segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Viagem ao Canadá

ANTONIO CONTENTE*

Imagem da Internet

Ela tinha amiga íntima, de infância, que, por um desses determinismos da vida foi morar em Quebec, Canadá. Isso ocorreu por obra e graça de simples artimanha do destino. Vinha a moça saindo de casa comercial na 13 de Maio e tropeçou nos pés de um senhor. Olharam-se, sorriram, ele murmurou pedido de desculpas num português indigente. Fred era canadense e, por sorte, a dona falava, além de inglês, francês. Entenderam-se, foram tomar algo gelado exigido pelo quentíssimo dia de Verão. Pronto, em coisa de seis meses casaram. Partiram para a antigamente chamada Nova França.
Pois bem, armado este cenário, voltemos à amiga de infância da criatura que se foi para o Primeiro Mundo. Correspondiam-se, e os convites da que se mandara eram constantes: — Puxa, Gilda, por que você não vem passar uns tempos conosco?
— Ah, sei lá, essas viagens longas...
— Que longa, menina. De jato é um pulo.
Assim é que o tempo correu e, de repente, a que ficou em Campinas se surpreendeu às vésperas de entrar para o clube das cinquentonas. Viúva sem filhos ligou para Quebec: — Se prepare, estou indo. Festejarei meus cinquentinhas aí.
Como viajou direto a Toronto para de lá seguir ao destino, já a bordo do avião, canadense, começou a descobrir outro universo. O que de resto se confirmou assim que colocou os pés no solo alienígena. No aeroporto, enquanto esperava o desembaraço da bagagem, acabou tomada por uma espécie de bafo de organização. Os check-outs ocorreram sem problemas, e, ao avistar a amiga de tantos anos que a fora esperar pintaram as lágrimas.

"As ruas, por exemplo, lhe pareciam tão limpas,
tão assépticas que teve esta certeza:
 fatia de pão caindo ao chão com a manteiga voltada para baixo
estaria mais limpa ao ser juntada.
Nos cafés, restaurantes, cinemas, praças, teatros
tropeçava em espantos".

Corria então a segunda metade do mês de agosto, o que significava que já no setembro seguinte passaria a experimentar a sensação de um autêntico Outono no Hemisfério Norte. De resto, enquanto isso não ocorria, a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo nossa Gildinha ia sendo tomada pelos charmes de uma terra organizada. As ruas, por exemplo, lhe pareciam tão limpas, tão assépticas que teve esta certeza: fatia de pão caindo ao chão com a manteiga voltada para baixo estaria mais limpa ao ser juntada. Nos cafés, restaurantes, cinemas, praças, teatros tropeçava em espantos. Afinal, mesmo nos ambientes lotados não ouvia nada além do murmúrio das pessoas que falavam no tom certo. Além disso, nos recintos com música o som jamais ultrapassava a suavidade do moderato cantábile. Isso sem falar que as roupas dos atendentes não exibiam mínimo, exíguo, longínquo, raquítico amassadinho nas dobras. Nessas condições, em um mês de estada naquele mundo em que até vírus e bactérias pareciam se finar sozinhas por não ter um reles miserável para atacar, um dia segredou para a amiga que a hospedava: — Sabe? Acho que aqui no Canadá tudo é tão esterilizado que ninguém faz pum!
Em dois meses, andava pelas ruas ansiosa por avistar ao menos um reles papelzinho a voar açoitado pelos ventos frios do Outono. Catava, sem sucesso, um etéreo mendigo ou algum molequinho maltrapilho a dormir num vão de porta. E até as folhas dos plátanos que a estação derrubava, logo eram recolhidas com precisão de procedimento cirúrgico. Tudo com trânsito de veículos que fluíam, sem buzinas, como que movidos pelas mãos mágicas dos deuses. Certa noite sonhou com o Brasil. Acordou em bicas por ter se visto quase atropelada na Francisco Glicério.
Daí comunicou à anfitriã que estava na hora de retornar. No instante em que sentou na poltrona do avião, sentia-se como que reinventada.
Chegou à noite na sua casa no Cambuí, dormiu sono pesado. Ao sair, manhã alta, na porta da casa tropeçou num saco de supermercado cheio de lixo que a vizinha deixara ao léu. Olhou para aquilo e sorriu, sentindo uma espécie de felicidade. Por pouco não pega os restos fedorentos a fim de passar sobre a própria cabeça. É que entrava no processo de se sentir curada da instabilidade que vinha sentindo em Quebec, ou seja, horrorosa síndrome de abstinência da esculhambação brasileira. E na primeira tarde de fim de semana ao despencar numa das mesas do City Bar, teve noção exata de que voltara ao seu verdadeiro mundo. Isso ocorreu quando o vizinho de mesa pegou um bolinho de bacalhau e o enfiou inteiro na boca, como deviam fazer os homens de Neanderthal com nacos sanguinolentos de carne de Tiranossaurus Rex. Depois, dando vasto gole na cerveja, o cara soltou monumental arroto que poderia ser ouvido na Avenida Anchieta. Pronto, a recém-chegada se redescobriu em ordem e inserida no contexto. Pois o som da coisa horripilante soou ao seu ouvindo como acorde de uma das Sonatas de Wolfgang Amadeus Mozart tocada por Glenn Gould. Que foi, por sinal, um exímio pianista canadense.
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*Antonio Contente é jornalista e escritor
Fonte; Correio Popular online, 27/09/2010

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