domingo, 23 de maio de 2010

A vida, segundo Venter

O cientista americano conseguiu criar uma bactéria artificial. Por que isso abre possibilidades fantásticas para a humanidade – e riscos tão grandes que ainda não sabemos avaliar


O CRIADOR
O geneticista Craig Venter.
Ele diz que uma das aplicações de sua tecnologia é
projetar bactérias artificiais para
produzir energia mais barata


Deus criou o homem no sexto dia e no sétimo descansou, lê-se no Livro do gênesis. Foi também numa sexta-feira, 26 de março, que uma equipe de geneticistas do Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos, substituiu o DNA de uma bactéria por outro, artificial. Segundo anúncio feito na semana passada, junto com a publicação do estudo na revista Science, eles conquistaram um atributo exclusivo dos deuses: o dom de fabricar vida. Com 1 milhão de peças encaixadas a partir do zero, o novo DNA não era apenas sintético. Era “alienígena”, baseado no código genético de uma espécie de bactéria diferente daquela em que foi inserido. Não houve rejeição. Vista no microscópio, a bactéria “sintética” prosseguiu sua vida normalmente. A colônia de bactérias só parou de crescer porque foi congelada, depois de ter se multiplicado 1 bilhão de vezes. “Transformamos uma célula em outra”, disse o geneticista americano John Craig Venter, de 63 anos. “É a primeira forma de vida na Terra cujo pai é um computador.” É a primeira espécie criada pelo homem.

O avanço, por um lado, é modesto. As bactérias usadas na experiência estão entre as formas de vida mais simples, com apenas uma célula. Possuem um só cromossomo com 1 milhão de peças arranjadas em 500 genes. Não é muito para um geneticista. Ainda assim, as consequências são extraordinárias. Desde a semana passada, o desafio de replicar a experiência com o DNA de formas de vida multicelulares saiu do plano onírico (entenda a experiência no gráfico abaixo). Trata-se – ainda – de um objetivo distante. Os humanos têm 210 tipos de células conhecidos com funções diferentes que, isoladas, não sobrevivem. Em cada uma delas há 23 pares de cromossomos, que em conjunto têm 20 mil genes, formados por 3 bilhões de peças. Esse grau de complexidade é a regra entre animais e vegetais. São tantas as peças e os genes para manipular que, mesmo usando a tecnologia de ponta criada por Venter, as possibilidades de gerar erros são astronômicas.

Mas voar pelos céus, viajar para a Lua ou clonar ovelhas foram um dia sonhos impossíveis. Ao criar sua célula “sintética”, Venter abriu as portas de um novo mundo. A criação de novas formas de vida, projetadas por computador para fazer tarefas específicas, parece agora não uma questão de ficção científica, e sim de tempo. Esse mundo novo traz grandes promessas. As técnicas genéticas podem levar ao tratamento de doenças hoje incuráveis e à fabricação de remédios mais baratos. Podem criar alimentos melhores e até materiais inovadores. Aumentarão nosso conforto e, talvez, nossa expectativa de vida. Há o outro lado, porém. Elas também despertam questionamentos éticos sobre nosso direito de manipular e vender vida. E ainda trazem perigos cuja dimensão não somos capazes de avaliar direito. O que aconteceria se seres vivos criados em laboratório fugissem ao nosso controle e contaminassem o meio ambiente, eliminando espécies naturais? Ou, pior, transmitindo doenças terríveis? E se a popularização da genética torná-la acessível a loucos ou terroristas? Esses receios terão de ser levados em conta na formulação de regras para trilhar o caminho aberto por Venter. Após o anúncio, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, encomendou um relatório à Comissão de Bioética da Casa Branca. Disse que a pesquisa de Venter gera “preocupações genuínas”.

É difícil não ficar fascinado com as possibilidades maravilhosas inauguradas pela biologia artificial. Nos planos mais imediatos de Venter estão a construção de micróbios projetados para expandir a produção de biocombustível, extraindo o máximo de álcool de cada célula de cana-de-açúcar. Ou de bactérias capazes de consumir manchas de petróleo. Se ela já existisse, estaria sendo usada no Golfo do México. Teria de ser usada com cuidado, pois se caísse dentro de um poço poderia acabar com as reservas.

