segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A internet obriga a pensar de forma ligeira e utilitária

Imagem da Internet

Nicholas Carr cutucou a onça da internet com um argumento longo e bem-desenvolvido no livro "The Shallows What the Internet is Doing to Our Brains" (que poderia ser traduzido como "No Raso O que a Internet Está Fazendo como Nossos Cérebros" e será lançado no Brasil pela Agir). Em poucas palavras, a facilidade para achar coisas novas na rede e se distrair com elas estaria nos tornando estúpidos.
Era o que estava implícito no título de um artigo de Carr em 2008 (ele prefere o qualificativo de "superficiais") que deu origem a uma controvérsia acesa. E, também, ao livro, que já vendeu mais de 40 mil cópias nos Estados Unidos e está sendo traduzido em 15 línguas.
Carr recusa a pecha de alarmista, mas sua preocupação com os efeitos não pretendidos das "tecnologias de tela" é tanta que ele recomenda a restrição do acesso de alunos à internet nas escolas. Não descarta que a rede possa evoluir para a veiculação de ideias menos superficiais, mas tampouco vê indícios de que irá nessa direção.
"A internet, sendo um sistema multimídia baseado em mensagens e interrupções, tem uma ética intelectual que valoriza certos tipos de pensamento utilitários", lamenta o jornalista. Ele já foi assinante de Facebook e Twitter, mas abandonou esses serviços para manter a concentração e a capacidade de refletir em profundidade.
Leia abaixo trechos da entrevista telefônica dada por Carr da casa de parentes em Evergreen, Colorado, onde se refugiou depois de evacuado em consequência de incêndios florestais que se aproximavam de sua casa nas montanhas Rochosas.

Folha _ Seu livro, "The Shallows", deplora a internet como ameaça à mente formada pela invenção de Gutenberg, que nos deu o Renascimento, o Iluminismo, a Revolução Industrial e o Modernismo. Mas a invenção de Gutenberg também não destruiu a mente e a filosofia medievais, assim como toda a cultura clássica greco-romana? Ou seria mais preciso dizer que ambas as invenções amplificaram e continuaram a cultura do passado?
Nicholas Carr _ Toda tecnologia de comunicação e escrita traz mudanças. Perdemos coisas do passado e ganhamos outras coisas novas. Isso é verdadeiro mesmo para o período anterior a Gutenberg, com a invenção do alfabeto, pela maneira como alterou a memória humana e nos deu maior capacidade de intercambiar informação. A internet, assim como tecnologias anteriores, amplifica certos modos de pensar e certos aspectos da mente intelectual, mas também, ao longo do caminho, sacrifica outras coisas importantes.

Folha _Uma espada de dois gumes, por assim dizer.
Carr _ Sim.

Folha _ Se a leitura e a reflexão profundas estão em risco, como explicar o sucesso de coisas como o Kindle e mesmo de seu livro?
Carr _ As coisas não mudam de imediato. Há ainda um grande número de pessoas que leem livros. O número ao menos dos que leem livros sérios vem caindo há um bom tempo, mas haverá pessoas lendo livros por muito tempo no futuro. Meu argumento é que essa prática está se mudando do centro da cultura para a periferia, e as pessoas começam a usar a tela como sua ferramenta principal de leitura, não a página impressa. Acho também que, à medida que mudamos para dispositivos como Kindle ou iPad para ler livros, mudamos nossa maneira de ler, perdemos algumas das qualidades de imersão da leitura.

Folha _ Mas as pessoas não os usam para navegar, leem como se fossem de fato livros.
Carr _ O Kindle se sai bastante bem na tarefa de reproduzir a página impressa. O que sabemos sobre o futuro desses aparelhos é que as companhias que os fazem tendem a competir com base nas novas funções que lhes acrescentarem. A questão é saber se os leitores eletrônicos, ao competir, vão manter a competência da página impressa, ou se vão começar a incorporar novas funções baseadas na internet, redes sociais, sistemas de mensagens e outras ferramentas. Mesmo com o Kindle já vemos a tendência a incorporar novas funções, como as de redes sociais. Infelizmente, o efeito das novas funções será acrescentar mais distrações à experiência de ler.

Folha O que pode ser feito em termos práticos e individuais para resistir a essa tendência reservar algumas horas no dia ou na semana para permanecer desconectado? É o que o Sr. faz nas montanhas do Colorado?
Carr _ (Risos) Não escrevi o livro para ser do tipo de autoajuda. A mudança que estamos vendo faz parte de uma tendência de longo prazo, na qual a sociedade põe ênfase no pensamento para a solução rápida de problemas, tipos utilitários de pensamento que envolvem encontrar informação precisa rapidamente, distanciando-se de formas mais solitárias, contemplativas e concentradas. Por outro lado, como indivíduos, nós temos escolha. Mesmo que a desconexão se torne mais e mais difícil, pois a expectativa de que permaneçamos conectados está embutida na nossa vida profissional e cada vez mais na visa social, a maneira de manter o modo mais contemplativo de pensamento é desconectar-se por um tempo substancial, reduzindo nossa dependência em relação às tecnologias de tela e exercendo nossa capacidade de prestar atenção profundamente em uma única coisa.

