domingo, 24 de outubro de 2010

A política da fé

Cesar Elizi*


Religião e política aparecem como temas centrais de nada menos que três excelentes textos na edição de 20 de outubro deste jornal. Os autores Roberto Romano, André Fernandes e Bruno Ribeiro convergem e divergem em pontos do interesse de todos, sobretudo em épocas de eleição.
Romano pontua o papel de João Paulo II no que chama de “freio nas adesões aos valores seculares”. Trocando em miúdos, freou toda a Igreja em seu movimento de aproximação aos valores de nosso tempo. Professando sua fé, Romano adverte que nunca deixou que a crença obscurecesse seu juízo crítico.
O juiz André Fernandes parte da suposição de que “o homem é uma criatura religiosa por excelência”. Talvez haja aqui um atrito com Aristóteles: “O Homem é um animal político”— a não ser que se pense na atividade religiosa como mais uma práxis política, apesar do pleonasmo. De qualquer forma, para o juiz, a fé é um atributo humano, chegando a equacionar neutralidade religiosa com ateísmo, qualificando este último como possuidor de uma “índole substancialmente nociva”. Pergunto-me, olhando para os últimos dois mil anos de história, se fiéis ou ateus foram mais nocivos ao mundo...
O jornalista Bruno critica a postura dos candidatos à presidência por restringirem-se aos crentes em primeiro momento, e aos cristãos mais especificamente. Para Bruno isto é um erro, pois falar a toda a nação sobre “valores cristãos” é desqualificar um pedaço do Brasil que ou não crê ou crê, mas não no Cristo. Seria como se dirigir a todos os paulistas, torcedores de futebol ou não, e discorrer sobre os méritos corintianos. Bruno alerta para uma escolha inevitável, em seu já costumeiro jogo de palavras: ou bem o Estado é laico ou lacaio do preconceito. Além de estilo, tem muito sentido.
Mas afinal crer é natural ao humano? Faz mais sentido pensar em uma humanidade criada à imagem e semelhança de um Deus onipotente ou num Deus fabricado por uma humanidade ansiosa demais frente à inevitabilidade do fim? Hamlet já ponderava: Pois quem suportaria os açoites e os insultos do mundo, a afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor desprezado, as demoras da lei, a prepotência do chefe, o deboche que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo ele próprio encontrar seu descanso com um simples punhal? (...) senão pelo temor de alguma coisa após a morte? (ato III cena I).
O filósofo Nietzsche viu nessa passagem de Hamlet um exemplo do conflito existencial e conclui, bebendo em largos goles de Schopenhauer, que a única saída para este dilema é uma espécie de cura mágica através da arte. E a arte nos leva de volta ao teatro e a Hamlet, onde encontramos o conselho de Polônius para o filho: “E sobretudo isto: Seja verdadeiro a si mesmo!”. Mas cá entre nós, para sermos verdadeiros a nós mesmos é preciso um investimento enorme em nos entender e isto requer muito exercício do pensamento. E o que é que isso tudo tem a ver com política? Romano acerta em cheio: pensar dói!
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* Cesar Elizi é professor na Facamp
Fonte: Correio Popular online, 24/10/2010

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