quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Tony Blair - Entrevista

'Nós não sabíamos dos abusos
em prisões iraquianas',
diz Tony Blair
Maioria dos mortos no Iraque
foi vítima do terror e Oriente Médio
sem Saddam é 'menos perigoso', diz

'Terceira via nunca foi tão relevante quando agora,
após a crise financeira'.

Desde que entregou a chave de Downing Street n.º 10 a Gordon Brown, em junho de 2007, Tony Blair não parou quieto. Tornou-se enviado ao Oriente Médio do chamado Quarteto (formado por EUA, Rússia, União Europeia e ONU), criou a Tony Blair Faith Foundation para promover o diálogo inter-religioso e passou a aconselhar os presidentes africanos Paul Kagame (Ruanda), Ernest Koroma (Serra Leoa) e Ellen Sirleaf (Libéria).
Entre viagens e cúpulas mundo afora, Blair ainda encontrou tempo para escrever uma autobiografia, intitulada Uma Jornada, que será publicada no Brasil em janeiro pela Editora Saraiva.
O ex-premiê esteve na terça-feira, 26, em São Paulo, onde passou por uma maratona de palestras e reuniões. Após falar sobre educação na Universidade Anhembi-Morumbi, ele explicou ao Estado por que não se arrepende de ter invadido o Iraque, defendeu o novo papel de países como Brasil, China e Índia, e anunciou a volta da "terceira via".

A guerra do Iraque voltou às manchetes na sexta-feira após o vazamento do site WikiLeaks, com revelações sobre atrocidades em prisões iraquianas, a influência do Irã no país e a cifra de 109 mil civis mortos. Hoje, também sabemos que não havia no Iraque em 2002 e 2003 armas de destruição em massa, nem integrantes da Al-Qaeda. Quais são as responsabilidades do sr. - um dos patrocinadores da guerra, ao lado do presidente George W. Bush - diante desse cenário?
Blair: É preciso dizer que toda essa informação (supostamente revelada pelo WikiLeaks) já era conhecida. Costumo pedir às pessoas que se lembrem das centenas de milhares de civis iraquianos que foram assassinados por Saddam (Hussein). A Guerra Irã-Iraque deixou pelo menos 1 milhão de vítimas. Houve a invasão do Kuwait. Usaram armas químicas contra os curdos. Perseguiram os clãs árabes da região dos Rios Tigres e Eufrates (em 1991). É preciso fazer uma equação com todos esses elementos, antes de se tirar qualquer conclusão.
Sobre as pessoas que morreram (a partir da invasão de 2003), temos de dizer que elas foram, basicamente, vítimas do terrorismo. E o que importa agora - seja no Iraque, no Irã ou em vários outros lugares do mundo - é que nós devemos confrontar aqueles que cometem esses atos terroristas.

Há pessoas no Reino Unido pedindo que o sr. seja julgado por crimes de guerra e por "ludibriar" a opinião pública para levar o país à guerra.
Blair: Esse é um grupo extremamente pequeno de pessoas. E elas costumam se esquecer de que eu disputei três eleições e venci todas. A última delas, aliás, foi após a invasão do Iraque.

O sr. sabia o que estava ocorrendo em prisões iraquianas, ou em outros palcos da guerra ao terror, como o presídio americano de Guantánamo, em Cuba, ou Bagram, no Afeganistão?
Blair: Nós não sabíamos. Guantánamo é um caso à parte. A grande diferença é que, no tempo de Saddam, abusos em prisões eram uma rotina, repetida diariamente. Tratava-se de uma política de governo. Para nós, jamais. Quando soubemos do que estava acontecendo, nós paramos e processamos os responsáveis. Os americanos também levaram pessoas à Justiça. É essa a diferença básica entre os dois sistemas.

E o sr. acredita que o Oriente Médio é hoje um lugar mais seguro sem Saddam?
Blair: Está menos perigoso sem Saddam, mas ainda não é um lugar seguro. Um dos motivos disso é que existe uma grande batalha na região, e até mesmo para além dela, entre uma corrente extremista - devo dizer, em parte patrocinada pelo Irã - e o restante das pessoas.

"Existe muita gente,
 até mesmo dentro do Irã,
determinada a ter um governo livre
e independente."
Muitos analistas afirmam que esse novo poder iraniano, sobretudo em relação ao Iraque, é consequência direta da deposição de Saddam. O sr. concorda?
Blair: De modo objetivo, é preciso reconhecer que o Irã adota políticas de desestabilização de partes da região. Na minha opinião, seria uma coisa muito ruim se o governo iraniano alcançasse capacidade nuclear. Mas, do outro lado, há grande resistência à influência iraniana. Existe muita gente, até mesmo dentro do Irã, determinada a ter um governo livre e independente.

