quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Os caminhos da Filosofia Política

Imagem da Internet

Em tempos de confusão e mudanças,
 é até certo ponto lógico que
os olhos se voltem para a filosofia da teoria política,
em busca de pistas e inspiração.
Aqui está Hobbes,
um pouco sobre republicanismo e
anarquismo na entrevista
 com Andrés Rosler,
 filósofo e pesquisador do Conicet.

A entrevista é de Leonardo Moledo e publicada no jornal Página/12, 29-09-2010. A tradução é do Cepat e revisada pela IHU On-Line.

Estávamos falando de temas realmente muito interessantes. Tão interessantes que esqueci de ligar o gravador. Assim que vamos começar in medias res, se não lhe parecer ruim. Você estuda Hobbes, um dos filósofos políticos fundamentais para pensar a Modernidade. E estava para me dizer...
O que estava para lhe dizer é que, para Hobbes, o Antigo Testamento é um caso típico de contrato político, de contrato que permite sair do estado de natureza. O povo de Israel celebra um pacto com Deus que é, em última instância, político: em troca de obediência e da terra de Canaã, Deus lhe entrega a salvação, a redenção.

O que é a redenção?
A ideia de salvação tinha um sentido metafísico-religioso e para nós se converteu em uma noção tipicamente medicinal: estar a salvo, cuidar da saúde.

Mas, o que era a redenção para um judeu da época de Moisés?
Que sua alma fosse terminar com Deus. O mais importante é o uso político que Hobbes faz dessa ideia de salvação: a mesma salvação que Israel outorga mediante o antigo pacto é a que o Leviatã dá aos indivíduos. O Estado outorga proteção e salva o povo da guerra própria do estado de natureza. A Bíblia conta que por alguma razão os judeus não concordaram com esse pacto inicial, mas que queriam uma monarquia como os demais povos tinham; Deus, então, os abandona e lhes dá um rei e aí começa o caminho dos judeus que, segundo Hobbes, desemboca na necessidade de um segundo pacto.

Por quê?
Os judeus, ao quererem se afastar de Deus, ficam entregues à sua morte. Acreditavam (e ainda acreditam) que o redentor está para chegar. A diferença no segundo pacto é que já não é um pacto peculiar de um povo com Deus, mas que é muito mais universal, mais abrangente. Em vez de pedir a circuncisão como selo da aliança, a única coisa necessária é um batismo. Isso é mais universal, mesmo que siga havendo pessoas que fiquem fora. Essa é uma boa maneira de começar a pensar o conflito político: pode-se pensar o conflito político incluindo todo o mundo?

Você deveria sabê-lo...
Pensemos no terremoto no Chile: todos os Estados ajudaram, mas a responsabilidade principal era do Estado chileno. A ordem política é particular, tem fronteiras, tem limites. A única maneira de resolver os problemas humanos, na realidade, é desfazer-nos do Estado. Entre o anarquismo e o particularismo político não há muitas alternativas. A única maneira de deixar de lado a exclusão produzida pelos particularismos políticos é desfazendo-nos dos Estados.

Você se dedica à filosofia política de Hobbes, que é um tema delimitado. O que faz, ali, é história da filosofia. Faz também filosofia?
É que creio que, mesmo que não me propusesse isso, em meus estudos de história da filosofia estou fazendo ao mesmo tempo filosofia. Para que se faz a história da filosofia política? Uma primeira razão seria recuperar conceitos, ideias, argumentos esquecidos. O maior especialista em Hobbes, hoje, é um fervoroso republicano, a tradição do pensamento que obnubilou a teoria hobbesiana. A teoria política de Hobbes é inimiga do republicanismo.

