sábado, 21 de agosto de 2010

“Não resta nada de 68”

ENTREVISTA DANIEL COHN-BENDIT,
DEPUTADO EUROPEU

O homem que liderou o levante estudantil de Maio de 1968 em Paris atende o telefone celular e fala placidamente em francês. É sua segunda língua, a que o marcou de forma mais profunda que o alemão materno, o símbolo de um país que o mudou tanto quanto foi mudado por ele. O alemão Daniel Cohn-Bendit, 65 anos, foi expulso da França há 42 anos por “perturbar a ordem pública”, mas nunca perdeu o vínculo com a pátria adotiva. Sintomaticamente, a cidade francesa onde trabalha a maior parte do tempo, Estrasburgo, sede do Parlamento Europeu, é uma síntese das duas nações.
É final da tarde de quarta-feira, e o deputado europeu Cohn-Bendit desfruta de seus últimos dias de férias na Alemanha. Na segunda-feira, estará em Porto Alegre como conferencista do ciclo Fronteiras do Pensamento. Aceitou gentilmente interromper o descanso para conversar com Zero Hora. Sobre o Brasil, diz apenas que esteve aqui “há muito tempo” (leia mais sobre a primeira passagem de Cohn-Bendit pelo Brasil na página 5). O repórter lembra-o: foi em 1984. Ele recorda:
– Sim, era uma época fascinante no Brasil. Havia o movimento das Diretas Já, a eleição entre dois candidatos (Tancredo Neves e Paulo Maluf, que disputavam a eleição presidencial indireta no Congresso) e o trabalho de toda a sociedade para enterrar a ditadura.
Na época, seu cicerone no Brasil foi Fernando Gabeira, o mesmo que deve encontrá-lo na noite de segunda-feira como debatedor no palco do Salão de Atos da UFRGS. Não era o único amigo brasileiro. Um de seus professores em Nanterre antes de Maio de 1968 era um sociólogo exilado que atendia pelo nome de Fernando Henrique Cardoso. O ex-aluno relembra o mestre, a quem reviu muitas vezes, com simpatia.
– Um personagem fascinante – afirma o deputado.
Político experimentado, Cohn-Bendit fala por meio de frases curtas, medindo as palavras. O estudante que um dia pertenceu a um grupo anarquista chamado Negro e Vermelho é hoje um líder parlamentar profundamente devotado à causa de uma Europa unida nos marcos da tolerância e da solidariedade. O cidadão que, nos anos 1970, marchava contra a instalação de usinas nucleares e a ampliação do aeroporto de Frankfurt am Main tornou-se devoto da criação de regras para o mercado. Em síntese, Danny le Rouge (Danny, o Vermelho) tornou-se Danny le Vert (Danny, o Verde). Ou, como brincou o jornal britânico The Independent depois que sua coalizão se tornou a terceira força entre os franceses nas eleições parlamentares europeias do ano passado: Danny, o Azul com Estrelas Amarelas, referência à bandeira da União Europeia.
Cohn-Bendit falará às 19h30min de segunda-feira sobre o tema Mutação das Utopias no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, no Salão de Atos da UFRGS . Não haverá debatedor convidado. O Fronteiras do Pensamento é apresentado pela Braskem e tem patrocínio de Unimed Porto Alegre, Gerdau, Grupo RBS, Instituto Claro e Refap, com apoio cultural da UFRGS, da Anhanguera Educacional e da prefeitura de Porto Alegre.
A seguir, um resumo da entrevista concedida por Cohn-Bendit a ZH, que ele encerrou com um “Até Porto Alegre”:

Zero Hora – O ciclo de conferências que lhe convidou a Porto Alegre se chama Fronteiras do Pensamento – Para Entender o Século 21. Para o senhor, o que é o século 21?
Daniel Cohn-Bendit – O século passado foi definido pela oposição de capitalismo e comunismo. Hoje, creio que entramos numa outra época. Com a dissolução da União Soviética, os problemas políticos se colocam de maneira radicalmente diferente. É preciso redefinir a política de outra forma que não em função das estruturas que estavam dadas no século 20.

ZH – O senhor sempre foi um otimista em matéria de unificação europeia. Como viu a crise econômica na Grécia e em outros países?
Cohn-Bendit – Creio que a Europa avança sempre apesar das crises. A crise que vivemos hoje coloca inúmeras questões porque os Estados-nações europeus demoraram a responder a ela. Hoje, é preciso repensar a coordenação econômica em toda a região.

ZH – Alguns comentaristas dizem que a crise coloca em risco a própria existência da União Europeia. O que o senhor pensa sobre isso?
Cohn-Bendit – De fato, a crise representa um risco, mas acredito que hoje um recuo na unificação europeia não é o caso. Espero que a União Europeia encare seus problemas. Creio que a União Europeia é capaz não só de responder à crise, mas de acelerar de fato sua construção. Infelizmente, hoje ela não tem confiança de que possa atender às próprias necessidades.

ZH – A Alemanha recusou num primeiro momento qualquer ajuda financeira à Grécia.
Cohn-Bendit – (Interrompendo.) Foi um erro, foi um erro, foi um erro grave da Alemanha. Foi uma reação de nacionalismo e chauvinismo econômico. O problema da Grécia requer uma solução de emergência. A Grécia não pode ficar sozinha. Quero dizer que é preciso ajudá-la. Hoje, vemos que a crise econômica abala toda a sociedade grega e tem um impacto muito além daquele país. Fazer imposições à Grécia, da maneira como foi feito pela Alemanha, é um erro grave.

ZH – Qual é a sua posição sobre a participação de forças alemãs, no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), na guerra do Afeganistão?
Cohn-Bendit – Acredito que, de início, a intervenção no Afeganistão era necessária. Hoje, creio que a estratégia não dá conta da realidade no Afeganistão. Na Alemanha e em outros países, a maioria das pessoas se opõe à guerra.

ZH – O que o senhor pensa da proibição da burka na França e da proibição de minaretes em mesquitas na Suíça?
Cohn-Bendit – Creio que não são a mesma coisa. Propus que fosse refeita a votação sobre a proibição dos minaretes na Suíça. A burka é hoje um outro problema, um enorme problema em função das diferenças de visão do Islã sobre a posição das mulheres. Para que a proibição tenha efeito, é preciso avançar nesse debate.

ZH – Nos anos 1980, o senhor disse que tinha um sonho: ser deputado e ser ministro.
Cohn-Bendit – Não, não. (Com veemência.) Não, não, não. Hoje, estou contente em ser deputado e co-presidente do Grupo dos Verdes-Aliança Livre Europeia.

ZH – Passados mais de 30 anos do surgimento do seu partido, os Verdes, na Alemanha, qual é o balanço político que o senhor faz de sua trajetória?
Cohn-Bendit – O balanço político é que os Verdes nasceram juntamente com propostas de transformação radical e se mostraram capazes de fazer compromissos políticos para fazer avançar toda a sociedade. Um equilíbrio difícil de se conseguir.

ZH – Na sua opinião, o que resta do movimento de Maio de 68?
Cohn-Bendit – Nada. Porque terminou, a sociedade mudou completamente. Não resta nada de 68. Falaremos disso em Porto Alegre.
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POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Fonte: ZH online, 21/08/2010

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