quarta-feira, 30 de junho de 2010

O outro lado da Copa

Newton Carlos*

A Copa na África do Sul inspirou vários livros e um artigo de fundo no prestigioso jornal inglês Guardian. Tratam o evento como algo ajustado a interesses de uma “elite europeia”, representada pela Fifa e por clubes que administram enormes somas de dólares com contratos de jogadores de fora da Europa. Com isso, montam espetáculos que estão entre os que mais mobilizam multidões ao largo do universo, especialmente na Europa e América Latina e agora na África. Com ela, num continente açoitado pela pobreza, a Fifa faturou, segundo o Guardian, US$ 3,3 bilhões, principalmente com as vendas de imagens.

Abrigaria componentes históricos o fato de que a América Latina já foi sede de várias Copas e a África está em sua primeira. Os países latino-americanos ficaram independentes no século 19 e a descolonização africana teve seu impulso forte e definitivo somente nos anos 60 do século passado. A Fifa teria levado isso em consideração, mas se supõe que estiveram em campo outras considerações. A extrema pobreza de uma África, por exemplo, sem condições de montar um espetáculo ao gosto e de acordo com as exigências da “elite europeia” futebolística. O arsenal africano do futebol já inclui, no entanto, mecanismos de decolagem, um deles muito nosso conhecido, as contratações a peso de ouro de jogadores que se deslocam dos campos da periferia para os do centro.

Camarões, Gana e Costa do Marfim têm seus craques quase todos em clubes, sobretudo, europeus. Mesmo assim, a África do Sul pós-apartheid foi obrigada a lutar arduamente para conseguir o aval europeu. Peter Alegi, em seu livro África World Coup, publica a carta que o presidente sul-africano na época da escolha, Taboo Mbeki, mandou aos cartolas da Fifa. “A África alcança finalmente status global”, em matéria de futebol, foi um dos argumentos usados por Mbeki. “Queremos sediar um evento que produzirá confianças da Cidade do Cabo ao Cairo”, enfatizou o então presidente sul-africano. Ele fez, em seu empenho por eliminar resistências, uma aposta de alto risco. Com o 2010 a África tomará outro rumo, irá enterrando séculos de pobreza e conflitos.

O que a Copa atesta de modo claro, disse o Guardian, é que a África passa a ocupar lugar de destaque no universo do futebol, chamado de “mina de ouro”. Os países africanos não tiveram nenhuma presença em Copas até 1974, quando foi classificada uma única seleção para as finais, a do Zaire, hoje República Popular do Congo. Em 1970, a África do Sul quis mandar ao México uma seleção toda de negros, mas foi impedida; o apartheid ainda estava vigente. Antes, em 1966, tentou enviar à Inglaterra um time todo de brancos. Também não conseguiu. O Zaire, em 1974, era governado por um ditador corrupto e cruel. Um dos vários livros sobre as copas, The story of the World Cup, conta que Mobutu se reuniu-se com os jogadores e fez um aviso. Não garantiria as vidas deles se apanhassem de quatro a zero do Brasil. Ou, é claro, de ainda mais.

Em 1990, foi a erupção dos Camarões. Em The ball is rounds, David Goldblat, com base num longo histórico, conclui que, nas copas, nem sempre o melhor é o vencedor. Em 2010 se impõe uma nova ordem no universo do futebol, pela presença simbólica de seis países africanos nas finais. O que ainda é considerado insuficiente, tendo em vista as ausências de países com destaque na agenda das relações internacionais, como China, Índia, Indonésia, Filipinas, Paquistão, Vietnã, Iraque, Israel etc. É como se as Worlds Cups, a mina de ouro da Fifa, ainda segundo o Guardian, não se encaixasse numa espécie de ONU do futebol. É notada, de modo especial, a ausência da China, que teve presença destacada na Copa Africana das Nações, realizada este ano em Angola. Toda a infraestrutura foi bancada pelos chineses, incluindo as construções de quatro estádios.

Um raro momento do futebol como instrumento de interesses estratégicos, a China procurando fortalecer sua presença numa África recheada de matérias-primas das quais ela se ressente em sua ascensão como potência. Em How football explains África, o autor, Steve Bloomfield, cita as razões que questionam os sonhos transformadores de Mbeki. É verdade que a Copa promove mudanças na África do Sul, onde o futebol era tratado, na época do apartheid, como esporte de negros, como se fosse coisa de raça inferior. Sobressaiam o críquete e o rúgbi, esportes de brancos. É importante a constatação de como o futebol acompanhou o desmonte do regime racista sul-africano, ao ponto de colocá-lo num telão com dimensão universal.

Talvez Mbeki tenha pensado sobretudo nisso, em seu empenho por fazer com que a África do Sul fosse a sede da Copa de 2010. Mas é preciso olhar o reverso da medalha. Mbeki foi o segundo presidente pós-apartheid, e em seu governo já surgiram sintomas de que a África do Sul não se encaminhava na direção sonhada por Nelson Mandela. O próprio Mbeki escandalizou o mundo com seus palpites sobre causas da Aids, em oposição aos avanços das ciências médicas. A Aids castiga os africanos e a visão de Mbeki continha ingredientes capazes de deixar campo livre a epidemias. Seu sucessor, Zuma, envolveu-se em escândalos sexuais e enfrentou acusações de corrupção. Também a South African Football Association entrou por maus caminhos, segundo Bloomfield.

"O jornal inglês fala de um
”sistema de livre mercado de tráfico humano”.
Empresários montam academias de futebol,
treinam jovens jogadores e os “exportam”.
Já existem centenas dessas academias espalhadas
pela África"

Tornou-se um Estado dentro do Estado. Com isso, os recursos que administra se refugiam em caixas-pretas. Não existem, ainda segundo Bloomfield, prestações de contas. Os mandatos de dirigentes se tornam perpétuos. Em vez de sanar tal situação, a Copa tende a agravá-la, tendo em vista o montante de recursos em jogo. A própria Fifa injetou US$ 100 milhões nos cofres da South African Football Association, em caráter de emergência, para que a Copa africana pudesse afinal acontecer. A África do Sul, diz o Guardian, já dispõe de um bom sistema futebolístico, capaz de realizar campeonatos nacionais, mas não de melhorá-los. A tendência é que se instale na África do Sul o que já acontece em vários países africanos, a “exportação” de jogadores, sobretudo para a Europa.

Fazem contratos inimagináveis em clubes africanos. O jornal inglês fala de um ”sistema de livre mercado de tráfico humano”. Empresários montam academias de futebol, treinam jovens jogadores e os “exportam”. Já existem centenas dessas academias espalhadas pela África. Os formandos, em busca do sonho europeu, são em geral muito jovens. Em 2003, a média etária foi de 18 anos. Não existem dados mais recentes. Um clube holandês, o Ajax, de Amsterdã, instalou sua própria academia na África do Sul, com o objetivo de formar craques no futebol em países africanos de modo mais responsável e com doses reduzidas de exploração. A Copa deve voltar à África em 2026. Mas já existem rumores de que a Índia pretende reivindicá-la. Afinal, se trata de um superemergente. Mais ainda: de potência atômica.
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*Jornalista
Fonte: Correio Braziliense online, 30/06/2010

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