Por quê?
O Estado moderno é uma invenção histórica do século XVI cujo primeiro grande representante é Hobbes. Antes, o grande debate era entre a pessoa do monarca e a comunidade de cidadãos. Esse esquema não podia resolver um problema como o da guerra civil. Faltava uma instituição que estivesse acima tanto da pessoa que ocupa o cargo como da comunidade de cidadãos. Essa é a grande invenção do Estado moderno. Isso acaba ao mesmo tempo com a monarquia absoluta e com a ideia republicana de que os cidadãos podem escolher o seu representante de maneira direta e a seu próprio arbítrio. Hoje, por exemplo, vivemos em um regime representativo, e você me dirá que o que se faz é exatamente isso: que a comunidade escolha a seu próprio arbítrio. Mas creio que não é bem assim: há eleições, mas o eleito é um soberano. Antes, quando se era contrário ao que o eleito fazia era possível tirá-lo do cargo, e isso era legal. A tirania era uma forma moral à qual o povo tinha o direito de resistir. Hobbes defende que essa discussão entre monarquia e republicanismo, entre formas corretas e incorretas de governo, moralizava o discurso político: alguns chamam tirano o monarca com o qual não estão de acordo e alguns chamam anarquia a democracia com a qual não estão de acordo. Deve-se propor uma instituição (o Estado) que seja soberano. Essa ideia de soberania hobbesiana é algo que permaneceu. Mesmo que pareça que o Estado está dando seus últimos passos sobre a terra.

E se pensamos nos estados que provêm da dissolução do Império? Carlos Magno, por exemplo, tem um Estado, frágil mas tem...
Mas o Estado moderno tem uma característica peculiar em relação aos proto-Estados mais antigos: quem está em cima ocupa um cargo do qual não é o dono. É simplesmente um empregado da hierarquia. O lema de Luis l’état c’est moi [o estado sou eu] não funciona mais na modernidade. O que fez o czar russo, de vender o Alasca e ficar com o dinheiro, não funciona mais.

Mas o imperador romano também não podia fazer isso...
A verdade é que não sei como funcionava isso.

Quando se chega ao poder pessoal em Roma há toda uma burocracia enorme por trás.
Sim, tem razão. O Estado moderno tem como um dos seus pilares o direito romano e a Igreja Católica como o outro. Quando cai o Império, a Igreja Católica o suplanta e depois serve como base para a implantação do Estado político. Curiosamente, a Igreja, que era o grande inimigo do Estado, acabou por lhe prover o aparelho institucional.

Claro, porque a instituição eclesiástica transcende muito a figura do Papa.
E a característica do Estado moderno é a distinção entre a pessoa e quem ocupa o cargo e, evidentemente, a comunidade de cidadãos. Isto lhe granjeou uma oposição em duas pontas: não só dos republicanos, mas também dos monarquistas. Os monarquistas, com efeito, se deram conta de que Hobbes não defendia uma monarquia de direito divino, mas um Estado contratual. Já não é Deus, mas o povo quem delega. Para Hobbes há uma assembleia que estabelece o pacto e instantaneamente se dissolve.

Você também tem um projeto de republicanismo e liberalismo. O que estuda ali?
A ideia é pesquisar as origens dessas duas grandes teorias. O liberalismo e sua concepção negativa de liberdade (a liberdade consiste na ausência de impedimentos externos à ação, o que é uma ideia muito hobbesiana) e o conceito de liberdade do republicanismo (que em vez de achar que o problema é a interferência, acredita que o problema seja a dominação: alguém pode ser dominado sem ser interferido e interferido sem ser dominado). O exemplo clássico disto é o do escravo com um senhor gentil. Para o republicanismo, nenhuma pessoa é absolutamente confiável para governar, por mais boa gente que seja: quem tem que governar é a lei, que interfere, mas não domina. O liberalismo supõe que uma pessoa que vive uma vida sem interferências será livre; para o republicanismo, obviamente isso não é suficiente. A intuição de viver uma vida com a menor quantidade de interferências, teoricamente já não é mais muito defendida, é muito própria do senso comum.

E o que acontece agora com essas coisas?
Há um renascimento importante da filosofia política republicana, que quer recuperar o que o Estado deixou tapado. Sem dúvida, o republicanismo merece nossa simpatia (quem pode negar a ideia de uma cidadania participativa, que toma decisões sobre a base da deliberação pública?), mas tem seu lado negativo, que é a moralização do conflito político. Se sou republicano e represento a virtude, quem se opuser, por definição, não é virtuoso.

Para onde acredita que estamos indo?
No fundo, eu sigo acreditando na possibilidade do debate. A teoria política, no fundo, é um diálogo, uma discussão. Mas creio que é preciso ter cuidado para não confundir quem está em desacordo com a gente com alguém que é simplesmente imoral.
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Fonte: IHU online, 30/09/2010

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