Folha _ Seu livro lembra o filme Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, baseado em romance de Ray Bradbury em que as pessoas decoravam livros para impedir que todos fossem destruídos. O Sr. acredita que essa seja a mensagem mais comum extraída dele, a importância de permanecer desconectado para preservar algo que não se deve perder?
Carr _ Sim, e fico mesmo gratificado com isso. Muitas pessoas que o leram reagiram dessa maneira. O valor do livro para elas, pessoalmente, foi confirmar algo que talvez não tivessem percebido claramente antes, que estão de fato perdendo essa habilidade de ler e pensar em profundidade. Estão questionando sua dependência da nova tecnologia digital e, em alguns casos, tentam moderar o uso das engenhocas e retornar à leitura de material impresso, reservando tempo para contemplação, reflexão e meditação, modos mais solitários e calmos de pensar.

Folha _ As escolas deveriam restringir o uso de computadores e internet pelos alunos, em lugar de se lançar de cabeça na tecnologia?
Carr _ Sim. Nos Estados Unidos tem havido uma corrida para considerar que computadores na escola são sempre uma coisa boa, até mesmo uma confusão da qualidade do ensino com o tempo que os alunos passam conectados. É um erro. Certamente os computadores e a internet têm um papel importante a desempenhar na educação, e as crianças precisam aprender competências computacionais, a usar a internet de maneira eficaz. Mas as escolas precisam perceber que essa é uma maneira de pensar diferente de ler um livro. É preciso dar tempo e ênfase, no ensino, para desenvolver a capacidade de prestar atenção em uma única coisa, em vez de mover sua atenção entre diversas coisas. Isso é essencial para certos tipos de pensamento crítico e conceitual.

Folha _ O Sr. tem um blog que as pessoas podem acompanhar por assinaturas RSS, uma página pessoal, outra para o livro, mas não tem Twitter. É um limiar que não se dispõe a cruzar?
Carr _ Eu já tive conta no Twitter um par de anos atrás, e também no Facebook. Na medida em que me dei conta de que minha vida intelectual estava mais e mais envolta pela internet, decidi sair. Acho que esses serviços, mesmo que sejam obviamente úteis para as pessoas, são também os que mais distraem, constantemente nos interrompendo com pequenas mensagens. Foi aí que eu tracei a fronteira, mesmo que eu perca algo por não estar no Facebook ou Twitter. As interrupções são um preço alto demais a pagar.

Folha _ O Sr. consideraria a internet responsável pela epidemia de casos de transtorno deficit de atenção e hiperatividade (TDAH), ou atribui isso à medicalização de comportamentos pela grande indústria farmacêutica para vender remédios domesticadores?
Carr _ Preciso ser cuidadoso com a resposta, porque não tenho certeza de que a ciência sobre isso seja definitiva, ainda. Há indicações de que as tecnologias que as crianças usam, de videogames a Facebook, possam contribuir para TDAH. É algo que precisa ser mais estudado. Para os pais que estejam preocupados com a capacidade de seus filhos de manter a atenção, poderia ser apropriado restringir as tecnologias.

Folha _ A TV e o rock também já foram acusados no passado como ameaças aos intelectos jovens, mas não há carência de novos escritores e artistas. Será que não temos uma tendência para ser alarmistas?
Carr _ Sempre que uma tecnologia nova e popular aparece, há pessoas que adotam uma visão exageradamente otimista, de uma utopia social, e pessoas que adotam uma visão exageradamente negativa, de que ela vai destruir a civilização. No livro tento não adotar uma visão unilateral da tecnologia, porque acho que ela tem muitas coisas boas, do acesso mais fácil a informação até novas ferramentas para autoexpressão. De certo modo, os jovens se encontram na melhor posição para resistir a essa tendência e serem literários, artísticos. Meu temor é que, na medida em que empurramos celulares, smartphones e computadores para as crianças em idades cada vez mais precoces, elas não venham a desenvolver as habilidades mentais mais contemplativas e atentas. Isso seria uma grande perda para a cultura, pois a expressão artística requer reflexão mais calma, tranquila, introspectiva. Se as crianças perderem isso, veremos uma diminuição nas realizações culturais e artísticas.

Folha _ Algumas pessoas discordam, como o psicólogo evolucionista Steven Pinker, de Harvard, e acham que é alarmismo.
Carr-Pinker escreveu um artigo para o jornal "The New York Times" (www.nytimes.com/2010/06/11/opinion/11Pinker.html) no qual não mencionou diretamente meu livro, mas não estou certo de que ele tenha um argumento persuasivo, para ser franco. Há quem pense que não é importante ou preocupante perdermos formas mais contemplativas de pensamento. Acreditam que nosso futuro está na troca rápida de mensagens e no processamento acelerado de informações. As pessoas valorizam aspectos diferentes da cultura e da vida intelectual. Não espero que todos concordem comigo.