Isso são só algumas promessas no campo da energia. Aplicada à medicina, a criação de formas sintéticas de vida poderia levar à erradicação de doenças causadas por bactérias, como a tuberculose, a lepra, a coqueluche, o tétano, a leptospirose, a sífilis, o cólera e a meningite. A biologia sintética pode fazer a produção de alimentos dar um salto superior ao das sementes transgênicas.
“Transformamos uma célula em outra. É a primeira
forma de vida na Terra cujo pai é um computador”
J. Craig Venter, geneticista


“A célula sintética de Venter é o primeiro grande avanço de um novo campo de pesquisa chamado biologia sintética, o desenho de novas formas de vida”, diz o geneticista Sérgio Danilo Pena, de 62 anos, professor de bioquímica e imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Quando Venter dá a impressão de ter criado vida sintética, ele erra. A vida surgiu no planeta uma única vez, há 4 bilhões de anos, e desde então vem evoluindo e se diversificando. O que Venter fez foi modificar o genoma, o programa que controla a vida. Ele não criou vida. Simplesmente assumiu o controle dela – o que é um feito maravilhoso.”

O modo como a equipe de Venter provou ter tomado o controle de uma bactéria foi, além de científico, poético. No DNA sintético, a equipe usou um código que interpretava alguns conjuntos de peças do genoma com letras do alfabeto – e assim escreveram mensagens dentro do genoma. As novas bactérias, portanto, têm, segundo Venter, o endereço de um site para enviar e-mails, o nome dos 46 colaboradores do projeto e três citações: “Viver, errar, cair, triunfar, recriar vida a partir da vida”, do escritor James Joyce; “Ver as coisas não como elas são, mas como poderiam ser”, do filósofo Felix Adler; e “O que eu não posso construir, não consigo compreender”, do físico Richard Feynman. Esse tipo de brincadeira é comum entre cientistas, exacerbada em John Craig Venter, um cientista brilhante e um empreendedor hipercompetitivo, dono de um arguto senso de marketing. No início dos anos 1990, quando surgiu a ideia de mapear o genoma humano, Venter defendeu fervorosamente o direito dos pesquisadores de patentear os genes que descobrissem de quaisquer formas de vida – inclusive o homem. Foi acusado de querer patentear a vida. Arregimentou contra si a animosidade da opinião pública mundial e o repúdio do mundo científico. Mas os investidores de risco gostaram da ideia e, principalmente, de seu defensor. Apostaram em sua ousadia científica.

O primeiro resultado veio em 1995, quando Venter anunciou o sequenciamento do primeiro genoma de um ser vivo, a bactéria Haemophilus influenzae. No mesmo ano fundou a Celera, empresa cujo único objetivo era sequenciar o DNA humano de forma mais rápida e barata do que Projeto Genoma, um consórcio de US$ 5 bilhões formado por dezenas de laboratórios. “Ele foi boicotado pela academia, que achava aquela concorrência de muito mau gosto”, diz Pena. Apesar do boicote, Venter acelerou as técnicas de mapeamento genético e, mesmo largando atrás, com menos recursos e muito menos profissionais, chegou à frente. Em 2000, três anos antes do previsto, Venter anunciou o primeiro rascunho dos 3 bilhões de bases do genoma humano. E de quem era o primeiro genoma humano mapeado? Dele próprio, é claro.

Venter é hoje uma ovelha negra para o mundo acadêmico, o qual desdenha abertamente. Ao contrário de seus antigos colegas da academia, não depende de recursos oficiais para financiar suas pesquisas. Em 2002, Venter brigou com o principal acionista da Celera e foi demitido. Não faltaram investidores interessados em seus projetos. Entre 2004 e 2006, Venter deu a volta ao mundo em seu veleiro particular, coletando milhares de espécies desconhecidas de micro-organismos em um levantamento da diversidade genômica dos oceanos. Em 2005, Venter fundou a Synthetic Genomics, empresa voltada para a pesquisa de bactérias sintéticas para produzir biocombustível, uma iniciativa apoiada desde 2009 por US$ 600 milhões da ExxonMobil. E, em 2006, fundou o Instituto J. Craig Venter, uma organização sem fins lucrativos para a pesquisa básica no nascente campo da biologia sintética. O anúncio da célula sintética é sua primeira grande conquista.

