhas habilidades


DO EDITOR DE CIÊNCIA

Uma palavrinha técnica crucial está por toda a parte no livro de Sacks e mostra que uma revolução na maneira como se entende o cérebro triunfou. O termo-chave é "plasticidade".
A plasticidade cerebral é o oposto da ideia de que não dá para ensinar truques novos a cachorro velho. Durante muito tempo, neurologistas e biólogos acreditaram que, depois de um "período crítico", da gestação aos primeiros anos de vida, o cérebro se tornava um órgão pouco maleável, incapaz de grandes reorganizações de funções e capacidades. Qualquer dano ao conjunto seria irreparável.
Muita coisa mudou, no entanto, a começar pela descoberta, nos anos 1990, de que o cérebro adulto é capaz de gerar novos neurônios. E o acompanhamento de pacientes como os que estrelam "O Olhar da Mente" mostra que é possível remodelar a arquitetura cerebral para compensar deficiências graves ou adquirir habilidades que parecem sobrenaturais.
No primeiro quesito, uma das histórias mais emblemáticas é a de Sue Barry, neurobióloga que nasceu com estrabismo grave e foi submetida a cirurgias para corrigir os músculos dos olhos dos dois aos sete anos de idade.
Apesar disso, nunca desenvolveu visão binocular normal, a única que permite uma visão 3D "natural". Já na meia-idade, novas lentes para os óculos e cansativos exercícios fizeram com que ela finalmente aprendesse a ver o mundo em 3D.
O resultado só pode ser descrito como uma epifania: o volante do carro parece "pular" na direção dela; de repente, ela percebe o espaço entre o garfo e o prato. "Gostaria de tirar um dia para andar por aí e OLHAR", escreve.
Outra tribo fascinante do livro é a dos cegos visuais, cujo cérebro manteve a capacidade de manipular imagens "virtuais". Entre eles, se destaca o australiano Zoltan Torey, que passou até a projetar equipamentos depois de perder a visão.

O OLHAR DA MENTE
AUTOR Oliver Sacks
TRADUÇÃO Laura Teixeira Motta
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44 (232 págs.)
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Reportagem por REINALDO JOSÉ LOPES EDITOR DE CIÊNCIA
Fonte: Folha online, 24/11/2010

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