quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Oportunismo de esquerda e religião

Romano*
Devido à batalha surgida nas eleições presidenciais, estudiosos e jornalistas me procuram para falar de meu primeiro livro, “Brasil, Igreja contra Estado” (esgotado). Nele, mostro que a ordem católica tem seus próprios fins, não se deixa desviar em demasia por assuntos ideológicos ou políticos. Se ocorrem rupturas drásticas na instituição religiosa surge uma nova igreja (como na Reforma), mas as dissidências menores são absorvidas pela Hierarquia.
Quando o livro surgiu corria o ano da Graça de 1979. Morto João Paulo I, subira ao trono João Paulo II, reformulando o trato da Igreja com o mundo. É preciso levar em conta a grande abertura aos assuntos seculares empreendida sob João XXIII e Paulo VI. Os dois conduziram o Concílio Vaticano 2 que definiu novas orientações aos fiéis nas lides com a sociedade política, em especial na Gaudium et Spes. Quando a Igreja se abre em demasia ao exterior, ela tende a perder coesão interna. Logo, a sua hierarquia, seguindo um saber prudencial de milênios, retoma a centralização disciplinar e dogmática, atenua em suas periferias o ímpeto inovador. Em tal movimento de sístole e diástole, a Igreja mantem a sua universalidade e movimento unificado.
Em 1979, João Paulo II iniciou o Termidor na ordem eclesiástica. Na moral, na política, na cultura, tudo foi feito pelo Pontífice para colocar um freio nas adesões aos valores seculares. Dada sua experiência com o mundo soviético, incluindo a Polônia comunista, ele reprimiu as tendências socialistas no interior da Igreja. Seminários foram modificados, o clero passou a ser visto de mais perto pelos bispos, a doutrina social da Igreja foi retomada em detrimento de sínteses entre cristianismo e marxismo. Meu livro mostra a lógica da instituição, evidenciando que jamais, no seu todo, ela poderia se tornar socialista, como jamais se rendeu ao capitalismo, ao absolutismo, ao feudalismo etc. Como a tese lógica e histórica ia contra os desejos da esquerda, e feriam interesses da direita, o seu autor foi atacado de maneiras distintas. Na margem esquerda, resenhas e reportagens caluniosas. A bibliografia internacional sempre menciona o volume, as nacionais, sobretudo as da esquerda, o afogam em silêncio nada obsequioso.
Uma técnica usada contra mim foi espalhar que eu era um “revoltado” contra a Igreja. Sou gratíssimo à Ordem dos Pregadores por tudo o que nela recebi, do plano especulativo ao prático. Guardo os instantes de silêncio, estudo, culto e lazer com pessoas do mais elevado espírito. Se me mantenho entre os membros da Igreja é porque tenho nela uma fonte de esperança. Mas nunca deixei que a crença obnubilasse o juízo crítico. Não confundo a Igreja com determinados setores seus, cujos matizes vão da direita à esquerda social e política. Não aceito que tentem impor como norma de fé as suas opções ideológicas. Quando uma pessoa como Paulo Evaristo fala, eu penso e obedeço. Entre o Grande Inquisidor e o Cristo, a opção imperativa é pelo segundo.
Recordo, após 30 anos, a resenha de Brasil, Igreja contra Estado, feita por Clodovis Boff, irmão do teólogo. Na época, ele pregava o uso, pela teologia, da “mediação socioanalítica” marxista. Entre os dogmas proclamados por ele, estava o que afirmava ser a Igreja uma instituição grávida de socialismo. O autor teve, para sua verrina, duas páginas da Revista Leia Livros. Os editores me negaram o mesmo espaço para a réplica, publicada nas “Cartas do Leitor” em tipos quase invisíveis. Boff aprovou a censura. Em 1980, além das críticas à URSS e ao santo partido serem vetadas (o santo partido poderia ter sua sede no Kremlin, em Pequim ou na “pequenina e gloriosa Albânia”) também eram proibidas as críticas à esquerda católica, dada a suposta guinada eclesiástica para o socialismo.
A guerra de hoje, as hipocrisias das candidaturas, as zumbaias e rapapés aos fiéis e pastores, tudo mostra que a esquerda limita-se a repetir palavras de ordem e passa ao largo do problema religioso. Não basta fazer o sinal da cruz: é preciso ir à lógica da instituição sagrada, o que exige pensamento. E pensar dói. As querelas de hoje farão muito mal ao Estado e à Igreja. O primeiro tem a soberania arranhada, a segunda percebe uma ruptura na própria CNBB. Os ódios da campanha envenenam a vida nacional. O que é lastimável em todos os sentidos.
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* Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
Fonte: Correio Popular online, 20/10/2010

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