Apesar de configurar um avanço extraordinário, a pesquisa divulgada na semana passada não pode ser considerada propriamente como criação de vida. É um degrau importante para isso, mas está longe de ser vida artificial. “O trabalho de Venter mostra que um genoma pode ser fabricado e transplantado de uma bactéria para outra. Isso não é criar vida”, afirma a bioeticista Mildred Cho, diretora do Centro de Bioética Médica da Universidade Stanford, nos Estados Unidos.

Mildred compara o feito de Venter à técnica de fertilização in vitro, na qual um espermatozoide fecunda um óvulo em laboratório e gera um embrião que só então será implantado no útero. “Algumas pessoas podem até chamar esse processo de artificial, mas apenas uma pequena parte dele sofreu intervenção humana: juntar óvulo e espermatozoide. Um bebê ainda não nasce sem a mãe”, diz Mildred.

O CONTROLADOR
George Church, da Universidade Stanford, em seu laboratório.
Ele quer desenvolver estruturas para controlar como o DNA
é transformado nas proteínas que compõem nosso corpo

O mérito de Venter também não foi construir os genes, os pedaços de DNA que formam nosso genoma. Os pesquisadores já sabem como fazer isso desde a década de 70. Empresas que vendem esses genes feitos em laboratório se popularizaram nos últimos dez anos. São cerca de 45 no mundo, 24 só nos Estados Unidos. O feito de Venter foi conseguir juntar esses genes – que ele encomendou de uma empresa – na sequência correta do material genético da bactéria Mycoplasma mycoides, usada como modelo. Para fazer isso, Venter e sua equipe inseriram todos esses genes em uma levedura (um tipo de fungo), que uniu os pedaços de DNA um ao outro. “Esse passo deu vida ao DNA”, afirma o microbiologista Marcelo Briones, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo. Venter precisou usar um organismo vivo para chegar a seu genoma sintético. Isso não diminui seu sucesso. “Ele mostrou o mapa da mina. Se algum dia alguém for fazer uma vida totalmente artificial, poderá seguir esse caminho.” O próximo passo rumo à vida sintética seria fabricar o genoma exclusivamente por síntese química, jogá-lo diretamente dentro de uma bactéria e fazê-lo funcionar. E, quem sabe um dia, não precisar nem da célula da bactéria para chegar ao resultado final.

Havia muito tempo Venter sabia que suas pesquisas o levariam a conflitos relacionados a nossos direitos sobre a vida na Terra. Em 1995, encomendou a uma junta da Universidade da Pensilvânia uma análise sobre as possíveis implicações éticas de seu futuro projeto de pesquisa. Ele queria descobrir o número mínimo de genes para um organismo sobreviver, desmontando peça a peça o DNA da bactéria M. genitalium, que causa infecção urinária. O resultado, publicado em 1999 na revista científica Science, era favorável ao prosseguimento do trabalho de Venter. “A intenção de construir um genoma mínimo ou um novo genoma não viola nenhum preceito ou fronteira moral fundamental. Mas levanta questões essenciais a ser consideradas antes que essa tecnologia avance”, escreveu o grupo.

O parecer destacava como preocupante o risco de um genoma construído em laboratório contribuir para a banalização da vida. O feito poderia passar a sensação de que ela se reduziria a uma simples combinação de letras químicas – um entendimento capaz de levar à visão de que o bem mais sagrado do ser humano não é assim tão especial. “Algumas pessoas podem achar essa descoberta frustrante. Outras podem pensar que cruzamos os limites éticos”, diz Arthur Caplan, diretor do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e um dos autores da revisão ética solicitada por Venter. “Nada disso é verdade. A dignidade da vida nunca foi inerente ao mistério de sua origem, mas, sim, a sua diversidade e complexidade.”

