quinta-feira, 15 de abril de 2010

O patrono

L. F. VERISSIMO*



Um estudo recente encomendado pelo banco BNP Paribas, francês e insuspeito, mostrou que nos últimos cinco anos a classe C brasileira cresceu e aumentou sua renda mais do que as classes A/B, enquanto que as classes D/E (não falam nas classes abaixo destas, que, no Brasil, como se sabe, chegam até as J/K) diminuíram de tamanho. Interpretações e reparos à vontade e ao gosto político de cada um, mas o inegável nos números é que houve ascensão social e está havendo distribuição de renda. Com bolsas antifome, suspensão de impostos, piques de empregos formais, pacs e repacs e trancos e barrancos, o governo está inserindo cada vez mais gente na vida econômica do país – enquanto consola os de cima com favores também inéditos para o capital financeiro. O que deve interessar a todo o mundo é que está se criando uma coisa que até agora não existia no Brasil, um grande mercado consumidor interno. E o patrono desta transformação não é Karl Marx, é Henry Ford.

Ironia. Henry Ford, em matéria de política, era um reacionário execrável. Sua companhia tornou-se um exemplo de cupidez empresarial um pouco acima do normal. Uma das histórias pouco comentadas da II Guerra Mundial é que a guerra já corria solta e o antissemita Ford continuava fazendo negócios com a Alemanha nazista. E não é preciso ir tão longe: foi notória a colaboração da Ford com a última ditadura militar na Argentina, para proteger seus interesses, e a ajuda da Ford e outras multinacionais estrangeiras à Operação Bandeirante, força auxiliar da repressão formada por empresários paulistas no Brasil dos anos cinzentos. Isso em contraste com a atividade – louvável – da Fundação Ford nos campos da educação e da cultura no continente. Mas Henry Ford ficou na história porque criou o fordismo, um método revolucionário de produção de carros em série que mudou para sempre os costumes e a paisagem da América. E porque pagava bem os funcionários da sua linha de montagem, raciocinando que de nada adiantava inundar o país de carros sem um mercado de massa para comprá-los.

Ford e o fordismo não foram os únicos responsáveis pela industrialização acelerada dos Estados Unidos a partir dos anos 20, claro, nem os empregados bem pagos da Ford foram os únicos protótipos da classe C consumidora que sustenta o capitalismo americano até hoje. Mas o fordismo teve efeitos colaterais importantes. Propiciou o aparecimento de um movimento sindical forte, e consequentes vantagens iguais para outros trabalhadores. Democratizou o acesso a bens antes exclusivos de uma minoria. E ficou como exemplo de racionalidade econômica a ser seguida. No caso do Brasil dos últimos cinco anos, um pouco tarde.
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*Escritor. Cronista
Fonte: ZH online, 15/04/2010

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