Folha _ Há um artigo seu na edição da revista "Nieman Reports" sobre o tema que traz também uma entrevista com o neurocientista Marcel Just, em que ele defende as novas tecnologias como mais adequadas para cérebros que evoluíram para ver e não tanto para ler. Ele diz: "É inevitável que as mídias visuais se tornem mais importantes para transmitir ideias, e não só para inflamar". O Sr. concorda?
Carr _ É uma afirmação no estilo de Marshall McLuhan, de que nos afastaremos do texto em direção ao vídeo e ao áudio. Não discordo disso como observação de uma tendência geral. O que me interessa mais é o que perdemos e ganhamos com essa transição.

Folha _ Se entendo bem o que diz Just, ele defende que meios visuais também podem veicular ideias, ou seja, pensamentos mais profundos.
Carr _ Com certeza eu já assisti bons filmes e tive experiências e reflexões profundas com eles. Há muitas maneiras de pensar com profundidade e atenção, e é certo que se pode fazer isso indo ao cinema, por exemplo. Infelizmente a internet, quando nos oferece vídeos e áudios, raramente o faz com vistas a uma imersão, pois eles vêm sempre acompanhados de distrações e interrupções, quando se está olhando para uma tela de computador ou smartphone.

Folha _ Mas é concebível que a internet possa mover-se numa direção que combine os poderes da informação visual com os do texto para promover pensamentos em profundidade?
Carr _ Tudo é possível, mas cada tecnologia que usamos para fins intelectuais tem certos efeitos e reflete um conjunto particular de premissas sobre como devemos pensar. A internet, sendo um sistema multimídia baseado em mensagens e interrupções, tem uma ética intelectual que valoriza certos tipos de pensamento utilitários, voltados para a solução de problemas, que encoraja as multitarefas e a rápida transmissão ou recepção de migalhas de informação. A tecnologia pode mudar rapidamente, mas não vejo razão para pensar que vá [noutra direção].

Folha _Um argumento central no seu livro se baseia na plasticidade do cérebro humano, mas isso é algo que afeta o cérebro individual, quando seu argumento diz respeito a uma mudança na cultura, na civilização. Isso não envolve um tipo de raciocínio lamarckista, de que alterações em cérebros individuais conduzam a uma mudança na cultura da espécie?
Carr _ Bem, se nossos cérebros individuais estão mudando e mudando a ênfase de pensamento, isso terá efeitos culturais e sociais. Minha questão é que as mudanças individuais que vêm do uso da tecnologia que se espalha pela sociedade, na medida em que a sociedade se modifica para pôr mais ênfase na tecnologia e na medida em que as transmitimos para nossos filhos, treinando-os para usá-las desde a infância... essa é a trilha pela qual mudanças individuais se tornam mudanças sociais e culturais. Seu modo de pensar se torna central para a sociedade.

Folha _ Bem, nós podemos estar nos tornando mais estúpidos por causa do Google, como dizia o título de seu artigo de 2008 na revista "The Atlantic" (www.theatlantic.com/magazine/archive/2008/07/is-google-making-us-stupid/6868/), mas isso não quer dizer necessariamente que nossos filhos nascerão mais estúpidos.
Carr _ Certamente. Mas eu não usei a palavra "estúpidos"; "superficiais" seria uma palavra mais adequada. Não fui eu quem fez o título (risos). Está óbvio nesta altura que nossas vidas mentais refletem uma combinação de herança genética com o modo como fomos criados para usar nossas mentes. Não acho que a tecnologia tenha um efeito que se transmita aos genes, seria preciso muito mais tempo para isso. Mas sabemos que a mente é muito adaptável, especialmente quando jovem, e quando transmitimos ferramentas também influenciamos a maneira como o cérebro se adapta.

Folha _Se jornais impressos de fato um dia forem extintos, como um jornal na internet deveria ser escrito para promover leitura e reflexão aprofundada? Conter menos ou nenhum hyperlink, ou ter blocos de texto que possam ser lidos em 27 segundos e sejam interessantes o suficiente para levar o leitor a prosseguir para o próximo bloco?
Carr _ (Risos) As experiências que os jornais estão começando a fazer, como apresentar seu conteúdo digital por meio de várias aplicações ("apps"), pode ser o caminho do futuro. Não simplesmente publicar um sítio na rede que seja uma maçaroca de links, manchetes e migalhas, mas criar uma experiência de leitura por meio de aplicações que reflitam a experiência de leitura do impresso, mais focalizada em encorajar a leitura aprofundada do que na coleta apressada de páginas e muitos pedaços de informação. Mas não sabemos se isso será popular.
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Reportagem por MARCELO LEITE DE SÃO PAULO
Fonte: Folha online, 20/09/2010

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