Colonos israelenses retomaram no mês passado as construções na Cisjordânia e, do outro lado, os grupos palestinos Fatah e Hamas foram incapazes de selar uma reconciliação. O sr., enviado do Quarteto para o Oriente Médio, acredita de fato que a paz é possível?
Blair: Sim, a paz é alcançável. Mas essa é uma oportunidade histórica - talvez uma das últimas, ou "a" última chance - que teremos para conseguir uma solução pacífica na região. Nós sabemos exatamente o que queremos: dois Estados, Israel em segurança e uma Palestina viável.
No meio de tanta notícia ruim, há uma coisa muito boa do lado palestino, que é o progresso na Cisjordânia, animado pelos próprios habitantes do território. Estão construindo sua economia, que deve crescer este ano entre 10% e 12%. Estão também investindo em suas instituições e capacidades, principalmente na área da segurança. Ou seja, nós sabemos o que funciona: construir o Estado de baixo para cima e negociar a paz de cima para baixo.

Não seria preciso também os EUA exercerem algum tipo de pressão sobre Israel?
Blair: (Risos) Não posso me estender sobre isso. Veja, um acordo de paz é complexo, mas pode ser feito. Não se trata de uma causa perdida, de modo nenhum.

A emergência de países como Brasil, China e Índia mudou a paisagem internacional - da guerra do câmbio e discussões do clima, a questões de segurança. Como o sr. avalia essa nova realidade global?
Blair: Estamos diante de uma mudança fundamental na natureza do poder no mundo. E hoje em dia não há nenhuma questão, seja no campo da economia, meio ambiente ou segurança, que possa ser discutida sem se pensar numa parceria com países como Brasil, Índia e China. Os dias em que o Ocidente estava no poder e impunha sua vontade sobre os demais acabaram.

"Pessoalmente,
 acho que a "terceira via" da política
nunca foi tão relevante na história
quanto nos dias de hoje.
Sobretudo depois da crise financeira.
As pessoas sabem que precisam
de um Estado e de um mínimo
de serviços estatais."


Mas europeus e americanos ainda parecem ver com grande suspeita a ação dos emergentes em temas da chamada "alta política" - basicamente, assuntos de paz e guerra. Um exemplo disso seria a questão da proliferação nuclear e o Irã.
Blair: Poderes emergentes devem tomar parte de todas as discussões. Isso se aplica também à questão iraniana, que pode ser resolvida. Essa é a grande mudança que ocorreu nos últimos anos. A crise econômica contribuiu para isso e acelerou um processo que já estava ocorrendo.

Em sua eleição de 1997, o sr. era "a cara" de uma nova esquerda que dizia ter encontrado o meio-termo entre a inviabilidade do completo estado de bem-estar social e a selvageria do capitalismo - a chamada "terceira via". O que mudou, em sua visão de mundo, desde aquela época?
Blair: Pessoalmente, acho que a "terceira via" da política nunca foi tão relevante na história quanto nos dias de hoje. Sobretudo depois da crise financeira. As pessoas sabem que precisam de um Estado e de um mínimo de serviços estatais. Mas deve ser um Estado adaptado ao mundo de hoje: que dá poder e não exerce controle; que dá oportunidades e não sufoca. Concordar com isso é acreditar no conceito da "terceira via". Por isso defendo que essa é a receita correta a ser empregada. E, além do mais, não há muitos partidos de esquerda que chegaram ao poder sem essa visão.

O sr. foi o primeiro premiê do Reino Unido a fazer uma visita oficial ao Brasil, em 2001. Certamente o País mudou muito desde então. Mas, se o sr. tivesse de apontar uma mudança principal, qual seria?
Blair: A autoconfiança que agora conseguimos sentir entre os brasileiros. Houve mudanças grandes na economia e na qualidade de vida das pessoas. Mas a que mais me chamou a atenção é a autoconfiança que agora sentimos no Brasil e também no exterior em relação ao País.

Neste domingo, o Brasil decidirá seu próximo presidente. Obviamente o sr. não fará comentários sobre os candidatos. Mas como o sr. vê essa votação?
Blair: Comentei sobre a mudança na confiança dos brasileiros. Outra grande diferença é que, há alguns anos, pessoas ao redor do mundo estariam ansiosas com o resultado da eleição no Brasil. Hoje temos grande interesse no processo eleitoral brasileiro, mas não estamos nada ansiosos. Essa é uma diferença enorme. Sabemos que a democracia está consolidada por causa do trabalho de líderes como Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Vemos uma batalha política, mas dentro de limites claros.
QUEM É
Hoje com 57 anos, Anthony Charles Lynton Blair - ou "Tony Blair" - passou à liderança do Partido Trabalhista da Reino Unido em 1994. Sob seu comando, a legenda adotou o lema de "nova esquerda" e caminhou para o centro. Aos 43 anos, Blair tornou-se o mais jovem premiê britânico desde 1812, cargo que ocupou até 2007. No plano interno, seu governo foi marcado pelas reformas nos setores da Saúde e Educação. No externo, Blair deu amplo apoio aos EUA no Afeganistão e no Iraque.
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Reportagem por Roberto Simon - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão online, 27/10/2010

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