segunda-feira, 17 de maio de 2010

O embate das cosmologias

Leonardo Boff*


RIO - O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz disse recentemente: “O legado da crise ecoômico-financeira será um grande debate de ideias sobre o futuro da Terra”. Concordo plenamente com ele. Vejo que o grande debate se travará em torno das duas cosmologias presentes e em conflito no cenário da história.

Por cosmologia entendemos a visão do mundo – cosmovisão – que subjaz às ideias, às práticas, aos hábitos, às instituições e aos sonhos de uma sociedade. Cada grupo cultural e mesmo a cultura como um todo possuem suas respectiva cosmologias. Por elas se procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo e definir o lugar do ser humano dentro dele.

A nossa atual é a cosmologia da conquista, da dominação e da exploração do mundo em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser mecanicista, determinística, atomística e reducionista. Por força desta cosmovisão, se chegou ao fato de que 20% da população mundial controla e consome 80% de todos os recursos naturais, criando um fosso entre ricos e pobres como nunca havido na história. Metade das grandes florestas foram destruídas, 65% das terras agricultáveis foram perdidas, cerca de 5 mil espécies de seres vivos desaparecem anualmente e mais de mil novos elementos químicos, a maioria tóxicos, são lançados no solo, no ar e nas águas. Construíram-se armas de destruição em massa, capazes de eliminar toda a vida humana. O efeito final é o desequilíbrio do sistema-Terra que se expressa pelo aquecimento global. Com os gases já acumulados, até 2035 fatalmente se chegará a 2 graus Celsius, com a previsão de alcançar no final do século 4 a 5 graus, o que tornará a vida, assim como a conhecemos hoje, praticamente impossível.

A predominância dos interesses econômicos especialmente especulativos, capazes de reduzirem paises à mais brutal miséria e o consumismo trivializaram nossa percepção do risco sob o qual vivemos e conspiram contra qualquer mudança de rumo.

Em contraposição está comparecendo cada vez mais forte, uma cosmologia alternativa e potencialmente salvadora. Ela já tem mais de um século de elaboração e ganhou sua melhor expressão na Carta da Terra. Deriva-se das ciências do universo, da Terra e da vida. Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso processo de evolução que se iniciou a partir do big bang, há cerca de 13,7 bilhões de anos. O universo está continuamente se expandindo, se auto-organizando e se autocriando. Seu estado natural é a evolução e não a estabilidade, a transformação e a adaptabilidade e não a imutabilidade e a permanência. Nele tudo é relação em redes e nada existe fora desta relação. Por isso todos os seres são interretroconectados e colaboram uns com os outros para coevoluirem e garantirem o equilíbrio de todos os fatores. Por detrás de todos os seres atua a energia de fundo que deu origem e anima o universo e faz surgir emergências novas. A mais espetacular delas é a Terra viva e nós humanos como a porção consciente e inteligente dela e com a missão de cuidá-la.

Vivemos tempos de urgência. O conjunto das crises atuais está criando uma espiral de necessidades de mudanças que, não sendo implementadas, nos conduzirão fatalmente ao caos coletivo e que assumidas, nos poderão elevar a um patamar mais alto de civilização. É neste momento que a nova cosmologia se revela inspiradora. Ao invés de dominar a natureza, nos coloca no seio dela em profunda sintonia e sinergia. Ao invés de uma globalização niveladora das diferenças, nos sugere o biorregionalismo que valoriza as diferenças. Este modelo procura construir sociedades autosustentáveis dentro das potencialidades e limites das bioregiões, baseadas na ecologia, na cultura local e na participação das populações, respeitando os ciclos da natureza e buscando a harmonia entre todos e com a mãe Terra.

O que caracteriza esta nova cosmologia é o cuidado no lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda a vida e os direitos e a dignidade da natureza e não sua exploração.

A força desta cosmologia reside no fato de estar mais de acordo com as necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se optarmos por ela, criar-se-á a oportunidade de uma civilização planetária na qual o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a beleza, a alegria e espiritualidade ganharão centralidade. Será a grande virada salvadora que urgentemente precisamos.

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*Leonardo Boff, junto com Mark Hathaway, é autor do livro The Tao of liberation: exploring the ecology of transformation.
Fonte: Jornal do Brasil online - 16/05/2010

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