“A vida surgiu na Terra uma única vez.
Venter não criou vida.
Simplesmente assumiu o controle dela – o que é um feito maravilhoso”
Sérgio Pena, da UFMG

A opinião de Caplan não é compartilhada por outros especialistas. O sociólogo britânico Steven Yearley, pesquisador da Universidade de Edimburgo, na Escócia, diz que um grupo isento de especialistas teria uma posição mais dura. “Eu não quero dizer que eles levantariam objeções mais graves, apesar de achar que eles o fariam. O fato é que transparência é essencial”, diz Yearley. Ele teme que, ao minimizar as implicações éticas de novas tecnologias, os pesquisadores acabem adiando discussões importantes para depois que essas técnicas já estejam plenamente desenvolvidas. Aí, já seria tarde para contemplar se a sociedade deseja ou não esses avanços.

Venter já solicitou a patente de algumas das técnicas usadas por ele e sua equipe para chegar à bactéria com genoma sintético. “Venter não está burlando o avanço da ciência ao pedir essas patentes”, afirma a advogada Adriana Diaféria, gerente jurídica da Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial. “Isso aconteceria se ele pedisse patente sobre os genes ou sobre o micro-organismo que ele criou, o que barraria o desenvolvimento da ciência em uma fase inicial, antes de conseguirmos uma aplicação industrial.” Mas parece uma questão de tempo até que Venter peça a patente dos organismos criados em laboratório. “Não fico confortável com a noção de que podemos patentear organismos que existem na natureza. Só que esse argumento não cabe no caso da genômica sintética”, disse Venter, durante um seminário em Londres, em 2007. “É muito difícil afirmar que não fomos nós que criamos esses organismos no laboratório. Isso pode até ser considerado patentear uma forma de vida. Mas, certamente, não é uma que descobrimos na natureza.”


O CRÍTICO
Bill Joy, cientista de computação, um dos pioneiros da internet.
Ele é uma das principais vozes de alerta
para os riscos de que a tecnologia genética escape ao
controle humano

Nesse ponto, a pesquisa de Venter esbarra em outro aspecto ético. Alguém pode deter os direitos sobre um organismo vivo? No Brasil, a legislação não prevê isso. Nos Estados Unidos, a jurisprudência aponta em outra direção. Em 1980, o microbiólogo indiano Ananda Chakrabarty trabalhava na empresa americana General Electric quando desenvolveu uma bactéria que, modificada geneticamente, podia digerir petróleo. A aplicação de sua pesquisa tinha um grande potencial econômico porque a bactéria transgênica poderia ser usada para diminuir os impactos de vazamentos de petróleo. Chakrabarty solicitou a patente de sua invenção. Seu primeiro pedido foi negado pelo escritório americano de propriedade intelectual, sob o argumento de que seres vivos não eram passíveis de patenteamento. Chakrabarty entrou com uma ação na Suprema Corte e ganhou.

Como se os aspectos éticos já não fossem suficientemente complicados, há os desafios práticos. E se um organismo sintético escapar de um laboratório, por descuido de um cientista, e contaminar o ambiente? Poderia levar a um desequilíbrio ambiental? Um estudo relacionado a alimentos transgênicos mostra que pequenas alterações genéticas já têm potencial para provocar impactos no ecossistema. Em 1999, pesquisadores da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, descobriram que uma espécie de milho alterada geneticamente para resistir a pragas estava causando a morte de borboletas-monarcas. O milho havia recebido um gene que produzia uma toxina antipragas. O problema é que essa substância aparecia no pólen produzido pelo pé de milho e era levada pelo vento até plantas que serviam de alimento para diversas espécies de insetos.

