domingo, 17 de outubro de 2010

Sem conexões

Rubem Alves*
Imagem da Internet

Fiquei desapontado e bravo com a resposta da editora americana. Quis publicar um livro meu, para ser mais preciso, o Transparências da eternidade. É uma coleção de textos poéticos sobre esse mistério a que se dá o nome de “deus”. Imaginei que os americanos, tão religiosos, haveriam de gostar. Não gostaram. A pessoa supostamente entendida no assunto pôs o polegar para baixo. Seu julgamento se baseou no fato de que ele não havia conexões, entre um capítulo e outro. Pois num livro cada capítulo deve ser um desenvolvimento, uma continuação do capítulo anterior, até chegar ao último capítulo, que deve ser a conclusão, o fechamento, o “nada mais a dizer”, fim. Percebi que esse juiz devia estar acostumado a ler livros científicos e romances porque esses são livros em que todas as coisas devem estar costuradas umas nas outras.
Estiquei o braço e da prateleira à minha frente puxei o livro de T.S. Eliot The complete poems and plays (Harcourt, Brace & World, Inc. New York). Abri o livro no “sumário” e fui escorrendo os olhos de cima para baixo, aos saltos: Retrato de uma dama, Um ovo cozido, Lune de Miel, Linhas para um gato persa, Linhas para um pato no parque, Os nomes dos gatos, e assim por diante. Procurei as conexões entre o retrato de uma dama, um ovo cozido, a lua de mel, o gato persa e o pato. Não encontrei conexão alguma. Cada poema tinha um princípio e um fim nele mesmo. Carecia de qualquer costura com o que vinha antes e o que ia depois.
Pus para tocar uma peça do compositor russo Modesto Mussorgsky: Quadros de uma exposição. Um amigo seu, arquiteto e pintor, que morrera aos 39 anos de idade, lhe deixou grande tristeza. Passado algum tempo aconteceu numa das galerias de arte de São Petersburgo uma exposição de telas suas. Mussorgski foi ver os quadros para sofrer de beleza e saudade do amigo. Via um quadro e caminhava até o seguinte. Veio-lhe então a idéia de compor uma série de dez peças que representassem em música o que o seu amigo tinha dito em pintura. A arte frequentemente faz isso: diz num sentido aquilo que fora dito num outro.
Os temas são os mais variados, um nada tem a ver com o outro: gnomo, o castelo medieval, tulherias, carro de bois, dança dos pintinhos, o judeu rico e o judeu pobre, o mercado em Limoges, catacumbas, com os mortos em língua morta, a cabana de Baba-Yaga, a grande porta de Kiev, todos os quadros-músicas ligados uns aos outros por um mesmo tema, a “promenade”, que representa a caminhada do compositor de um quadro para outro.
Não há conexões. Cada tela é completa em si mesma. Cada tema musical é completo em si mesmo. Independentes. Eu sugeriria ao meu leitor ouvir o diálogo entre o judeu rico e o judeu pobre e a dança dos pintinhos. São descrições deliciosas Ouvindo-se a música vê-se a tela. E vem ora o riso, ora a majestade, ora a tranquilidade. É assombroso esse poder do artista para traduzir em sons aquilo que o pintor disse com cores! Como é possível fazer com que as cores e os sons digam a mesma coisa?
Acho que se T.S.Eliot e Moussorgski tivessem sido submetidos ao julgamento do crítico que julgou a minha coleção de poemas místicos (pensei em usar “poemas religiosos”. Mas “religião” é uma palavra que me traz muitas associações confusas. A palavra “místico” me agrada mais por derivar-se de um verbo grego, “muein”, que quer dizer “falar de boca fechada”, “ver de olhos fechados”...), seus poemas e suas músicas teriam sido vetadas por falta de conexões.
Que pena que a música não pode ser tocada nas folhas de um jornal. Eu colocaria os Quadros de uma exposição para tocar, ou na versão original para piano, ou na orquestração magnífica de Ravel...
Mas os poemas completos de Eliot já estão publicados em português. E os meus poemas em prosa também já estão em português e inglês...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular

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