Os pesquisadores estão cientes desse tipo de risco desde a década de 70, quando conseguiram alterar pela primeira vez sequências de DNA. Na ocasião, o responsável pelo feito, o químico Paul Berg, da Universidade Stanford, organizou uma conferência – com o atraente nome de Conferência do DNA Recombinante de Asilomar, numa praia da Califórnia. Asilomar definiu os princípios de biossegurança adotados até hoje. A regra principal é especular sobre os possíveis desdobramentos da pesquisa antes de executá-la. E pensar em maneiras de revertê-los. A estratégia tem sido eficaz. Fora efeitos colaterais como o do milho transgênico, não se tem notícia de um micro-organismo criado pelos humanos que tenha causado desequilíbrios ambientais nem doenças sérias. Mas, com os avanços conseguidos por Venter, alguns especialistas já falam em uma nova conferência de Asilomar para estabelecer protocolos de seguranças mais restritos.


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Será preciso definir isso rápido. O feito de Venter não é uma conquista isolada. Outros cientistas têm avançado nessa área. Em centros como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, criar bactérias bizarras é desafio para estudantes de graduação. Algumas têm genes para brilhar no escuro. Outras formam desenhos geométricos em uma placa com nutrientes. O desafio maior é recriar a vida com regras diferentes das usadas pela natureza. O pesquisador Jack Szostak, da Faculdade de Medicina de Harvard, tenta desenvolver um sistema de vida baseado apenas no RNA, uma molécula intermediária, mais simples que o DNA, que usamos para transformar nosso código genético nas proteínas que fazem o organismo. Szostak acredita que as primeiras formas de vida na Terra se duplicavam apenas com o RNA. E que vida sintética baseada no RNA pode ser mais fácil de manipular. George Church, de Harvard, quer criar ribossomos, estruturas das células que leem o DNA e, a partir dele, fazem as proteínas. Pelo menos três outras empresas americanas, além da de Venter, desenvolvem células sintéticas para produzir combustíveis. O biólogo Drew Endy, de Stanford, desenvolve programas que permitiriam a qualquer pessoa montar DNAs no computador e depois encomendar sua produção a firmas especializadas.

O DEMOCRATIZADOR
Drew Endy, da Universidade Stanford,
segura amostras de material biológico.
Seu plano é montar um sistema simples
que permita a qualquer pessoa fabricar
DNAs sintéticos

Com tantos grupos independentes avançando, o progresso da engenharia da vida parece inevitável. Uma comparação natural é com o desenvolvimento da bomba atômica nos anos 1940, na Segunda Guerra Mundial. O esforço americano para criar essa tecnologia foi motivado por um fim nobre: livrar o mundo da ameaça do nazismo. Mas, mesmo após a derrota alemã na Europa, os americanos mantiveram seus planos nucleares para encerrar a guerra contra o Japão. Depois que as bombas destruíram Hiroshima e Nagasaki, foi impossível interromper a corrida armamentista. Em 1948, após a guerra, o físico Robert Oppenheimer, que liderou o projeto da bomba, resumiu a sensação dos cientistas diante da nova ameaça nuclear criada para sempre por seus laboratórios. “Os físicos conheceram o pecado, e esse é um conhecimento que eles não poderão perder.”

O medo de que essa tecnologia saia do controle e ameace nossa civilização foi bem delineado pelo cientista da computação americano Bill Joy, um dos fundadores da Sun Microsystems. Em um artigo de 2000, na revista americana Wired, ele descreve uma visão pessimista do futuro dominado por máquinas inteligentes e engenharia genética. Segundo Joy, a nova ameaça é maior que a das armas de destruição em massa que assombraram o século XX: nucleares, biológicas e químicas. Elas são poderosas. Mas exigem dinheiro, tecnologia, infraestrutura e acesso a matéria-prima. Construir essas armas é uma empreitada para um Estado. “Já as tecnologias atuais, como a genética, estão ao alcance de indivíduos ou grupos pequenos”, disse Joy. Não precisam de grandes instalações industriais. Além disso, elas podem se replicar sozinhas. Uma bomba só explode uma vez. Uma arma genética pode facilmente escapar do controle. “Você não precisa ser um suicida”, diz Joy. “Essas armas podem ser seletivamente destrutivas para afetar apenas certa área geográfica ou um grupo de pessoas geneticamente distinto.”

Esse mundo não é tão distante. Em 2002, cientistas da Universidade Estadual de Nova York anunciaram ter sintetizado o poliovírus, o causador da paralisia infantil. Em 2005, pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos ressuscitaram o até então extinto vírus da Gripe Espanhola de 1918, que matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas no mundo. O engenheiro americano Kim Eric Drexler, um dos precursores da nanotecnologia no MIT, vislumbrava os riscos. Ele propôs a construção de um sistema de nanomáquinas capazes de se autorreplicar, como seres orgânicos, com a função de defender a biosfera do ataque de seres malignos criados em laboratório. Seria como um sistema imune da Terra. Mas o próprio sistema criava perigos. Podia sofrer disfunções e atacar a biosfera.

Os cientistas consideram improvável o desenvolvimento terrorista de genética malévola. “Ainda é mais fácil roubar um vírus de um laboratório ou isolar um vírus como a ebola na natureza”, afirma o americano Gerald Epstein, diretor do Centro de Política de Segurança da Associação Americana para o Desenvolvimento da Ciência. “É o mesmo que temer que uma pessoa de posse de minério de ferro e pólvora construa uma arma. É possível, mas é o jeito mais difícil.” Por enquanto, é. E quando as técnicas de biologia sintética estiverem mais avançadas e acessíveis? Os especialistas sugerem medidas como só vender máquinas capazes de fabricar genes para pessoas que tenham autorização do governo. “Evitar as possíveis aplicações perigosas da biologia sintética limitando o desenvolvimento dessas pesquisas seria como impedir que as pessoas aprendam a ler para que terroristas não consigam entender manuais sobre como construir bombas”, diz Epstein.



“Venter mostrou o mapa da mina. Se alguém for fazer uma
vida totalmente artificial, poderá seguir seu caminho”
Marcelo Briones,
da Universidade Federal de São Paulo


Embora os próprios pesquisadores expressem preocupação quanto a essa nova ciência da vida, nem todos são pessimistas. Alguns acreditam que será possível se contrapor a usos malignos da tecnologia. Primeiro, isso exigiria vigilância. Hoje, as empresas que fornecem genes por encomenda, como a Blue Heron, conferem cada pedido para ver se o DNA não codifica patógenos conhecidos. Mas não seriam capazes de identificar um agente maligno novo. Por isso, segundo Endy, de Stanford, nossa única defesa é incentivar a comunidade de cientistas a continuamente vigiar e desenvolver vacinas contra os patógenos desenvolvidos artificialmente. Algo similar ao que é feito com vírus de computadores. Há uma comunidade ativa em criar antivírus. Para Endy, os bancos de dados de genes e os próprios programas para manipular o DNA deveriam ter seu código aberto para que voluntários possam aperfeiçoar constantemente a tecnologia. De novo, a analogia vem dos computadores. Seriam os programas de computador abertos, como o sistema operacional Linux.

Até agora, nossa experiência mostra que a maioria desses medos é exagerada. A dominação do mundo pelos robôs é lugar-comum na ficção científica, do computador Hal 9000, em 2001, uma odisséia no espaço, às máquinas que sugam energia dos humanos em Matrix. Alguns computadores já podem ser mais inteligentes que os humanos, sob determinados aspectos. Em 1997, o supercomputador Deep Blue, da IBM, derrotou Garry Kasparov, considerado o último grande campeão de xadrez humano. Mas o Deep Blue precisa ser programado – por humanos. E tem uma tomada: pode ser ligado e desligado. O controle de uma coisa e de outra – os meios e os fins de qualquer tecnologia – é sempre dos humanos.


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Reportagem de: Alexandre Mansur, Marcela Buscato e Peter Moon. Com Luciana Vicária. Artes: Alberto Cairo, Gerson Mora, Marco Vergotti e Nilson Cardoso
Fonte: Revista ÉPOCA online, 23/05/2010

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